Isailton Luís Fernandes Silva, 27 anos, foi condenado a dez anos por roubo; ele foi à delegacia visitar o pai e acabou apontado como coautor; reportagem da Ponte foi usada em pedido de revisão e habeas corpus
O entregador Isailton Luis Fernandes Silva, 27 anos, foi absolvido duas vezes por um crime que não cometeu. Mesmo assim, ele ficu quatro anos preso. Isailton foi condenado a dez anos por roubo, depois de ser apontado como coautor do crime ao aceitar voluntariamente participar como filler (ou dublê) de um reconhecimento pessoal.
Para o Superior Tribunal de Justiça (STJ) e para o Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP), o procedimento não seguiu o que ordena o artigo 226 do Código de Processo Penal (CPP) e a sentença foi baseada apenas nessa prova.
“Ao mesmo tempo que estou feliz por conseguir sair e provar que realmente não era eu, eu ainda tenho medo de andar na rua. Carrego um trauma”, sustenta o entregador.
Em 2021, o repórter Caê Vasconcelos contou na Ponte a história da prisão de Isailton. O roubo ocorreu em 2019, em Presidente Prudente, no interior de São Paulo. Uma família foi abordada por três homens quando chegava em casa de carro.
A Ponte teve acesso à imagem das câmeras de segurança do local, que mostravam que apenas um dos três envolvidos não tampou o rosto durante parte da ação. Os demais estavam com a face coberta por camisetas. Foram levados R$ 12 mil e a chave de um carro. Veja a seguir:
Uma das vítimas reconheceu, por meio de um álbum de fotos na Delegacia de Investigações Criminais (DIG) dois dos envolvidos, sendo um deles o pai de Isailton. O homem acabou preso e o entregador, acompanhado do irmão Paulo Roberto Fernandes da Silva, 34 anos, foram até a sede policial, ocasião que aceitaram participar do reconhecimento.
O Código de Processo Penal (CPP) prevê no artigo 226 que esse procedimento deve ser feito com a pessoa a ser reconhecida ao lado de outras que com ele tiver semelhança. Isailton aceitou participar na condição de filler (ou dublê), que é uma pessoa que não tem envolvimento com o crime investigado.
Isso não impediu que, após o reconhecimento feito por uma das vítimas, Isailton fosse considerado suspeito pelo delegado Matheus Nagano da Silva, da Delegacia de Investigações Gerais (DIG) de Presidente Prudente e, mais tarde, condenado com base apenas nessa prova pela juíza Sizara Corral de Arêa Leão Muniz Andrade, da 3ª Vara Criminal do município do interior paulista.
Isailton foi libertado em novembro de 2022, após cumprir 1/6 da pena e ter a liberdade concedida. “Eu me sinto aliviado por poder estar com a minha mulher, meu filho e com a minha família, poder dormir na minha casa e comer a comida da minha mãe. Mas é um trauma que eu carrego comigo”, relata.
Ele voltou a trabalhar como entregador, profissão que exercia na época em que foi preso, mas vive com medo. O jovem conta que se assusta toda vez que vê uma viatura ou escuta barulhos de carro. “Já acho que é polícia”, relata.
O irmão de Isailton, Paulo, é estudante de Direito e conta ter usado a reportagem da Ponte para entrar com pedido de habeas corpus em favor do irmão no STJ. “Eu juntei aos autos também, o que vocês apontaram na matéria, abordei a ilegalidade que houve na delegacia também e juntei, acabou dando certo”, celebra.
“Nós ajudamos ele porque não tinha como deixá-lo desamparado, tínhamos 100% de certeza de que ele era inocente. No dia em que ele foi visitar meu pai, eu estava junto. Ficou tipo uma batata quente, ou jogava para ele ou para mim”, denuncia o irmão.
A família também buscou o TJSP com um pedido de revisão criminal da condenação de Isailton. O pedido também incluiu a matéria da Ponte e concedeu a absolvição do jovem em março deste ano.
Os dois acórdãos, no entanto, foram expedidos após Isailton já ter cumprido a pena. O entregador busca agora indenização do Estado pelo período que passou encarcerado.
“Por mais que eu ganhe a indenização, ela não vai pagar o preço do tempo que eu perdi da minha vida”, lamenta o entregador.
Reconhecimento irregular
O acórdão do TJSP foi expedido em março deste ano e acolheu parcialmente o pedido de revisão criminal de Isailton, deixando de fora apenas a solicitação de indenização. O relator do caso, desembargador João Morenghi, destacou que o reconhecimento pessoal não foi feito em conformidade com o CPP, que havia contradições nas declarações das vítimas (as características de Isailton não batiam com a pessoa descrita por elas em um primeiro momento, por exemplo) e que testemunhas confirmaram o álibi de Isailton para área distante do crime.
Morenghi também aponta que a perícia feita nas imagens da câmera de segurança descartam Isailton como participante do roubo pela diferença de suas características físicas com as pessoas que aparecem na filmagem.
“Causa também perplexidade cogitar da hipótese que Isailton, pessoa trabalhadora, ter praticado um crime de roubo com seu pai em uma sexta-feira e, na segunda-feira subsequente, dirigir-se até a delegacia para saber por que seu pai havia sido preso”, escreveu o desembargador.
“Primeiro, porque ele não teria a menor dúvida do motivo da prisão. Segundo, porque correria o enorme risco de também ser preso. Mais verossímil é a hipótese de Isailton ter se dirigido à delegacia na companhia de seu irmão Paulo por ter certeza de sua inocência e por desconhecer o que seu pai havia realizado na sexta-feira”, completou.
Em junho, Isailton conseguiu nova decisão favorável, agora do STJ. Em acórdão aprovado por unanimidade pela Sexta Turma, foi novamente ordenada a absolvição.
O voto do ministro Rogério Schietti, relator do caso, também apontou que o reconhecimento pessoal não seguiu os parâmetros do artigo 226 e que apenas esse procedimento irregular foi usado como prova para condenar Isailton, o que está em desacordo com decisões recentes do STJ e também do Supremo Tribunal Federal (STF).
“Admitir a condenação dele por esse reconhecimento, sem nenhum elemento de corroboração, implicaria, por consequência, aceitar o absurdo de que, toda vez que algum dublê – por exemplo, um estagiário do fórum ou da delegacia – for reconhecido por engano ao preencher o alinhamento de pessoas – acontecimento corriqueiro na praxe forense –, isso bastaria para a sua condenação”, escreveu Schietti.
O ministro destacou que o STJ avançou no tema do reconhecimento nos últimos anos e definiu que mesmo que seja feito de forma regular, “não tem força probante absoluta, de sorte que não pode induzir, por si só, à certeza da autoria delitiva”.
Outro lado
A Ponte procurou a Secretaria da Segurança Pública de São Paulo (SSP-SP), TJSP e o Ministério Público do Estado de São Paulo (MPSP) para que manifestassem sobre a prisão irregular de Isailton e também pediu entrevista com a juíza, o promotor e o delegado.
O TJSP respondeu que não emite nota sobre casos jurisprudenciais e que os magistrados têm independência funcional para decidir de acordo com os documentos dos autos e seu livre convencimento.
Os demais órgãos não responderam até a publicação desta reportagem.