Condenado por ‘ser negro’ e presa ao visitar marido em DP são absolvidos pelo STJ

César e Pamela foram condenados por roubo a cinco e seis anos de prisão, respectivamente, com base em reconhecimento irregular; ministros anularam sentenças após dupla ficar presa por meses

Fachada do edifício sede do Superior Tribunal de Justiça (STJ)| Foto: Marcello Casal Jr/Agência Brasil

César Vinícius Pereira Jacintho, 39 anos, e Pamela Alves de Souza, 28, foram absolvidos de condenações por roubo após decisão do Superior Tribunal de Justiça (STJ), que considerou irregular o modo como foi feito o reconhecimento pessoal de ambos. Nos dois casos, que são situações distintas, o procedimento irregular feito pela Polícia Civil paulista foi acatado pelo Ministério Público de São Paulo (MP-SP) e chancelado por juízes do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP). Esse padrão não segue a mudança de interpretação do artigo 226 do Código de Procesos Penal (CPP) que ocorreu no STJ a partir de 2020 e tem tornando nulas identificações feitas sem seguir a legislação. 

A legislação diz que a pessoa suspeita deve ser colocada ao lado de outras que com ela tiver semelhança para que a vítima faça o reconhecimento. 

No caso de César, desempregado à época do crime, o roubo do qual ele foi considerado suspeito  e posteriormente condenado a cinco anos de prisão ocorreu em março de 2022, no Jardim Aricanduva, zona leste de São Paulo. Ele foi absolvido em maio deste ano após a Defensoria Pública de São Paulo entrar com pedido de habeas corpus e anulação da condenação. 

A vítima teve o celular levado por um homem descrito por ela como “afrodescendente, alto, aproximadamente 1,80, forte, nem gordo e nem magro, bigode, cabelo curto”. No pedido ao STJ, o defensor público Leonardo Biagioni expôs que César cumpria apenas uma das características descritas, já que era mais baixo do que mencionado e não tinha bigode. 

“Não é demais, assim, dizer que foi processado e condenado única e exclusivamente por ser negro”, destacou a defensoria. 

Vinte e dois dias depois do crime, policiais civis do 66º DP (Jardim Aricanduva) fotografaram uma pessoa que teria características semelhantes às descritas pela vítima e encaminharam pelo celular a foto a ela, que o reconheceu. A imagem foi encaminhada ao setor de inteligência da Polícia Civil, que identificou o homem na imagem como César. 

Um reconhecimento fotográfico também foi feito a partir desta foto, 39 dias após o roubo, o que motivou pedido de prisão temporária e posterior de preventiva pela delegada Alexandra de G. Pasqualinotto. A sentença de prisão foi dada pelo juiz José Paulo Camargo Magano, da 11ª Vara Criminal, com denúncia oferecida pela promotora Kátia Peixoto Villani Pinheiro Rodrigues. 

A defesa de César apontou no pedido de habeas corpus feito ao STJ que também há indícios de irregularidade neste procedimento. 

Segundo Biagioni, somente foi mostrada a foto de César à vítima. Ele teve mandado de prisão temporária expedido com base no procedimento irregular e foi preso 99 dias depois do roubo ao comparecer de forma espontânea à delegacia. Foi somente nessa ocasião que foi feito reconhecimento pessoal com outras três pessoas colocadas junto a ele. 

Mesmo assim, para o ministro Joel Ilan Paciornik, relator do caso no STJ, o descumprimento do CPP na primeira ação foi o bastante para inviabilizar a prova de reconhecimento tida pelo magistrado como “ilegítima”. 

“Embora as instâncias ordinárias apontem a ratificação desse primeiro reconhecimento, em circunstâncias que teriam seguido as formalidades do referido dispositivo, tais providências, claramente, derivaram da produção probatória ilegítima”, escreveu o desembargador. 

Paciornik destacou ainda que não foram produzidas novas provas que pudessem embasar a condenação de César — não foram encontradas imagens do roubo, o celular não foi achado e uma transação financeira feita após o crime não tinha como destinatário o então suspeito.

O alvará de soltura foi expedido em 9 de março, quando César já completava 10 meses de prisão em regime fechado. 

Pamela foi presa ao encontrar marido na delegacia 

Pamela Alves de Souza foi condenada a seis anos de prisão pelo roubo de uma mochila na República, região central da capital paulista. Desempregada na época dos fatos, ela foi até a delegacia após saber da prisão do marido ao ligar para o celular dele. A jovem ficou oito meses presa até que o ministro Reynaldo Soares da Fonseca anulasse a sentença depois de pedido de habeas corpus feito pela Defensoria Pública.

