Cabeleireiro diz que era monitorado por outros internos que faziam tratamento, tinha comunicação limitada e foi agredido ao tentar fugir de unidade para qual foi transferido, em março deste ano
Marcelo* é um homem negro de 42 anos, dos quais 20 deles passou pelo sistema prisional e com dependência química. “Era tudo do que você possa imaginar: maconha, cocaína, lança-perfume”, conta. Em março deste ano, quando completou um pouco mais de um ano de liberdade condicional e fazia bicos de cabeleireiro e ajudante geral, ele decidiu buscar meios de tratar o vício. No intervalo de quase uma semana, Marcelo passou por duas comunidades terapêuticas (CT) em São Paulo, onde afirma ter sido vítima de agressões e maus tratos. “Era como se fosse uma prisão”, denuncia.
Na época, ele teve apoio da família para procurar uma unidade de tratamento. “Ele teve uma recaída e, quando se deparou com o pessoal da ‘Cracolândia’, veio pedir ajuda”, lembra José*, irmão de Marcelo, em referência a como é conhecida pejorativamente a cena aberta de uso e venda de drogas no centro da cidade de São Paulo. “Só tive noção do que meu irmão passou quando eu fui buscá-lo [na CT]”, lamenta.
José passou a fazer pesquisas na internet e se deparou com os contatos do Grupo Salvando Vidas, uma espécie de empresa de consultoria que encaminha vagas para comunidades terapêuticas e clínicas de tratamento. A empresa é de propriedade de Fernando da Silva Casoto, detentor do Grupo Casoto. Ele aparece em diversas reportagens relatando sua história como ex-dependente químico e que contaria com pelo menos 85 clínicas de recuperação no Brasil e no Paraguai, de acordo com reportagem de maio de 2022 da Revista IstoÉ.
Em todos os sites vinculados ao grupo, não há identificação de nenhum desses estabelecimentos conveniados, apenas que a empresa oferece tratamentos em diversos estados para dependência em drogas, depressão, esquizofrenia, vício em jogos e ofertas de internações voluntária (com consentimento da pessoa), involuntária (feita pela família sem consentimento da pessoa) e compulsória (via decisão judicial sem consentimento da pessoa).
A partir do contato via WhatsApp, a atendente do grupo recomendou a José a Comunidade Terapêutica Recuperando Vidas, situada em Piracaia, a cerca de 90 quilômetros da capital paulista, e voltada para o público masculino, que seria a mais próxima da residência de Marcelo. Depois de ter tido os primeiros contatos sobre o funcionamento do local, foi agendada uma visita presencial em que compareceram José, Marcelo, a namorada de Marcelo e a mãe dos dois. Lá, eles afirmam que conversaram com a dona do local, Rosangela Evangelista Moreira Santos. “Ela falou que foi uma dependente química, que morou na ‘Cracolândia’ e estava há 14 anos limpa”, lembra José. “Ela fez todo um discurso de como conseguiu montar a clínica e isso acabou convencendo a gente, né?”.
“Pelo que a minha família puxou ali na internet parecia um lugar excepcional para quem tá nesse mundo, para quem tem essa doença”, afirma Marcelo. “Quando a minha família estava lá, trataram superbem. Mas quando a família dá as costas e vai embora, já é outra coisa”.
Pelo site e pelas redes sociais, a CT divulga fotos das áreas externa e interna do espaço, um sítio afastado com lago para pesca, horta, presença de gado, piscina, cozinha, quartos com televisão e videogame, banheiro, com espaço de janelas abertas e banquete farto com alimentação variada. Fotos com pessoas indicadas como residentes e de comemorações como aniversários, Páscoa e festa junina também são divulgadas. Algumas das imagens são repostagens de fotografias mais antigas.
