Trio de jovens é condenado a 42 anos após serem reconhecidos em foto do Facebook

Família de Bruno, Jeferson e Paulo falam em prisão injusta; especialistas ouvidos pela Ponte defendem que reconhecimento pessoal precisa seguir parâmetros da lei e recomendações no CNJ

Bruno, Jeferson e Paulo estão presos desde maio do ano passado | Foto: Arquivo pessoal

O ajudante geral Bruno Araújo Batista de Lima, 26 anos, o atendente de farmácia Jeferson da Silva Soares, 22, e o pedreiro Paulo Santos Souza Júnior, 26, foram presos sem saber do que estavam sendo acusados, contam os familiares. O trio teve a participação ligada a um roubo por aparecer em uma foto publicada no Facebook de um suspeito preso anteriormente. Pelo crime, cada um recebeu pena de 42 anos de prisão, fato que desesperou as famílias que alegam inocência. 

“A gente vê que está acontecendo uma série de confusões. Às vezes pela pessoa ser negra, jovem, não ser muito bem favorecida financeiramente, ela já nasce condenada no nosso país. Nós sabemos que o preconceito existe”, diz a servidora pública Luciana Soares Matos, 37 anos, irmã de Jeferson. 

Preso desde maio de 2022, o trio é acusado de participação em um roubo ocorrido um mês antes em Itaquaquecetuba (Grande SP). Três pessoas da mesma família, entre elas uma mulher grávida, foram abordadas enquanto estavam em um carro por volta das 23h. Segundo o relato do boletim de ocorrência, quatro homens pararam o veículo e, sob ameaça armada, os levaram até uma casa em construção. 

Há inconsistência nos relatos das vítimas. Um ponto em conflito é como eles foram levados até o local onde foram mantidos reféns. Uma delas contou que o trajeto foi feito no carro da família. Versão diferente da apresentada pelas demais, que disseram ter trocado de veículo e terem sido transportadas em um automóvel que estava com os criminosos. 

Essa diferença no relato não foi apurada pela Polícia Civil, que concluiu o inquérito sem que o carro ou demais pertences das vítimas fossem encontrados. O pedido de indiciamento do grupo se baseou apenas no reconhecimento feito primeiro com uma foto de rede social e depois confirmado na delegacia, em contradição às diretrizes aprovadas em dezembro do ano passado pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) sobre esse tipo de procedimento.

A diferença nos depoimentos é crucial para entender a forma como os investigadores chegaram até Bruno, Jeferson e Paulo. As vítimas contaram que uma delas estava com o celular em mãos durante o transporte até a casa, mas que jogou o aparelho para baixo do banco quando foi ameaçada por um dos criminosos. 

O roubo continuou e quando chegaram até a casa em construção, o grupo não teria conseguido fazer transferências das contas das vítimas porque não havia internet no local. A família foi liberada e registrou boletim de ocorrência relatando a situação e informando que o carro foi levado. No primeiro BO não é informado o roubo de celulares das vítimas, mas o relatório final da investigação inclui que um aparelho da família foi levado.

Ocorre que. dois dias depois, uma das vítimas contou ter conseguido rastrear a localização do celular que teria sido deixado no carro. Ela disse à polícia ter ido até o local indicado para tentar obter câmeras de segurança, mas chegando ao estabelecimento teria visto os quatro criminosos que o abordaram na porta do estabelecimento. O BO não deixa claro que horário essa situação ocorreu. 

Assustada, conforme relatou, a vítima procurou ajuda policial e retornou ao local com dois agentes que detiveram um suspeito. Sem flagrante, ele foi ouvido na Delegacia de Itaquaquecetuba e acabou detuido por ter um mandado de prisão anterior aberto. Não há no inquérito imagens do bar e nem esclarecimentos se o local tinha câmeras de segurança ou algo que pudesse ajudar a confirmar essa versão.

