Criminalização e informações falsas de entrega de “kits droga” e de apologia ao uso de entorpecentes permeiam histórico desse tipo de abordagem; especialistas explicam o que de fato significa essa perspectiva sobre uso de substâncias
Você provavelmente sabe que intercalar o consumo de água com a ingestão de bebida alcoólica e se alimentar bem antes de começar a entornar o caneco ajudam a evitar mal estar e ressaca. Pode ser considerado responsabilidade, consciência do próprio corpo, mas também é uma atitude que busca reduzir danos que o tóxico pode causar ao consumidor.
A chamada “redução de danos” costuma ser equivocadamente atribuída à apologia ao uso de drogas e distribuição de “kits droga”, como a prefeitura de Sorocaba, no interior paulista, classificou essa abordagem. Durante o Carnaval de 2022, o prefeito Rodrigo Manga (Republicanos) publicou decreto nº 27.655 proibindo a distribuição de “kit de redução de danos”. De acordo com o release do governo municipal, esse tipo de kit conteria “cartões e canudos para serem utilizados no consumo de cocaína, além de sedas e piteiras, para uso da maconha, mais materiais informativos que fazem apologia e incentivo ao consumo de entorpecentes”.
No mesmo período, a Polícia Civil de Pernambuco fechou um espaço montado para o Carnaval de Olinda pela Escola Livre de Redução de Danos (ELRD) após uma denúncia sobre apologia ao uso de drogas. A iniciativa, que aconteceria pela segunda vez, visava distribuir água, protetor solar, seda, preservativos, venda de lanches, ambiente de descanso, acolhimento e materiais informativos sobre riscos e efeitos do uso, inclusive combinado, de álcool e outras drogas aos foliões.
Ao portal Marco Zero Conteúdo, a coordenadora da escola, Ingrid Farias, disse que chegou a receber ameaças pelas redes sociais e ter sua imagem vinculada a fake news por bolsonaristas. Inclusive o prefeito de Sorocaba divulgou trecho de um dos vídeos gravados por Ingrid para a página da ELRD no Instagram em que ela recomendava o uso de seda e piteira, que seriam disponibilizados pela escola, e não qualquer tipo de papel caso a pessoa quisesse fumar tabaco, cumbaiá (fumo de ervas) ou qualquer outra substância. Manga chamou a atitude de “apologia a uso de drogas” e que o decreto que estava redigindo proibiria a distribuição desse tipo de kit na rede municipal, que iria “trabalhar incansavelmente para impedir esse absurdo” e “recuperar os jovens das drogas”.
Contudo, a redução de danos consiste em uma abordagem, como o próprio nome evoca, de minimizar os impactos e consequências decorrentes do uso de substâncias psicoativas, sejam elas lícitas ou ilícitas. “A redução de danos é a apologia ao cuidado”, resume Matuzza Sankofa, coordenadora do Centro de Convivência É de Lei, organização da sociedade civil que atua desde 1998 na promoção da redução de danos.
E a atuação em festas, como o Carnaval, tem um propósito. “A gente sabe que as pessoas aproveitam para extravasar consumindo bebida alcóolica e fazendo uso de outras substâncias. Às vezes, pode não ‘dar bom’: alguém pode passar mal, alguém pode ser roubado, alguém pode sofrer algum tipo de abuso, e isso acontece muito contra as mulheres que estão sob efeito de álcool”, explica Nathalia Oliveira, coordenadora da Iniciativa Negra por uma Nova Política de Drogas.
As duas organizações, com apoio da vereadora Luana Alves (PSOL), se uniram para atuar pela primeira vez na folia paulistana neste ano, em que 100 redutores de danos presentes no bloco Cecílias e Buarques, na região central, entregaram, além de água e preservativos, leques para amenizar o calor, cujo material continha informações que iam desde a necessidade de hidratação a não dirigir após usar droga. Também se disponibilizarem a dar acolhimento caso alguma pessoa passasse mal ou estivesse em situação de violência.
“O poder público se preocupa muito com a estrutura para a festa, mas não se preocupa e cuidar das pessoas que frequentam a festa”, sinaliza Matuzza. “O maior insumo que a gente pode oferecer é garantir o acesso à informação e o cuidado direto com profissionais capacitados”, prossegue.
Da seringa à moradia
A redução de danos, que é prática reconhecida pela Organização Mundial da Saúde (OMS), não tem uma atuação única ou distribuição de um kit específico e pode se desdobrar em diversas frentes. Países como Holanda, Portugal, Suíça, Alemanha, Dinamarca, Espanha, Canadá, Austrália, Reino Unido, dentre outros, têm políticas públicas voltadas à essa abordagem. Elas aparecem com mais evidência especialmente por causa da epidemia de Aids a partir das décadas de 1970 e 1980 e o uso de drogas injetáveis.