A CT descreve que se utiliza de “uma abordagem humanística”, baseada nos Doze Passos de Alcoólicos e Narcóticos Anônimos, ou seja, tem como preceito o tratamento pela abstinência, e na “Terapia Cognitivo Comportamental“, ou seja, numa explicação simplificada, na identificação de padrões de comportamento disfuncionais e que têm influência negativa na vida, e a terapia se propõe a sugerir outros caminhos para que a pessoa saiba lidar melhor com essas questões.
Em seu site, a Recuperando Vidas ainda informa que atende os públicos feminino, masculino e adolescentes por meio de “internação voluntária e involuntária”, apesar de a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), por meio da Resolução 29/2011, estabelecer que as comunidades terapêuticas só podem prestar serviços de acolhimento para pessoas que queiram ingressar e permanecer voluntariamente, uma vez que não são equipamentos de saúde (como hospitais, por exemplo) e sim locais de convivência entre pares.
A agência, inclusive, dispõe de uma seção de perguntas e respostas sobre o que pode e não pode nas CTs. Internações involuntárias e compulsórias só podem ser feitas em estabelecimentos de saúde, onde há estrutura e equipe médica especializada para isso.
José disse que, quando visitou a Recuperando Vidas, achou estranho ver tranca nas portas dos quartos, mas não viu problemas na estrutura. “Eu fiquei com aquela intuição porque, se é uma internação voluntária, por que ia ter tranca? Mas como o Marcelo quis ficar para tentar ver como era, a gente aceitou”, afirmou.
De acordo com Lucio Costa, psicólogo e diretor-executivo da organização antimanicomial Desinstitute, é comum que pessoas que buscam tratamento para dependência química e as próprias famílias se sintam minimamente acolhidas ao visitarem uma comunidade terapêutica que oferece uma série de espaços de lazer. “Não que sejam todas assim, mas, via de regra, são comunidades com espaços grandes, às vezes com piscina e isso dá um ar de tranquilidade, de relação com a terra, com o mato. Dá uma uma sensação superficial de que é um lugar bom e que ali vai cumprir a finalidade de tratar alguém”, pondera.
Marcelo disse que ali o acompanhamento e as atividades eram feitas por monitores, ou seja, pessoas que já estavam há algum tempo tratando a dependência química na CT e tinham confiança dos gestores. Ele afirmou que teve avaliação psicológica pelo menos uma vez no local. “Era às 7h da manhã o café, daí você tem até as 7h30 para fumar um cigarro. Se você passar das 7h30, 7h31, eles vêm e agridem você com um tapa na cara”, afirma.
“Era igual uma cadeia: voltava para a tranca. Depois tinha uma terapia de uma hora para você falar um pouco da sua vida. Voltava para o alojamento, ficava mais uma hora trancado. Ia para o almoço, mais meia hora de cigarro, voltava para o alojamento. Quando era umas 6h da tarde, mais ou menos, saía para mais uma terapia, que era uma reuniãozinha [com os demais], mais meia hora de cigarro e tranca de novo depois da janta”, descreve.
Ele também relata que ali era dado um copo de remédio, que chamavam de “danoninho” e deixava a pessoa sonolenta durante todo o dia. “A gente não sabia o que era, só davam para tomar”, afirma. Ele, que fazia uso de antidepressivos e remédios para ansiedade, prescritos por um psiquiatra que já o acompanhava antes, disse que a sua medicação própria ficava condicionada aos funcionários entregarem. “Só que eu não sabia se era meu medicamento ou não porque vinha num potinho, não via eles tirando da embalagem, só entregavam”.
Com isso, Marcelo afirma que passou a tentar tomar menos medicamentos porque desconfiava do que estava ingerindo. “Aí eu comecei a fazer exercício físico para tentar cansar e ver se eu saía um pouco dos remédios”, diz.
“E a comida péssima assim, sabe? Não tem proteína nenhuma”, emendou. “[Eu comia] Arroz, feijão, polenta. Dificilmente você vai comer uma carne, difícil mesmo. Para não falar que eu não comi nada de carne, comi um pedacinho de frango uma vez só”, diz.