O relatório assinado pelo delegado Carlos Eduardo P. Chrispim diz que a partir da prisão desse homem foi possível, com auxílio das vítimas, encontrar o perfil dele em uma rede social onde “foram extraídas fotografias da rede social Facebook dos suspeitos”, indicando a participação de Bruno, Jeferson e Paulo. Não fica claro no texto quem fez a investigação que chegou na foto publicada anos antes e nem por qual motivo a imagem foi usada para fazer o reconhecimento. 

O delegado descreve que, após a identificação via Facebook, as três vítimas fizeram o reconhecimento fotográfico do trio na delegacia e confirmaram que eles seriam os autores do roubo. Além disso, elas descreveram o que cada um teria feito durante a abordagem: Jeferson teria ficado no banco do passageiro durante o trajeto até a casa e apontado arma para as vítimas; Bruno seria o responsável pela primeira abordagem e ele teria batido no vidro do carro com uma arma; Paulo é quem teria dirigido o automóvel. 

Ocorre que as vítimas disseram no primeiro depoimento que ficaram com a cabeça abaixada durante a ação a mando dos criminosos. O fato não foi questionado pelo delegado e nem pelo procurador do Ministério Público do Estado de São Paulo (MPSP) Gustavo dos Santos Montanino, que ofereceu denúncia contra o trio. 

Na audiência de instrução, ocorrida em janeiro deste ano, duas das vítimas não reconheceram Jeferson como participante do roubo. A única que reconheceu a participação em juízo mudou a descrição do que ele teria feito no crime — disse que Bruno foi quem apontou a arma durante o trajeto até o cativeiro entrando em contradição com o depoimento que prestou ao delegado. 

Houve mudança de versão também em relação ao reconhecimento de Paulo. Uma das vítimas, na audiência, não o apontou como participante. 

Nem o carro roubado, nem o celular supostamente subtraído foram encontrados com o trio, fato que foi apontado pelas defesas, mas que não impediu a condenação deles em fevereiro deste ano, promovida pelo juiz Sérgio Cedano da 2ª Vara Criminal do Foro de Itaquaquecetuba. 

Eles foram inicialmente condenados a 19 anos de prisão, mas o promotor Gustavo dos Santos Montanino pediu revisão da pena, o que alterou a condenação para 42 anos em regime fechado. 

Reconhecimento irregular 

O Código de Processo Penal (CPP) tem um artigo dedicado à forma como o reconhecimento pessoal deve ser feito em sede policial. O texto previsto no artigo 226 diz que quando houver necessidade de realização do procedimento, a vítima/testemunha deve primeiro fazer uma descrição da pessoa a ser reconhecida. 

Essa pessoa deve ser colocada ao lado de outras que tiverem semelhança com ela e assim o procedimento deve ser realizado. Desde 2020, há um entendimento do Superior Tribunal de Justiça (STJ), de que o reconhecimento deve seguir as formalidades previstas pelo CPP e que o descumprimento torna inválido esse tipo de prova. 

No passado, o CNJ aprovou uma resolução com diretrizes que norteiam a forma como o reconhecimento deve ser feito. No caso citado, o reconhecimento deixou de cumprir o que pede o texto em seu artigo 5º, no parágrafo segundo. 

“A inclusão da pessoa ou de sua fotografia em procedimento de reconhecimento, na condição de investigada ou processada, será embasada em outros indícios de sua participação no delito, como a averiguação de sua presença no dia e local do fato ou outra circunstância relevante”. 

A investigação também violou o que pede a diretriz no artigo 8, parágrafo segundo, já que usou fotos de rede social para vinculação de Bruno, Jeferson e Paulo ao crime.

“A fim de assegurar a legalidade do procedimento, a autoridade zelará para a não ocorrência de apresentação sugestiva, entendida esta como um conjunto de fotografias ou imagens que se refiram somente a pessoas investigadas ou processadas, integrantes de álbuns de suspeitos, extraídas de redes sociais ou de qualquer outro meio”. 

O relatório final indica que a investigação usou o método show-up, desencorajado pelo CNJ. Doutor e mestre em Ciências Criminais pela PUC-RS (Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul) e um dos principais especialistas brasileiros em psicologia do testemunho, Gustavo Noronha de Ávila explica que esse procedimento é unanimemente condenado pela literatura científica da psicologia do testemunho. 

