Justiça solta três jovens negros acusados de roubo após reconhecimento irregular

Após reportagem da Ponte, juíza concedeu liberdade provisória a técnico de blindagem Edson Silva e motoboys Leonardo Vieira e Kauan Gregorio nesta quinta-feira (19), que estavam presos há 39 dias

Em sequência: Edson Silva Junior, Leonardo Silva Vieira e Kauan Cristhyan Gregorio da Silva | Fotos: arquivo pessoal

O Tribunal de Justiça de São Paulo concedeu, nesta quinta-feira (19/10) liberdade provisória ao técnico de blindagem Edson Souza da Silva Junior, de 23 anos, e aos motoboys Kauan Cristhyan Gregorio da Silva, 20, e Leonardo Silva Vieira, 25. Os três são acusados de roubar um carro após a polícia perseguí-los por estarem em uma moto sem capacete e serem submetidos a reconhecimento irregular em 10 de setembro, na região da Vila da Saúde, na zona sul da capital paulista.

A juíza Eva Lobo Chaib Dias Jorge determinou que o rapazes cumpram medidas cautelares, ou sejam, sigam algumas restrições para que possam responder o processo em liberdade: não frequentar bares e casas noturnas; não sair de casa entre no período de 20h até 6h e não se ausentar da cidade nem mudar de endereço sem autorização judicial.

A decisão aconteceu durante a primeira audiência do caso, em que vítimas do roubo, testemunhas e os acusados foram ouvidos. Por volta das 12h30, a defesa de Kauan anexou filmagens coletadas pelas famílias dos rapazes que mostrariam os verdadeiros suspeitos, além de reportagem da Ponte que esmiuçou as contradições da investigação no mês passado.

A magistrada deu cinco dias para que as partes, as defesas do trio e o Ministério Público, analisem o caso com as imagens e façam considerações para que ela profira uma sentença.

Relembre o caso

Segundo os familiares e os depoimentos dos jovens, o trio tinha saído para um baile funk na comunidade de Heliópolis na noite do dia 9 de setembro. Por volta das 6h30 da manhã do dia seguinte, Edson teria perdido a chave do carro que conduzia e Leonardo ofereceu carona para levá-lo para casa de moto junto com Kauan.

A consultora de vendas Natasha Alves da Silva, 24, irmã de Edson, conseguiu obter um vídeo gravado por Kauan em que o trio aparece sem capacete, fazendo caretas e gestos com as mãos, em uma moto prata. Em determinado momento, Kauan olha para trás e parece se assustar. É possível ver uma viatura da Polícia Militar com a sirene acionada e Leonardo parece acelerar o veículo. A filmagem se encerra.

Nele, é possível ver que Kauan tem cavanhaque, cabelo castanho com luzes loiras, veste camisa branca com estampa vermelha e calça jeans azul. Edson está de boné azul com detalhe em branco, blusa azul escuro com listra lateral em tom de azul mais claro e calça jeans azul. Leonardo está com um conjunto de blusa e calça pretas com listras laterais em vermelho, capuz preto sobre boné branco. Ele também usa cavanhaque.

“Eles ficaram com tanto medo por conta da infração que eles estavam cometendo que o menino que estava no piloto simplesmente começou a acelerar e a polícia passou a perseguir”, disse ela na ocasião. “Eles foram abordados e relataram que apanharam, ficaram uma hora com a cara no chão com os policiais batendo”, denunciou.

Trechos de vídeo que Kauan gravou enquanto estava com Edson e Leonardo em moto sem capacete | Imagens: reprodução

De acordo com o boletim de ocorrência, por volta das 6h30 uma pessoa parou a viatura em que estavam os policiais Bruno Matos dos Santos e Gabriela Lopes Rosa, do 3º Batalhão de Polícia Militar Metropolitano (BPM/M), e avisou que tinha presenciado um roubo “praticado por indivíduos em duas motocicletas que estariam abordando um veículo Civic de cor preta”. No registro digitalizado no site do Tribunal de Justiça (TJSP), não é informado o endereço do roubo, apenas onde os jovens foram detidos. O boletim de ocorrência foi corrigido na cópia obtida por Natasha como sendo o local do crime a Avenida do Cursino, na altura do número 1864.

Quando os PMs Santos e Rosa estavam conversando com esse transeunte, segundo eles, passaram duas motocicletas em alta velocidade, sendo “uma tripulada por um indivíduo e a outra com dois” seguidos por um carro de cor preta. A dupla afirma que deu voz de parada e emitiu sinais luminosos e sonoros que foram ignorados e, a partir daí, iniciou-se uma perseguição. Na altura da Avenida Nazaré, os PMs informaram que o Civic e as motos tomaram caminhos diferentes e, por isso, decidiram ir atrás de quem conduzia o carro roubado.

Os policiais Ewerton Raposo Ferreira e Lara da Conceição Izaias, do 46º BPM/M, receberam via rádio a informação e “as características das motocicletas em fuga e de seus tripulantes”. Nos depoimentos, não são descritas essas características. Ferreira e Izaias afirmam que se depararam com Edson, Kauan e Leonardo em uma única moto com a placa coberta por um papelão na Rua Malvino Ferrara Samarone. Segundo os PMs, a perseguição terminou quando o trio bateu em um veículo na Rua Eugênio Falk, onde foram detidos. Com eles não havia objetos ilícitos nem bens das vítimas.

Já a outra dupla de policiais localizou o Civic preto na Rua Dezesseis de Dezembro, dentro da comunidade de Heliópolis, para onde a pessoa que dirigia o carro conseguiu fugir.