Segundo ele, o alojamento também não era higienizado e havia percevejos nas camas ao levantar a camisa e mostrar bolinhas de ferimento na barriga e nos braços à reportagem. “Eles trancavam a gente 20h da noite e soltavam às 7h da manhã”, afirma. “Tem piscina, tem academia, tem campo de futebol, mas ninguém usa porque eles [os monitores] não deixam. Eles ficam com um rádio na mão e só pode andar até ali e se você passa, eles mandam voltar para trás”, gesticula com as mãos ao simular uma distância que poderia percorrer.
Tanto Marcelo quanto José relataram que não tiveram acesso a nenhum plano personalizado sobre a rotina específica que teria dentro da CT, apenas os serviços oferecidos.
Lucio Costa aponta que é importante haver um Projeto Terapêutico Singular (PTS) para que o tratamento seja construído e acompanhado tanto pela pessoa quanto pelos seus familiares em conjunto com uma equipe multidisciplinar. Ele, que já foi perito do Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura (MNPCT) de 2016 a 2022, afirma que em geral as CTs não fazem esse tipo de atendimento individualizado.
“Por não ter um PTS, essas pessoas [internadas] não fazem nada absolutamente nada o dia inteiro. O máximo que fazem, de maneira irregular e que em várias situações são comparadas ao trabalho análogo ao escravo, é a laborterapia (terapia através do trabalho), que vai desde manutenção do lugar até a feitura da própria alimentação”, explica.
O relatório mais recente do MNPCT sobre inspeções em comunidades terapêuticas no país data de 2017, em que Lucio Costa participou enquanto perito. “Há relatos em comunidades terapêuticas, como no próprio relatório nacional, de que essas pessoas, como uma justificativa de laborterapia, acabam sendo as seguranças da própria comunidade terapêutica”, enfatiza.
No contrato firmado entre a Recuperando Vidas e a família, consta a permanência mínima de Marcelo por seis meses prorrogáveis e uma descrição genérica das atividades que ele faria: “terapias cognitivas, incluindo grupo de sentimentos e estímulo ao desenvolvimento da espiritualidade, psicólogo individual e em grupo, reuniões para conscientização, laborterapia, acompanhamento terapêutico individual e/ou em grupo, terapia racional emotiva, videoterapia, dinâmicas em grupo com orientação psicológica, terapia ocupacional, atividades físico desportivas e programa de prevenção à recaída”.
Marcelo declarou, ainda, que não tinha livre acesso a meios de comunicação com a família e que o contato era acompanhado pelos monitores quando se faziam ligações ou videochamadas. “Se você foi machucado, eles não vão deixar contar para a família. Eles ficam lá do lado”, diz.
Esse tipo de comportamento também foi verificado por Costa em relação a internos de outras comunidades visitadas por ele em 2017. “Quanto mais disciplinada a pessoa fica dentro da comunidade terapêutica, ou seja, quanto menos ela reclama, mais ela ganha confiança do dono”, explica. “E ganhar confiança do dono faz com que essa pessoa seja colocada por vezes como segurança dos seus parceiros que estão ali internados, ou seja, para impedir com que essas pessoas fujam.”
O valor total do contrato de Marcelo ficou R$ 8.400, divididos em sete parcelas, sendo a primeira referente à matrícula, além de outros gastos como teste de Covid-19, médico psiquiatra, valores para atendimento médico e/ou odontológico de emergência em cidades vizinhas, transporte, além dos itens pessoais de Marcelo. O documento prevê 20% de multa do valor total em caso de quebra de contrato, mas as partes poderiam desistir do contrato em até três dias sem prejuízo.
Foram quase três dias nessa rotina denunciada por Marcelo até que ele passou a questionar as restrições e pedir para falar com os familiares para deixar a CT. A Anvisa prevê “a possibilidade de interromper o tratamento a qualquer momento, resguardadas as exceções de risco imediato de vida para si e ou para terceiros ou de intoxicação por substâncias psicoativas, avaliadas e documentadas por profissional médico” nas comunidades terapêuticas.
