Para promotor, policiais que mataram jovem negro a caminho do trabalho agiram em ‘legítima defesa’

Guilherme Carvalho da Silva pediu arquivamento de inquérito sobre morte de Gilberto Amâncio de Lima, em 2021, relacionando favela na zona sul de São Paulo, onde jovem foi morto, com “altos índices de criminalidade”

Em 16/5/21, protesto contra PMs que mataram Gibinha reuniu 130 moradores da Favela da Felicidade  | Foto: Jefferson Lima

O Ministério Público Estadual de São Paulo pediu o arquivamento do inquérito policial que investigou a morte de Gilberto Amâncio de Lima, 30 anos, por policiais civis, ocorrida em 14 de maio de 2021. Gibinha, como era conhecido, foi morto com quatro tiros enquanto ia fazer um trabalho de tatuagem em um vizinho na Favela da Felicidade, no bairro Jardim São Luís, zona sul da cidade de São Paulo.

Os policiais César Augusto de Oliveira, Emiliano Aparecido Podadera Bechelani, José Ney Lopes alegam que atiraram em Gibinha porque o jovem teria apontado uma arma de brinquedo em direção a eles durante uma abordagem. A família contestou a versão policial dizendo que o jovem não andava armado e nunca teve envolvimento com o crime.

“A gente fica bem chateado, bem triste mesmo, porque como eu sempre disse meu irmão não era envolvido com nada. Meu irmão nunca teve passagem pela polícia”, diz Jefferson Lima, irmão de Gibinha.

No pedido de arquivamento, o promotor Guilherme Carvalho da Silva escreveu que existe “hipótese crível de legítima defesa” por parte dos policiais civis, com base nas provas periciais e no fato de Gibinha ter sido morto num local, segundo ele, de “altos índices de criminalidade”.

“Cabe ressaltar que o contexto fático, constituído por local de altos índices de criminalidade conjugado com a posse de simulacro de arma de fogo, representa hipótese crível de legítima defesa, ainda que putativa”, escreveu o promotor. 

A justificativa do Ministério Público é contestada por Edijane Alves, articuladora da Rede de Proteção e Resistência, movimento social que auxiliou a família do jovem durante o inquérito. Ela classifica como “inadmissível” a associação feita por Silva. 

“Essa fala só legitima aquilo que sabemos bem, a criminalização do povo preto e periférico por parte daqueles que não sabem nada sobre nós. É inadmissível que um promotor justifique sua resposta insinuando que o fato de morar na favela cria fortes indícios de culpa, inclusive a fala dele nos faz questionar se de fato a investigação foi legítima ou se apenas baseada na classe social do Gibinha”, argumenta. 

Edijane coloca em xeque também as conclusões da Polícia Civil sobre a presença de uma arma de brinquedo que teria sido encontrada próximo ao corpo. “Para nós, seguimos acreditando e convencidos que criminoso é quem forja a cena de um crime e não quem por ela é executado”, completa.

A Rede de Resistência e Proteção contrao Genocídio e a família de Gibinha argumentaram que a arma de brinquedo supostamente usada por Gibinha não aparecia numa primeira foto da cena do crime, mas apenas em um segundo registro. A perícia técnica apontou que isso teria acontecido porque foram tiradas de ângulos diferentes.

Integrante da Rede, a advogada Letícia Donza, que acompanhou o caso, disse à Ponte que a solicitação de perícia foi feita em duas fotos que aparentemente indicavam que a arma de brinquedo não estava originalmente no local dos fatos e teria sido “plantada” depois.

Além das fotos analisadas, o celular de Gibinha foi periciado, assim como o de uma testemunha que fez foto do corpo do jovem. A investigação, iniciada em maio de 2021, só foi finalizada neste ano após pedidos de novas diligências para que fossem feitas perícias nas imagens.

Os policiais civis César Augusto de Oliveira, Emiliano Aparecido Podadera Bechelani e José Ney Lopes foram à Rua Um para realizarem a intimação de uma testemunha, de acordo com o Boletim de Ocorrência. 

O relato diz que, quando os policiais César, Emiliano e José foram procurar a casa da testemunha, perceberam a presença de duas pessoas em “atitude suspeita”, sem descrever o que seria essa ação. Eles teriam pedido que os homens erguessem as camisetas, momento em que um deles teria corrido e o outro, Gilberto, sacado uma arma e apontado na direção dos policiais.

Arma de brinquedo supostamente encontrada ao lado do corpo de Gibinha | Foto: reprodução

Somente após atirarem e matarem Gibinha, os homens teriam percebido que a arma era de brinquedo. O promotor entendeu que os policiais agiram por “legítima defesa putativa”, por terem reagido a uma ameaça que, pelas circunstâncias, imaginavam que seria real.

Lembrado como herói

Gilberto tinha o sonho de abrir um estúdio de tatuagem dentro da Favela da Felicidade. A habilidade de desenho apareceu na infância e foi aprimorada na adolescência e na vida adulta. A família contou, em entrevista à Ponte, que Gibinha buscava inspiração em imagens que via na internet e tinha voltado a atuar na profissão com um maquininha que ganhou da esposa. 

“Ele começou desde pequeno, sempre desenhou muito bem, ele que fazia meus trabalhos de arte da escola”, contou a irmã de Gibinha, Pâmela Aparecida Amancio, em entrevista à Ponte. No dia em que foi morto, ele estava a caminho de um vizinho que seria tatuado, segundo a família.  

Familiares e amigos descreveram Gibinha como uma pessoa solidária. Lembraram de quando ele salvou a vida das crianças da comunidade do desabamento de um muro. Evitando a queda sobre elas, o tatuador acabou ferido e foi lembrado como herói. 

Além do trabalho como tatuador, Gibinha trabalha como pedreiro para pagar as despesas com a casa e com o filho — que tinha três anos quando ele foi morto. 

O padrinho de Gilberto, José Cícero da Silva, 38 anos, também conversou com a Ponte e relatou que o tatuador não era envolvido com o tráfico de drogas e não andava armado. 

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“Conheço ele desde criança, nunca vi ele mexendo com nada de errado, era um menino que ajudava a gente sempre que precisávamos. Era um ótimo desenhista, desenhava tudo, era um ótimo garoto. Se perguntar para 90% da favela todos vão falar a mesma coisa, cuidou da bisavó até o fim dela”, contou. 

Outro lado

A Ponte procurou o Ministério Público Estadual de São Paulo sobre o caso. Em nota encaminhada pela assessoria, o órgão se limitou a dizer que “somente se manifesta nos autos”. 

A Ponte não localizou a defesa dos policiais envolvidos.

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