“O show-up é o ato de mostrar à vítima apenas uma foto da pessoa ou uma só pessoa presencialmente. Esse é o procedimento com maior carga de subjetividade possível, ou seja, estamos indicando mesmo que indiretamente pela falta de outras opções essa pessoa como a responsável pelo delito”, explica o especialista em entrevista à Ponte

Autor do livro Falsas memórias e sistema penal: a prova testemunhal em xeque e participante do grupo de trabalho promovido pelo CNJ para tratar sobre o reconhecimento pessoal, o pesquisador defende que o procedimento seja feito seguindo padrões como um número de pessoas ao lado de quem se deseja reconhecer.

“O que se indica internacionalmente, daí vão ter autores que vão dizer sobre um número mínimo de pessoas para compor esse alinhamento, mas se fala em ter quatro ou cinco pessoas para compor e que sejam sabidamente inocentes”, diz Noronha de Ávila. 

O pesquisador expõe ainda que há problemas em reconhecimentos que seguem o que ocorreu neste caso: as vítimas foram primeiro apresentadas a uma foto dos suspeitos e depois fizeram o reconhecimento em solo policial. 

“O nosso cérebro costuma identificar as categorias, as pessoas, as figuras, até mesmo informações com base num critério que a gente chama de critério de familiaridade. Ele funciona mais ou menos como um processador analógico, é seletivo e escolhe aquelas informações que vão ser preservadas, já que, claro, a capacidade dele é limitada. Nós temos memórias do nosso cérebro que acabam se perdendo pela falta de reforço”, coloca. 

É justamente esse o problema. “Nesse sentido, se a pessoa já teve um contato prévio com a imagem da suspeita da polícia, e depois é feito um segundo reconhecimento, no qual ela aponta essa suspeito, sendo que ela já teve um contato prévio, isso, sem dúvida nenhuma, está induzindo, mais do que uma sugestão, na verdade, seria uma situação de indução mesmo, porque essa pessoa já teve o contato prévio, já teve uma indicação de quem seria o responsável por esse delito”, conclui. 

A advogada criminalista Débora Roque também vê problemas na forma como o reconhecimento pessoal foi feito e diz que seu entendimento é de que a foto da rede social não poderia ter sido apresentada para as vítimas. 

“No processo penal quem tem que provar a culpa é o Estado, infelizmente na grande maioria dos casos isso se inverte, e a defesa tem que provar a inocência. O que viola o Estado Democrático de Direito e permite esse tipo de processo, onde pessoas são condenadas com provas frágeis”, afirma. 

Jovens e trabalhadores

A esposa de Bruno Araújo, Ewelyn Lira da Silva, 23 anos, deu à luz ao segundo filho do casal enquanto o marido já estava preso. A criança de um ano só viu o pai duas vezes e o filho mais velho, 3, apenas uma vez desde que foi preso. 

“Quando isso aconteceu meu filho [mais velho] ficou doente na primeira semana. Agora direto ele fica doente. Ele começa a chamar o pai e perguntar se ele não vai chegar. Eu falo que o pai dele tá trabalhando”, relata a jovem, que vive de bicos como faxineira e manicure.

A renda da casa vinha do trabalho de Bruno como ajudante geral em uma fábrica de materiais plásticos. A esposa conta que no dia do assalto o marido estava com ela e com filho mais velho. Já na data em que os suspeitos teriam sido vistos em um bar por uma das vítimas, Ewelyn afirma que o jovem estava no trabalho e que não tinha costume de frequentar bares. 

“A gente ia para igreja e ele continua indo lá dentro [da prisão] também. Desde quando ele entrou, não parou”, comenta.

Bruno é irmão de Talita Araújo Batista de Lima, 30 anos. Além da dor e angústia de ter o irmão preso, a jovem também luta para provar a inocência do marido Paulo. Ela conta que no dia em que o mandado de prisão foi cumprido, os policiais chegaram até a casa por volta das 6h da manhã e reviraram o imóvel da família. 