Agressões e transferência
Por volta das 16h de 10 de março, ou seja, dois dias depois que o contrato tinha sido formalizado, José conta que Rosangela, dona da Recuperando Vidas, o ligou. “Ela disse que ele estava com crise de abstinência forte, que o pessoal dava medicamento e não estava fazendo efeito e que ele estava totalmente descontrolado”, afirma.
José pediu para falar com o irmão, que apenas dizia que queria ir embora. “Daí a Rosangela me disse que teriam que transferir ele e que precisava da minha autorização. Nisso, eu liguei para a minha mãe, para a minha cunhada, para que a gente decidisse junto porque meu coração estava bem apertado”, disse. “A gente entendeu que ele precisava ficar por causa dessa crise de abstinência e ver se, passando, ele ficava melhor.”
Já no final do mesmo dia, Rosangela enviou um vídeo a José em que Marcelo é contido na área externa da chácara por alguns homens e repete várias vezes: “vocês me zuaram, vocês me zuaram”. “Vocês já me deram gravata… Eu vim porque eu quis”, grita. Ele ainda grita por socorro. Para José, o irmão estava resistindo à transferência porque estaria em abstinência e que não sabia de agressões.
Contudo, Marcelo contou que, naquele dia, ao tentar pedir para falar com a família para voltar para casa, os funcionários teriam lhe informado que apenas poderia sair com autorização dos parentes. “Primeiro, eles [funcionários] me disseram que iam me levar na Rodoviária de Piracaia”, disse. De acordo com ele, um dos funcionários depois falou “como é que é? você vai num boa?”.
“Eu perguntei para ele ‘mas o que tá acontecendo?’ e ele não falou nada. Ele falou [para o outro] ‘gruda’ e já me deu uma gravata, eu abaixei e ele apertou tanto que a minha prótese do dente quebrou no meio, ele puxou o meu cabelo”, afirma. “Eu desmaiei. Acordei de novo e fui para cima também, dei uma ‘bica’ [chute] no cara, ele me desmaiou de novo e eu acordei na ambulância todo amarrado”.
As agressões que o cabeleireiro relata não estão presentes no vídeo, que registra apenas o momento em que ele está sendo carregado por um grupo de homens enquanto alguns cães os rodeiam. “Depois me disseram que iam me transferir para outro lugar. Eu não queria ir, não sabia [onde era]”, relatou.
“Fiquei assustado na hora, me levaram à força, me agrediram, me desmaiaram, me amarraram igual bicho e me jogaram numa clínica de Guarulhos que era pior que a clínica que eu tava”, denuncia. “Era o dia todo trancado. A água era de barro, se você quisesse um copo, tinha que pedir para eles porque a água e a comida nossa e a deles [funcionários] eram diferentes.”
Esse segundo estabelecimento é a Comunidade Terapêutica Caminho e Vida, situada em Guarulhos, na Grande São Paulo, cujo contrato feito com a família de Marcelo após a transferência é idêntico ao da Recuperando Vidas. No Instagram da CT, há vídeos publicados entre 2021 e 2022 de artistas e celebridades, como Naldo Benny, MC Kauan, Nego do Borel, Nicole Bahls, Dado Dolabella, recomendando o trabalho do local e parabenizando “Gustavo”, que é Luis Gustavo Silva Dias, que se identifica no LinkedIn como diretor da Caminho e Vida.
A CT, que consta como associação privada na Receita Federal, aparece sob a presidência de Thiago Silva Dias, que a reportagem não conseguiu confirmar se é parente de Luis Gustavo.
Marcelo afirma que, em cerca de dois dias que esteve na Caminho e Vida, conseguiu fugir uma noite ao destrancar uma das portas do alojamento em que estava, entre os dias 12 e 13 de março. “Eu fugi no meio da chuva, no mato, com frio e com sede. Eu só ficava andando em círculos, sem saber onde eu tava, todo sujo de barro”, conta. “Aí eu vi uma luzinha bem longe e fui seguindo. Lá era como se fosse um bar, mas era barranco dos dois lados e não tinha como subir”, diz.
