Descrição de imagens das câmeras mostra que Jorge Eduardo Rodrigues Filho teria se rendido aos policiais, dizendo “perdi, senhor” e avisando que sua arma era de brinquedo, mas mesmo assim foi morto com 7 tiros; caso foi encaminhado ao tribunal do júri
No final de semana em que o ajudante geral Jorge Eduardo Rodrigues Filho completaria 22 anos, um grupo de cerca de 20 pessoas, entre amigos e familiares, organizou um protesto na rua Coronel José Venâncio Dias, em Pirituba, na zona oeste da cidade de São Paulo, para pedir justiça. O jovem foi morto com sete tiros por policiais militares em novembro do ano passado. Em abril, o caso foi encaminhado ao tribunal do júri.
Jorge fazia aniversário em 19 de agosto, data que agora virou motivo de luto e de luta para quem o conhecia. O protesto, apoiado pela Rede de Proteção e Resistência Contra o Genocídio, ocorreu entre 16h e 17h30 deste domingo (20/8), com faixas, disparo de rojões e gritos de “justiça”. Além da condenação dos PMs que atiraram em Jorge, Luiz Guilherme Pascoaloto da Silva e Matheus Luciano de Oliveira Barros, o ato pediu “o fim do genocídio da população pobre e preta das periferias”.
Segundo a Polícia Militar, Jorge teria roubado uma motocicleta com uma pistola de brinquedo e, após ser localizado pela PM, batido e caído da moto. Na versão dos policiais, mesmo caído no chão, sacou a arma falsa e apontou na direção deles, que atiraram pensando que fosse uma pistola real — neste caso, os PMs teriam agido em legítima defesa, por acreditarem que corriam risco de vida, e não responderiam pelo crime.
As imagens das câmeras corporais usadas pelos policiais, contudo, apontaram indícios de que eles atiraram em Jorge quando ele já havia se rendido e sabendo que a arma era de brinquedo. Em abril, a Procuradoria de Justiça Militar apontou que a dupla de PMs, “em tese”, praticou homicídio doloso (com intenção de matar) contra a vida de um civil, um tipo de crime que é julgado pela justiça comum. Por isso, o caso saiu da justiça militar e foi encaminhado ao tribunal do júri.
‘Só porque a gente é pobre’
“São nove meses sem satisfação. Todo dia eu tenho que ser forte porque eu sei que preciso lutar por justiça”, declarou a mãe de Jorge, a empregada doméstica Agatha Andreza Pires Ferreira, 37, durante o protesto deste domingo. Ela afirma que não há justificativa para a conduta dos PMs, independente do que o jovem estivesse ou não fazendo. “Eles mataram e pronto, e a gente sabe que não tem pena de morte no Brasil. A polícia é bem treinada, existem outros tipos de coisas que eles poderiam fazer do que matar. O Jorge não trocou tiros com ninguém.”
“Eterno filho de Deus” e “descanse em paz” eram alguns dos dizerem exibidos pelos manifestantes em camisetas estampadas com o rosto de Jorge durante o ato. A Ponte revelou a história em reportagem publicada em janeiro deste ano.
Maria das Dores Pires Ferreira, 62, avó de Jorge, esteve com o rapaz em seu último dia de vida, em 22 de novembro de 2022. Ela afirma que o neto, que morava em sua casa, saiu por volta das 19h45, depois de passar um bom tempo se arrumando. “Eu achei que ele fosse se encontrar com a namorada, ele disse que estava com fome e que não iria demorar para voltar e jantar”, diz.
Por volta das 23h, porém, uma vizinha e um amigo de Jorge foram até a casa de Maria contar que o neto havia sido preso. Pouco depois, enquanto Maria conversava com seu filho sobre o que tinham lhe dito, o amigo de Jorge reapareceu. Dessa vez, estava chorando. Disse que Jorge não havia sido preso, mas morto pela polícia. “Eu já fiquei desnorteada e liguei para a mãe dele.” Quando recebeu a ligação, Agatha conta que o “chão se abriu”, ao descrever o que sentiu no momento.