Essa época também ficou marcada no Brasil: uma das primeiras iniciativas de redução de danos no país se deu pela prefeitura de Santos, no litoral paulista, em 1989, ao implantar um programa de troca de seringas para usuários de drogas. “Esse programa veio em resposta aos casos de HIV/Aids porque havia um consumo alto de cocaína injetável e esse consumo também vinha bastante por ser uma zona portuária e rota do tráfico de drogas”, explica o antropólogo e redutor de danos do Programa de Orientação e Atendimento ao Dependente da Universidade Federal de São Paulo (Proad/Unifesp) Wander Wilson.
O programa acabou sendo criminalizado e não teve continuidade na época, já que o Ministério Público de São Paulo entrou com uma ação na Justiça contra a então prefeita Telma de Souza, o secretário municipal de Saúde David Capistrano da Costa Filho e o médico Fabio Mesquita, que coordenava a política de enfrentamento à Aids, pelo crime do que hoje seria chamado de apologia às drogas, com base na Lei de Drogas de 1976, que previa pena de três a 15 anos de prisão, além de pagamento de multa, para quem “induz, instiga ou auxilia alguém a usar entorpecente ou substância que determine dependência física ou psíquica”. O trio acabou inocentado.
Em uma reportagem sobre os 30 anos da redução de danos no Brasil tendo como marco a ação em 1989, relizada pela Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio, ligada à Fiocruz, o médico Fabio Mesquita explicou que estava seguindo as evidências científicas de experiências internacionais para conter a proliferação do vírus do HIV. “Seria o mesmo que dizer que ao distribuir camisinha você está ajudando pessoas a fazer sexo”, ironizou. “Não estávamos ajudando as pessoas a usar drogas, até porque elas iriam usá-las de qualquer jeito. Estávamos tentando salvar vidas”, declarou.
O pioneirismo dessa ação reverberou por toda a década de 1990, quando a troca de seringas passou a ser institucionalizada em programas de algumas cidades brasileiras e até virar lei estadual em alguns governos. Mas a redução de danos só foi indicada como parte de um política pública nacional de saúde em 2003, com a aprovação da Política para Atenção Integral a Usuários de Álcool e outras Drogas do Ministério da Saúde. A regulamentação veio com a Portaria nº 1.028/2005, que costuma sempre ser citada por entidades, pesquisadores e ativistas como respaldo para ações de redução de danos.
Nessa portaria, os três pilares principais são:
I – informação, educação e aconselhamento;
II – assistência social e à saúde; e
III – disponibilização de insumos de proteção à saúde e de prevenção ao HIV/Aids e Hepatites.
Sobre o primeiro item, são descritas como ações de informação e educação, por exemplo, o “desestímulo de compartilhamento de instrumentos utilizados para consumo de produtos, substâncias ou drogas que causem dependência”, orientações sobre a prática de sexo seguro, prevenção de infecções, divulgação de serviços públicos de saúde e assistência social, dentre outros. Inclusive, é indicada a distribuição de insumos para minimizar os riscos, como, por exemplo, as seringas. O texto também prevê iniciativas relacionadas ao consumo de bebidas alcóolicas no rol da redução de danos. Há, ainda, a definição de oferta de assistência social e tratamento de saúde.
Para Wander Wilson, do Proad/Unifesp, o fato de as universidades terem entrado no debate da redução de danos foi um caminho para essa regularização. “Duas iniciativas muito importantes no âmbito acadêmico para a discussão foram o Cetad [Centro de Estudos e Terapia do Abuso de Drogas da Universidade Federal da Bahia], na Bahia, e o Proad na cidade de São Paulo, que são dois começos e começam dando o tom para esse caminho”, aponta.
Dois pontos considerados muito importantes nessa portaria pelos especialistas entrevistados pela Ponte são de que a abordagem de redução de danos prevê “a promoção dos direitos humanos, tendo especialmente em conta o respeito à diversidade dos usuários ou dependentes de produtos, substâncias ou drogas que causem dependência” e que “devem ser preservadas a identidade e a liberdade da decisão do usuário ou dependente ou pessoas tomadas como tais, sobre qualquer procedimento relacionado à prevenção, ao diagnóstico e ao tratamento”. Ou seja, o tipo de prática a ser aplicada é construída em conjunto com a pessoa, seja ela usuária recorrente de drogas ou não, e sem pré-julgamentos.
“O princípio é: as pessoas usam drogas”, sentencia Wander Wilson. “Tem quem não queira parar, tem quem está num processo de entender que parar de usar alguma substância é o melhor caminho e essa mudança de hábito não acontece num estalar de dedos, é um processo na vida, porque a vida de um usuário de drogas nunca está resumida apenas ao uso de drogas”, explica.