Em seguida, ele relata que tentava procurar algo para se abrigar e esperar o amanhecer, até que viu uma luz de farol e saiu do mato para tentar pedir ajuda. “Eu vi, do nada, um carro vindo na minha direção. Não tinha como eu ir para a esquerda nem para a direita porque era barranco, estava tudo escuro, não tinha iluminação. Aí, ele bateu o carro na minha perna, eu caí e bati minha coluna numa pedra. E eles [funcionários da CT] desceram do carro, já me deram uma gravata, subiram em cima de mim e me levaram para a clínica de novo”, afirma.
Dali, José foi avisado por um homem que havia se identificado como coordenador da CT, de nome Rodrigo, que Marcelo tinha fugido, mas foi recapturado.
Em um dos áudios, Rodrigo reclama a José a tranca que Marcelo quebrou para fugir: “não é nem por dinheiro, tá, meu irmão? Dei mó assistência para o seu irmão, me identifico, também sou sofredor, cara. Custou vidas, aí, dez anos esse projeto de pé, mano. Seu irmão não quer o bagulho, falei para ele ia ligar para a família. Peguei ele no mato ontem. Ninguém pôs a mão nele. Agora fica quebrando meus bagulho, fica tumultuando na clínica, mano? Você põe seu irmão para fora aí, mano.”
Para Lucio Costa, do Desinstitute, a ideia de que alguém foge de uma comunidade terapêutica “é uma contradição por si só, porque elas [as pessoas] não podem estar privadas de sua liberdade” e que a exclusão como forma de recuperação “não tem nada de científico ou terapêutico”.
Devido a uma cirurgia, José só pôde buscar o irmão no dia seguinte. “Quando eu cheguei lá, eu vi um galpão lá embaixo cheio de grade, com um monte de gente atrás da grade e aquilo me assustou. Foi ali que eu percebi que meu irmão estava sendo maltratado”, lamenta. “Quando o Marcelo saiu, tinha gente gritando lá atrás”, diz, sem saber saber informar o que as outras pessoas estariam gritando.
Marcelo só acreditou que sairia da CT quando os dois entraram no carro de volta para casa. “Ali ele começou a me mostrar os hematomas na costela, a clavícula doendo, os joelhos machucados, o dente quebrado.”
Pedidos de indenização e uma interdição
Ainda em março, depois de tentar passar em duas delegacias onde afirma que não foi atendido, Marcelo registrou as agressões contra a Comunidade Terapêutica Caminho e Vida no 9º DP de Guarulhos, em 23 de março, oportunidade que a reportagem foi à cidade entrevistá-lo. No boletim de ocorrência, registrado como lesão corporal, Marcelo identifica apenas o homem chamado de Rodrigo como autor das agressões e o documento não menciona as denúncias de maus tratos na CT Recuperando Vidas.
Segundo ele, na delegacia, foi orientado fazer um registro mais simples e depois representar formalmente em seis meses para o andamento do caso. Ele também fez exame de corpo de delito na ocasião. À reportagem, a Secretaria de Segurança Pública disse que “orientou a vítima quanto à necessidade de representar criminalmente contra o autor, por se tratar de um crime de ação penal pública condicionada”.
A Ponte localizou ao menos quatro ações judiciais com pedidos de indenização que ainda não foram julgados, impetradas entre 2020 e 2023, no Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP) contra a Caminho e Vida em que parentes de ex-internos alegam maus tratos e agressões. Há também em andamento um inquérito policial sobre supostos maus tratos e internação involuntária contra uma ex-interna da unidade feminina da CT, situada em outro endereço divergente de onde Marcelo estava (que era masculina), mas também em Guarulhos, e que foi interditada pela Vigilância Sanitária em 2022 após inspeção do Conselho Regional de Psicologia de São Paulo (CRP-SP). A reportagem tentou entrar em contato pelos telefones disponíveis da CT para confirmar se a comunidade voltou a funcionar, mas não teve nenhum retorno.