Há meses sem o neto por perto, Maria não tem ânimo para continuar trabalhando como costureira, seu ofício há 50 anos. “A vida está muito difícil. Desde fevereiro eu não consigo mais ligar a máquina. Estou tentando sobreviver.”
Empinar pipa, jogar futebol, ir à bailes funk, andar de moto e assistir a vídeos no Youtube eram algumas das atividades que Jorge gostava de fazer nos momentos de lazer, conta o primo Anderson Júnior, 19 anos, que trabalha como repositor. “Mesmo passando as necessidades dentro de casa, as coisas apertadas ele sempre estava felizão brincando”, contou.
Durante o protesto, Agatha disse aos amigos do seu filho: “Só porque a gente é pobre, se estivermos num canto a gente já está enquadrado, já é insultado, já é violentado, agredido, isso não pode acontecer”.
Ao final da manifestação, familiares e amigos soltaram rojões e gritaram “Jorge presente” e “justiça”. Os amigos do rapaz também circularam com motocicletas na rua José Venâncio Dias buzinando para atrair a atenção dos moradores. O ato seguiu com tranquilidade até o final, quando se encerrou, por volta das 17h30.
Segundo a psicóloga Marisa Feffermann, articuladora da Rede de Proteção e Resistência Contra o Genocídio, presente na manifestação, é preciso pensar qual é o nosso papel enquanto sociedade diante de casos de jovens mortos pelo Estado. “Agora o nosso lema é: nenhum menino a menos, nenhuma menina a menos.”
Entenda o caso
O boletim de ocorrência assinado pelo delegado Guilherme de Souza Rabello, do 33º DP (Pirituba), aponta que, por volta das 23h de 22 de novembro do ano passado, o cabo Luiz Guilherme Pascoaloto da Silva e o soldado Matheus Luciano de Oliveira Barros, ambos do 49º Batalhão da PM Metropolitano (BPM/M), receberam um chamado de roubo de uma motocicleta Honda CG160 Titan. Os policiais conseguiram encontrar o veículo na Estrada de Ligação, na altura do numeral 2.300, no bairro Residencial Sol Nascente, na zona oeste. Mesmo com a placa retirada, a moto foi localizada com informações das vítimas e também via rastreamento.
Os PMs afirmam que a moto teria batido na via e ao lado dela, caído, encontraram Jorge, descrito como “um indivíduo, então desconhecido e que, abordado, sacou o que aparentava ser uma arma de fogo”. Eles deram oito tiros, dos quais sete atingiram o jovem. Pascoaloto relata que disparou cinco vezes enquanto Barros informou que deu três tiros. Com o rapaz foi encontrado um simulacro de pistola de plástico, ou seja, uma arma de brinquedo.
Ainda segundo os boletins, os PMs encontraram outra vítima de um roubo de uma moto modelo Kawasaki Z650 na mesma estrada. Ela disse no 33º DP (Pirituba) que foi abordada por dois homens em uma moto Honda CG160 Titan enquanto dirigia pelo local. A dupla de ladrões teria feito “menção de portarem uma arma de fogo” e o mandaram descer da motocicleta e deixá-la no “pezinho”.
Os assaltantes teriam, então, fugido com as motocicletas, um na Kawasaki e o outro na Honda CG160. Com as informações do rastreio, os policiais encontraram os dois assaltantes nas respectivas motos, quando Jorge perdeu o controle e caiu no meio-fio com a Honda CG160. A moto Kawasaki e o outro suspeito não foram localizados.
Na versão do B.O., Jorge teria sido reconhecido por foto pelo proprietário do Honda CG160, que foi até a delegacia. Não há no boletim a menção do tipo de foto usada nem as características dos assaltantes. A vítima diz que foi roubada por “dois indivíduos a pé”, que faziam menção de estarem armados, na Rodovia Anhanguera. Ele acionou a PM e a empresa de rastreamento da moto.
