Em entrevista à Ponte, autor derruba mitos sobre o policiamento e denuncia que, desde 2018, polícias passaram a assumir uma autonomia perigosa: ‘ Uma polícia sem controle popular algum é uma milícia privada’
A história da polícia brasileira é ainda mais racista do que muitos de seus críticos imaginam. “Existe um mito de que as polícias no Brasil surgiram para a manutenção do sistema escravocrata, mas a verdade é muito mais racista. As polícias se desenvolvem justamente a partir do momento em que que a abolição começa a tomar forma. A polícia tem uma história muito mais vinculada ao controle de negros livres do que ao controle de de negros escravizados”, conta o advogado e pesquisador Almir Fellite, autor de A história da polícia no Brasil: Estado de exceção permanente?, que acaba de ser lançado pela Autonomia Literária.
Nesta entrevista em vídeo à Ponte, Almir afirma que o racismo na polícia não é um desvio, mas fruto de um projeto desenvolvido ainda no século XIX. “É um projeto, porque se transferiu o controle privado sobre os corpos negros para o controle público. A partir do momento em que já não havia o instrumento privado da escravidão, passou-se a usar o instrumento público da polícia e do sistema carcerário”, aponta. É por isso que os presídios, que no início daquele século tinham uma população majoritariamente branca, passam a abrigar uma maioria de prisioneiros negros após a abolição da escravidão, em 1888.
No livro, que é uma versão da dissertação de mestrado defendida por Almir na Faculdade de Direito de Ribeirão Preto, da Universidade de São Paulo (USP), o autor derruba esse e outros mitos da história do policiamento no Brasil. Um outro mito é o que frequentemente culpa a ditadura militar de 1964-1985 pela militarização das polícias. “A história da Polícia Militar é muito mais antiga do que isso e remete aos tempos do Império”, afirma. A novidade que a ditadura trouxe, a partir de um decreto em 1969, foi a de transferir para as polícias militarizadas estaduais a exclusividade sobre o policiamento ostensivo nas ruas, num processo que ele chama de “militarização do cotidiano”.
Conhecedor do passado das polícias, Almir chama atenção para um risco inédito que se acentuou a partir de 2018, quando as polícias começaram a se comportar como forças autônomas, com lideranças e bandeiras próprias, sobrerrepresentados no Congresso Nacional. “Pela primeira vez as polícias começam a se comportar como uma engrenagem que vai se soltando máquina estal brasileira”, aponta. E avisa: “Uma polícia sem controle popular algum é uma milícia privada”.