Nas ações judiciais, há o caso de um homem que apontou ter sido submetido a trabalho forçado por 23 dias e que os itens enviados pela família não chegavam até ele. Em outra, um homem relatou que ficava a maior parte do tempo trancado, tinha sido agredido, não tinha como acessar as demais dependências do espaço nem se comunicar e a CT teria o transferido para outra comunidade após uma suposta tentativa de fuga.
Há, ainda, uma mulher que sustentou em ação judicial que foi internada involuntariamente pela família e teria sido agredida na CT, onde “diariamente dormia no chão por falta de cama e colchões, não era oferecida alimentação adequada, ficou muito debilitada, perdeu peso, necessitou de atendimento médico urgente e recebia a resposta de que era ‘frescura’, além do claro desprezo exercido por toda equipe da clínica”.
Em outro pedido, a família de um um homem com deficiência intelectual e que fazia uso de drogas disse ter se sentido enganada porque a CT teria prometido uma série de serviços com uma equipe multidisciplinar de saúde para acompanhá-lo, o que não teria acontecido, além de retenção de documentos que teriam impossibilitado que o paciente conseguisse suas medicações.
À Ponte, a assessoria da Anvisa explicou que “o termo ‘clínica’ é muito amplo e não pode ser utilizado para definir se o serviço é ou não de saúde”, já que algumas CTs costumam se intitular como clínicas. A agência explica que um serviço de saúde é caracterizado pelo “oferecimento pela instituição de alguma atividade privativa de profissional da saúde”, como, por exemplo, atendimento médico, e o espaço deve seguir uma série de regras estruturais para comportar esse tipo de serviço.
Inclusive, a resolução que trata das comunidades terapêuticas veda “a admissão de pessoas cuja situação requeira a prestação de serviços de saúde não disponibilizados pela instituição”, uma vez que as CTs não têm essa obrigação.
Na apuração do CRP-SP sobre a unidade feminina da Caminho e Vida, à qual a reportagem teve acesso, foram constatados “trabalho forçoso sem remuneração, restrição de acesso a meios de comunicação, ausência de profissionais capacitados para atenderem demandas de saúde mental; confinamento e cerceamento da liberdade; e discriminação de orientação sexual”, conforme ofício de 13 de janeiro de 2022, quando o órgão fez uma representação ao Ministério Público estadual (MPSP).
No relatório, é apontado que o CRP tomaria “providências cabíveis” contra a psicóloga Uiara Santos Cayres “no que tange às práticas identificadas e sua corresponsabilidade enquanto profissional que atua em espaço como este, estando em desacordo com os Princípios Fundamentais que regem a profissão”.
Ela, que foi identificada como psicóloga responsável nessa unidade, disse na época, por exemplo, que “a maioria das usuárias chega à CT involuntariamente, no entanto, no ato da internação são conscientizadas de sua situação e convencidas a assinar o termo de internação voluntária, portanto, oficialmente, não existem internações involuntárias”. Atualmente, Uiara Cayres aparece nas publicações da CT Recuperando Vidas como prestadora de serviço.
O MPSP abriu um procedimento para apurar as condições do local e acionou o Departamento de Vigilância Sanitária de Guarulhos, que inspecionou a unidade feminina em 12 de agosto do ano passado. Na ficha, a equipe descreveu que o local “não oferece condições de adequadas para habitabilidade, segurança e para prestação de serviços às internas”, por conter, dentre as irregularidades, infiltrações, fiação exposta, pouca iluminação e ventilação, banheiros em precárias condições de uso, falta de acessibilidade, alguns ambientes sem forro no teto.