Segundo o inquérito policial militar (IPM), uma investigação feita pela PM, em depoimento dado em 10 de janeiro, a vítima dona da moto Honda CG160 afirmou ter reconhecido Jorge pessoalmente quando levado ao local onde o rapaz estava caído no chão, morto. A vítima que teve a Kawasaki roubada também foi levada ao local onde estava o corpo Jorge e o teria reconhecido como um dos assaltantes, por meio da roupa e capacete. Todos esses reconhecimentos desrespeitam as normas previstas no artigo 226 do Código de Processo Penal, que exigem que a vítima faça uma descrição prévia do autor do crime e que a pessoa a ser reconhecida seja colocada entre outras parecidas com ela.
Não foram localizadas pela equipe do Departamento Estadual de Homicídios e de Proteção à Pessoa (DHPP) da Polícia Civil câmeras de segurança no local nem testemunhas presenciais. A equipe de perícia do DHPP relatou que o corpo de Jorge tinha 11 ferimentos de perfurações, entre marcas de entrada e saída dos tiros. Na Polícia Civil, o inquérito ainda não foi concluído.
Em 31 de janeiro de 2023, o promotor de justiça substituto do Ministério Público Estadual de São Paulo (MPSP) Rodrigo Alves Gonçalves solicitou a juntada das imagens das câmeras corporais do dia dos fatos da equipe de PMs que abordou Jorge naquele dia. As imagens não foram juntadas e o MPSP não voltou a requerê-las desde então.
Já o relatório do IPM aponta que os policiais portavam câmeras corporais, apesar disso o PM Pascoaloto acionou o áudio somente no meio da abordagem. A Ponte não teve acesso aos vídeos das câmeras corporais, mas a descrição das cenas feita no IPM relata que Jorge, já caído, levanta a blusa e que a arma falsa estaria ao seu lado. Nesse momento, Jorge fala “perdi, senhor” e, levando a mão em direção à pistola falsa, “é de brinquedo, é de brinquedo”. É quando recebe os tiros. Os PMs alegaram, em seu depoimento, que não ouviram o que o jovem havia dito.
Ainda no inquérito da Polícia Militar, é indicado que nenhum dos policiais que participaram da abordagem acionaram o áudio dos equipamentos desde o início da ação. Os áudios de Pascoaloto só são acionados após os cinco disparos feitos por ele, isso depois de que é advertido pelo PM Barros. O PM Pascoaloto diz que houve “erro no dispositivo” em parte da captação de áudio.
Em 28 de fevereiro, o coronel subcomandante PM José Alexander de Albuquerque Freixo concluiu no IPM que os dois policiais agiram em legítima defesa. O Ministério Público, porém, teve outro entendimento. Em 17 de abril, o 2º promotor de justiça militar Edson Correa Batista apontou que “há em tese, o crime doloso contra a vida de civil”, e requereu o encaminhamento do processo para o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo.
Em 25 de abril, a juíza Maria Elisa Terra Alves, da justiça militar, se declarou incompetente no que se refere ao crime doloso contra a vida de civil e determinou o encaminhamento de cópias do IPM ao tribunal do júri.
Em nota, a Defensoria Pública de SP, através do Projeto Rede Apoia, afirmou à Ponte que passou a acompanhar recentemente o caso da morte decorrente de intervenção policial de Jorge Eduardo Rodrigues Filho. E que “o caso está em fase de inquérito policial e ainda faltam diligências a serem realizadas. Como é praxe, a Defensoria se manifestará apenas no processo.”
O que dizem as autoridades
A reportagem questionou a Polícia Militar e a Secretaria da Segurança Pública sobre o andamento das investigações, sobre o uso das câmeras corporais pelos policiais que acionaram os equipamentos apenas no meio da abordagem, assim como sobre se os PMs envolvidos na ação continuam trabalhando normalmente.
A Ponte também perguntou se os PMs seguiram o procedimento correto ao atirarem em Jorge após o mesmo se render e afirmar que a arma era de brinquedo.
Ao Ministério Público de São Paulo, a reportagem perguntou por que o órgão não voltou a requerer as imagens das câmeras corporais no inquérito civil. Também foi solicitada uma posição do MP a respeito da ação dos dois PMs no caso.
Até o momento nenhuma das instituições respondeu aos questionamentos feitos pela reportagem.