O roubo ocorreu em setembro na Rua 7 de Abril. Segundo o boletim de ocorrência, a vítima descreveu que foi abordada por um casal. A mulher teria feito jogo de corpo e conseguido o derrubar no chão e dito para que a vítima entregasse a mochila, e na sequência a dupla fugiu. 

A vítima correu até a Praça da República, ainda de acordo com o BO, e pediu ajuda a policiais militares que passaram a procurar pelos suspeitos. O homem foi localizado com a mochila e levado até o 2º DP (Bom Retiro). 

De acordo com o defensor Leonardo Biagioni, Pamela ligou para o marido, que já estava preso, e foi informada sobre o crime. Ao chegar à delegacia, a vítima a teria reconhecido. 

“Note-se que a paciente apenas foi acusada porque foi à Delegacia, quando soube que seu companheiro havia sido preso, sendo contatada para comparecer ao local, como familiar”, escreveu Biagioni ao STJ. 

Pamela negou envolvimento, assim como o marido, que afirmou que estava acompanhado por outra mulher no momento do roubo. O procedimento de reconhecimento não seguiu o artigo 226 e neste caso sequer foi feito de maneira formal. 

Mesmo assim, o delegado Marcel O. Madruga de Souza pediu a prisão da jovem e a promotora Kátia Peixoto Villani Pinheiro Rodrigues ofereceu denúncia. A condenação foi chancelada pelo juiz José Paulo Camargo da 11ª Vara Criminal. Importante destacar que, em juízo, a vítima voltou atrás e não reconheceu Pamela novamente. 

Para o desembargador Reynaldo Soares da Fonseca, relator do caso no STJ, decidiu em maio deste ano pela absolvição de Pamela alegando inexistência de provas contra ela. 

“Como se vê, o reconhecimento da paciente pela vítima se deu apenas na fase inquisitiva e em total descumprimento ao procedimento do art. 226, do Código de Processo Penal (CPP)”, escreveu. 

Negligência estatal

A advogada criminalista Débora Nachmanowicz, que analisou os dois casos a pedido da Ponte, fala em “negligência estatal” ao comentar a atuação das autoridades, o que ajuda a entender como casos como o de César e Pamela terminam em condenação no tribunal estadual e consequente absolvição em instância superior. 

“Eu entendo que existe uma negligência estatal. Uma negligência no dever de atuação dessas autoridades tanto na fase administrativa, que é a policial, quanto na fase judicial”, diz Nachmanowicz. 

Ela argumenta que o Ministério Público é um órgão “fiscal da lei” e que “não deveria simplesmente chancelar o relatório final [da polícia] e oferecer uma denúncia em um caso que existe evidentemente um erro no procedimento que a gente sabe que vai causar nulidade e que deve ser reconhecido pelo promotor por causa de nulidade”. 

Nachmanowicz cita um artigo publicado em 2022 na coletânea Reflexões sobre o reconhecimento de pessoas, produzida pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), que analisa como o cumprimento do artigo 226 é avaliado pelos juízes de São Paulo. 

O artigo “Reconhecimento pessoal no Palácio dos Bandeirantes”, de Maurício Stegemann Dieter, Rafael Dezidério de Luca e Gabriel Regensteiner, levanta dados de 147 decisões do TJSP dividas em três momentos: antes da jurisprudência de 2020 que reconheceu nulidade em sentença baseada no reconhecimento irregular, logo depois dessa mudança de interpretação e o cenário de abril de 2022. 

A conclusão foi de que grande parte das decisões ainda se embasa em decisões antigas do STJ ou do Supremo Tribunal Federal (STF), consideradas superadas, para continuar aplicando sentenças com base em reconhecimento que fogem a legislação. 

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“Nesse cenário, torna-se difícil dizer que o TJSP seja uma corte apartada do entendimento jurisprudencial dos tribunais superiores, pois boa parte das decisões analisadas está embasada em julgados do STJ e/ou do STF, embora a referência seja a posição já superada dessas cortes superiores; por outro lado, é certo que grande parte das decisões ignora completamente as constatações científicas da falibilidade da memória”, diz o texto. 

Outro lado 

A Ponte procurou o Ministério Público e o Tribunal de Justiça para questionar sobre o motivo do reconhecimento irregular não ter sido questionado pelos promotores em ambos os casos citados.

Por meio da assessoria, o TJSP disse que não emite nota sobre questões jurisdicionais e que os magistrados têm “independência funcional para decidir de acordo com os documentos dos autos e seu livre convencimento”.

A Secretaria de Segurança Pública (SSP) também foi acionada pela reportagem questionando a ausência do cumprimento do CPP. Também não houve retorno. 

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