O estabelecimento foi interditado e desativado pela Vigilância Sanitária em 17 de agosto de 2022, após a comunicação sobre as condições e encaminhamento das 37 internas aos familiares. A Promotoria de Justiça de Guarulhos arquivou o procedimento após a interdição.
A reportagem procurou o CRP-SP sobre o caso e se houve apurações voltadas à unidade masculina da CT Caminho e Vida e da CT Recuperando Vidas, mas a assessoria informou que “todos os processos, denúncias e fiscalizações do CRP-SP acontecem sob sigilo ético, preservando as partes envolvidas”.
Até a publicação desta reportagem, a CT Caminho e Vida ainda estava com documentação pendente para ser entregue à Vigilância Sanitária. A Prefeitura de Guarulhos disse que “o estabelecimento está sendo monitorando pela Vigilância Sanitária e encontra-se dentro do prazo para cumprimento das solicitações pedidas” e “caso encontre uma situação desfavorável no estabelecimento citado, o mesmo poderá sofrer sanções administrativas”.
Já a CT Recuperando Vidas, em Piracaia, consta com alvará da Vigilância Sanitária vencido em 30 de junho deste ano.
‘Nosso trabalho é no amor’
Procurada, Rosangela Evangelista, dona da CT Recuperando Vidas, disse que não houve maus tratos nem agressões contra Marcelo enquanto ele esteve no estabelecimento em Piracaia. “Ele veio para cá junto com a família, ele veio voluntário (sic), ele aceitou o tratamento. O irmão dele, que eu esqueci o nome, foi responsável pela internação e ele falou assim ‘olha, a minha família está fora. Tudo o que precisar do Marcelo, é comigo’. Passou uma semana, ele entrou em abstinência”, declarou por telefone.
Ela afirmou que Marcelo pediu para ir embora e que entrou em contato com os parentes. “Eu falei: ‘seu irmão está passando por abstinência, ele não quer ficar e a gente não pode segurar porque a gente é uma comunidade de portão aberto’. É uma casa voluntária. E eu falei ‘vocês têm duas opções: ou vocês vêm buscar ele ou vocês transferem ele. O irmão dele autorizou a transferência”, disse. “Quando a remoção chegou, que o irmão dele pagou a remoção, e ele ficou sabendo que não ia para a casa, ele foi para a cima. Os meninos da remoção tiveram que conter ele e colocar dentro da ambulância. Foi isso que aconteceu.”
Rosangela afirmou que não utiliza trancas na comunidade terapêutica e que a indicação de “internação involuntária” no site foi falta de atualização da descrição. “Misericórdia! Eu até convido você para estar vindo aqui, não precisa nem marcar o dia!”, exclamou ao ser questionada sobre a rotina descrita por Marcelo. “A gente não trabalha assim, com tranca, com essas coisas não, porque, se for para sofrer, que fique na rua usando droga. A gente não trabalha dessa forma, de jeito nenhum”, disse.
“Aqui, se entrou em abstinência, a gente não põe para dormir, não, tem que sentir a dor de olho aberto. Existe um cronograma que começa das 7h da manhã até às 17h30, que é a nossa última reunião. Nosso trabalho aqui não é com remédio, nosso trabalho aqui é no amor, é conversando”, enfatizou.
Ela também confirmou que a psicóloga Uiara trabalha no local, mas que não tinha conhecimento sobre a interdição da unidade feminina da CT Caminho e Vida e dos processos com pedidos de indenização, tendo apenas indicado a comunidade porque era “fechada com muro”. “Não, isso eu desconheço, eu não tenho vínculo. Simplesmente a área da dependência química, o que mais tem por aí é comunidade, por isso a gente fala [para] quando a família quer levar uma pessoa para tratar dependência química, para desintoxicação, para ela ir primeiro lá conhecer, ver como é”, declarou.