E esse processo pode iniciar por várias frentes. Em Pernambuco, desde 2011 existe um programa estadual de redução de danos chamado Programa Atitude. Na cidade de São Paulo, entre 2014 e 2016, a prefeitura criou o De Braços Abertos, que foi a primeira iniciativa voltada a essa abordagem. Essas são duas políticas que priorizavam, por exemplo, a disponibilização de moradia e assistência psicossocial para melhorar a qualidade de vida dos usuários e não tinha foco exclusivo ou finalidade pela abstinência. Avaliações sobre os dois programas indicaram redução do consumo de drogas pelas pessoas que participaram. Há também iniciativas da própria sociedade civil, como o Espaço Normal, criado em 2015 pela Redes da Maré, do Complexo de Favelas da Maré, no Rio de Janeiro.
“A redução de danos não exclui a abstinência”, enfatiza Wander Wilson. “Mas ela parte de um processo em que a pessoa quer parar de usar alguma substância. A questão é não ser uma exigência de julgamento para a pessoa buscar um cuidado.”
O antropólogo ressalta que a redução de danos convive com ações que são complementares, mas também com políticas que ele aponta como “antagônicas” a essa abordagem. “Você tem a diretriz do SUS [portaria de 2005] ao mesmo tempo em que se tem um grande investimento em tratamento em comunidades terapêuticas, que partem de lugares muito diferentes do que é cuidado, do que é saúde”, exemplifica. “A abstinência na sociedade é vista como um valor e essas comunidades vão criando toda uma ideia do que é cuidado baseado em ideias conservadoras. Então existem questões com pacientes da comunidade LGBTQIA+, várias práticas que são colocadas como do ramo da saúde, como o trabalho não remunerado, mas que são exploração ou trabalho escravo”, explica.
Conforme a Ponte já mostrou em reportagem, as comunidades terapêuticas não são equipamentos de saúde, mas de acolhimento transitório visando a abstinência do usuário e sua reinserção social e econômica, com oferta de moradia e “atividades práticas de valor educativo e a promoção do desenvolvimento pessoal”, conforme a Lei de Drogas de 2006. Essa abordagem, apesar de receber muito investimento do poder público, é questionada por especialistas devido às denúncias de violações de direitos humanos nesses espaços, a falta de dados que atestem a eficácia da medida e a ausência de controle de gasto excessivo.
Outra situação é que a redução de danos foi retirada da Política Nacional sobre Drogas, reeditada em decreto pelo então presidente Jair Bolsonaro, em 2019, o que, para os especialistas, representa um retrocesso por fomentar uma abordagem exclusiva em abstinência e com atuação de comunidades terapêuticas, embora a redução de danos não tenha sido claramente proibida.
Os entrevistados também ressaltam que não há como discutir o cuidado sem passar pela política de drogas e pelo olhar de quem é usuário. “O uso de drogas existe em todas as classes sociais. O que acontece é que as pessoas que estão em situação de rua e em uma condição de pobreza são as que mais vão fazer um uso problemático de substâncias, não conseguem se estabelecer em uma rotina de casa, trabalho, ligada à família, acabam perdendo sua fonte de renda e vão parar na rua”, explicou Nathalia Oliveira, da Iniciativa Negra por uma Nova Política de Drogas em entrevista à Ponte em março de 2022. E, no caso dos usuários em situação de maior vulnerabilidade social, a maioria das pessoas são negras.
Especificamente na região da “Cracolândia”, como é conhecida pejorativamente a cena aberta de uso e venda de drogas no centro de São Paulo, Wander Wilson completa que se existem dinâmicas em disputa, que vão do racismo das forças de segurança à especulação imobiliária. “Existe toda uma construção da imagem de zumbi, de pessoas mortas-vivas e que não se considera que as pessoas ali têm ‘n’ problemas e passaram por sofrimentos na vida que estão vinculados ao sistema penal, a questões de gênero. Também se construiu uma ideia falsa de epidemia de crack no Brasil porque existe uma pesquisa da Fiocruz que mostra que não tem como ter uma epidemia de crack se não existe curva epidemiológica.”
Durante a ação no Carnaval, Nathalia também apontou que o poder público atua de maneira diferente a depender do público que faz uso de drogas. “O município vem priorizando ações que são de violência e repressão na cena de uso de droga nas periferias da cidade e a gente entende que não é dessa maneira que vai ofertar cuidado para a população”, destaca. “Toda a população merece cuidado. Desde o sujeito que está ali num território, numa cena de uso como a ‘Cracolândia’, que está sempre na mídia, assim como as pessoas que saem para o Carnaval para se divertir.”