Uma cômoda da casa foi quebrada durante a busca dos policiais na residência. O filho do casal, um menino de quatro anos, presenciou a cena da prisão do pai que, conforme relata Talita, não entendia do que estava sendo acusado. 

“Eram cinco ou seis policiais mais ou menos. Eles puxaram meu marido da cama e nós não estávamos entendendo nada. Meu filho acordou chorando assustado e os policiais começaram a falar que ele era o mandante e ele ficou perguntando ‘mandante do quê?’”, relembra Tatita. 

Família de Paulo diz que polícia agiu com truculência durante cumprimento de mandado de busca e apreensão | Foto: Arquivo pessoal

A jovem fala que Paulo trabalhava como pedreiro e que era considerado “de confiança” pela sua clientela. Desempregada, ela não tem conseguido visitar o marido com frequência e conta com ajuda de familiares para conseguir ir até o presídio em São Vicente, cidade distante 46 quilômetros de Itaquaquecetuba (cálculo feito pelo Google Maps). 

Ela conta que o marido estava trabalhando no dia em que a vítima teria avistado suspeitos em um bar. “Era só o que ele fazia, trabalhar. Quando queria beber, comprava uma cervejinha e bebia em casa. Esse era o dia-a-dia dele. Não saia assim de tarde em casa. Todo dia era a mesma rotina. Saía e chegava no mesmo horário”, diz. 

Já Jeferson foi à delegacia por conta própria, após a polícia não encontrá-lo na casa em que vivia com os pais e o irmão. Confuso com a situação e sem saber do que estava sendo acusado, ele foi sozinho até o DP e segue preso desde então. 

“Ele tomou banho, pegou o papel [cópia do mandado de prisão], chamou o Uber e foi sozinho, porque ele falou assim ‘deve estar havendo alguma confusão’”, conta a servidora pública Luciana Soares Matos, irmão de Jeferson. 

Jeferson trabalhava há alguns meses como atendente de farmácia e Luciana conta que ele pretendia estudar para seguir atuando nesta área. “Ele estava correndo atrás para já iniciar a faculdade de Farmácia, que é uma área que ele estava se dando bem, que estava gostando. E os planos dele foram interrompidos através dessa situação da prisão”, diz Luciana. 

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Ela lembra ainda que o irmão estava trabalhando no dia em que teria sido visto no bar e que no dia do roubo ele estava em casa após ter procurado atendimento médico por uma indisposição. 

As três familiares relatam à Ponte que a foto em que Bruno e Jeferson aparecem junto do suspeito é antiga e que eles conheciam o homem, mas não tinha relação próxima ou de amizade com ele. 

Outro lado 

A Ponte procurou o MPSP, o TJSP e a Secretaria da Segurança Pública de São Paulo (SSP-SP) questionando o motivo do artigo 226 não ter sido seguido no âmbito policial e também porque mais provas não foram produzidas, além de pedir entrevistas com o promotor, o juiz e o delegado responsáveis pelo caso. 

Ao MP e TJ foi perguntado como essa irregularidade não foi alvo de anulação de provas ou de questionamento.

Por meio de sua a assessoria de imprensa, o TJSP respondeu que não emite notas sobre questões jurídicas e que os magistrados têm independência funcional para decidir de acordo com os documentos dos autos e seu livre convencimento. SSP e MPSP não responderam até a publicação deste texto.

A SSP enviou nota que não responde aos questionamentos da reportagem. “A Polícia Civil esclarece que o caso foi investigado como roubo de veículo na Delegacia de Itaquaquecetuba. Na ocasião do crime, os homens citados foram presos durante os cumprimentos de mandados de prisões expedidos pela Justiça. Na delegacia, todos foram reconhecidos pessoalmente pelas vítimas e encaminhados para a cadeia pública da região, onde, já em fase processual, foram decretadas as prisões preventivas”, escreveu.

*Reportagem atualizada às 9h53min do dia 5 de setembro de 2023 para incluir a nota da SSP.

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