Rosangela passou o contato da reportagem à Uiara, que não quis falar conosco e repassou a questão a uma advogada identificada somente como “Ellen”, que encaminhou a seguinte nota por WhatsApp:
“Boa tarde, primeiramente gostaria de deixar muito claro que tal denúncia é completamente descabida e as medidas judiciais serão tomadas, tanto na esfera criminal, quanto na esfera cível pois, é inadmissível uma Comunidade Terapêutica que está no mercado há mais de 7 anos, que nunca teve qualquer problema jurídico ser difamada e caluniada dessa forma, mas, para não pairar dúvida quanto a reputação da Comunidade Terapêutica Recuperando Vidas vem refutar todas as denúncias feitas, importante mencionar que a Recuperando Vidas pertence exclusivamente a Elisângela e a Dolores, elas não trabalham com outras Comunidade Terapêuticas, não possuem parceiros de outras Comunidade Terapêutica, portanto, elas são responsáveis pelo que acontece dentro da Recuperando Vidas, e por seus funcionários apenas, a remoção deste paciente não fora feita por ninguém da Recuperando Vidas, e a internação deste em outro local não é de responsabilidade da Recuperando Vidas, além do mais, o tratamento prestado pela Recuperando Vidas é de excelente qualidade, a alimentação também é ótima, tanto que as sócias, assim como todos os funcionários se alimentam da mesma comida servida aos pacientes, não obstante, jamais, teve qualquer tipo de agressão no local, afinal as sócias são pessoas que presam pela excelência do local e não é à toa que ela se trata de uma das melhores Comunidades Terapêuticas da região, ademais, importante deixar claro é impossível ficar no local quem de fato não quer aderir o tratamento, afinal se trata de uma chácara, onde nem ao menos muro e o portão é uma “simples” porteira, portanto, impossível manter alguém involuntariamente, fato este de fácil constatação basta ir até o local.
Quanto a psicóloga Uiara ela é a responsável técnica apenas pela Recuperando Vidas, logo, tanto ela quanto a Comunidade Terapêutica Recuperando Vidas, não têm qualquer vínculo com Juliana e Grupo Casoto.
Por fim a Recuperando Vidas é inspecionada regularmente pelos órgãos públicos, todos os documentos estão de acordo com a legislação vigente, portanto, qualquer denúncia que diga o contrário, é mentirosa.
Atenciosamente departamento jurídico da Recuperando Vidas“
Já pela Caminho e Vida, Luis Gustavo Dias disse que é diretor da unidade masculina há 14 anos e também negou que Marcelo tenha passado por maus tratos e agressões. “Nunca tivemos denúncia de maus tratos. Temos todos os alvarás necessários pra funcionar, né? Na nossa unidade não tem lugar onde a gente isola o paciente, tá? Não temos esse local. Aqui o nosso tratamento é em base de terapia e conscientização”, declarou.
Segundo ele, acontecem fugas em um momento em que “o paciente está em compulsão e obsessão” e que a equipe recaptura esses pacientes por se tratar de zona rural e para evitar invasão em alguma propriedade e que não houve atropelamento. “Como que em seis, em quatro dias numa unidade ele conseguiu sofrer tanto maus tratos dessa forma que ele está dizendo? Isso aí não procede. Se ela [família] abrir um boletim de ocorrência contra a unidade, a gente vai aguardar a intimação policial, nos defender”, declarou. “Nós somos uma clínica de referência aqui no município. Não existe isso de trabalhar com tranca porque uma clínica que tem tranca hoje caracteriza carcerário privado”, prosseguiu.
Sobre a unidade feminina, ele disse que foi fechada e que estava a cargo de outro dono. Já sobre as ações judiciais com pedidos de indenização, ele desconversou e disse que não procedem as alegações. “Eu sou sou responsável pela unidade masculina isso aí não não procede, não procede mesmo porque a gente é vistoriado pela Vigilância Sanitária, a gente é vistoriado pelo Ministério Público”, declarou.
A Ponte tentou buscar o Grupo Salvando Vidas, que intermediou a vaga na CT Recuperando Vidas, mas não teve retorno até a publicação.
*Os nomes foram trocados a pedido da vítima e dos familiares.