Os depoimentos das vítimas, um homem e uma mulher, são um pouco confusos e não fica claro se o assalto foi cometido por três ou quatro pessoas, considerando também as versões dos policiais. O casal estava dentro do Honda Civic preto, parado em um semáforo na Avenida do Cursino. O homem disse que “foi surpreendido por um indivíduo que, tripulando uma motocicleta, fechou seu veiculo e, com arma de fogo em mãos (um revólver prata), anunciou o assalto”, mandou descer do veículo e entregar seus bens.

Ele afirma que, ao sair do carro, “percebeu que havia outra motocicleta com outros indivíduos abordando sua esposa que já estaria do lado de fora do veículo passando aos bandidos seus anéis e pulseiras”. Ele não detalha quantos eram os homens. Em seguida, a vítima entrou numa lanchonete, que fica em frente ao local, ligou para a polícia e descreveu as características dos assaltantes e das motocicletas. Contudo, no depoimento, não foi mencionado como esses detalhes foram passados, já que nos depoimentos não constam as cores ou modelos das motos dos suspeitos.

No 26º DP (Sacomã), ele foi perguntado se teria condições de reconhecer os criminosos e o homem disse que reconhecria apenas aquele que o abordou, descrevendo-o como “indivíduo de cabelos castanhos escuros, pele parda, aparentemente jovem entre 20 e 25 anos, trajando camisa com detalhes em vermelho”.

A esposa dele confirmou que o companheiro foi surpreendido por um homem em uma motocicleta que estava armado, mas disse que havia um outro homem na garupa que a abordou, ordenando que ela descesse do veículo e entregasse as joias. Enquanto estava sendo abordada, disse que uma outra moto chegou “e um segundo indivíduo passou a puxar seu cabelo, dizendo que ela iria ficar com eles, fazendo-a implorar para que fosse liberada”.

A mulher também foi questionada se conseguiria reconhecer os assaltantes. Ela disse que poderia reconhecer os dois que a abordaram, descrevendo-os como “o que desceu da garupa da motocicleta teria olhos mais claros, cor de pele bem morena, e parecia ser bem jovem, de 20 e poucos anos, por volta de 1,70m. Ele trajava camiseta branca. O que chegou posteriormente era o mais alto, por volta de 1,75/1,80 [de altura], cor de pele parda e também parecia ser bem jovem”. O casal não informa se os suspeitos estavam ou não utilizando capacetes.

No auto de reconhecimento, Edson, Kauan e Leonardo, que têm características diferentes entre si, foram colocados juntos. O casal apontou que reconheceu os três, mas no documento não está especificado quem seria o correspondente a cada descrição. As características dos suspeitos não estavam descritas nesse documento, só nos depoimentos separados. Também não há fotos legíveis dos rapazes, já que as imagens que foram anexadas ao inquérito não mostram o rosto de cada um. Uma está pixelada e as outras duas não carregaram quando a pessoa que anexou as fotos as baixou.

Nos depoimentos, os jovens afirmam a versão contada por Natasha. Nos documentos, é indicado que eles negaram agressões. Porém, na audiência de custódia, consta que “Leonardo alegou que foi agredido com chute no braço. Kauan e Edson alegaram que sofreram um ‘pisão nas costas’” pelos policiais.

Especialistas ouvidos pela Ponte apontaram que o artigo 226 do Código de Processo Penal, que trata do procedimento de reconhecimento, foi violado, já que, apesar de terem características diferentes entre si, os três foram apresentados juntos. Pelos documentos, as vítimas também não individualizaram quem seria o correspondente a cada descrição.

Também não foram seguidas as diretrizes da Resolução nº 484, de 19 de dezembro de 2022, do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), criada com o objetivo de evitar prisões e condenações de inocentes por erros no procedimento. O reconhecimento foi a única prova para mantê-los presos e serem acusados pelo roubo.

Os batalhões em questão que os policiais integram fazem parte do Comando de Policiamento da Capital, ou seja, estão cobertos pelo programa de câmeras da corporação, mas em nenhum momento foi citado se os PMs usavam o equipamento nem o delegado Savigny Gonçalves, o Ministério Público (MPSP) ou o judiciário solicitaram possíveis imagens.

Dois motociclistas aparecem em frente a um veículo Honda Civic preto às 6h30 da manhã do dia 10 de setembro de 2023, na Avenida do Cursino, altura do número 1623 | Imagem: reprodução

Os familiares também se dedicaram a pedir imagens de estabelecimentos da Avenida do Cursino, algo que o nem delegado nem a promotora Claudia Aparecida Jeck Garcia Nunes de Souza requisitaram. Uma delas, na altura do número 1623, aparece o Honda Civic preto atrás de dois motociclistas, que usam capacetes: um utiliza uma jaqueta marrom, parece usar uma camisa branca por baixo e calça jeans. O outro está com blusa e calça preta com listras laterais que parecem ser brancas.

No início do mês, a Polícia Científica anexou um laudo papiloscópico que identificou impressões digitais compatíveis de um jovem branco de 22 anos no capacete abandonado dentro do veículo roubado e que foi preso no dia 12 de setembro por suspeita de ter roubado um outro Honda Fit dias antes. Outra impressão digital encontrada no carro é de um policial militar que não é mencionado no inquérito, mas provavelmente fazia parte da equipe que atuou no caso. Procurada, a Secretaria de Segurança Pública não confirmou a participação desse PM e disse que o delegado não aguardou o resultado do laudo antes de fazer o relatório final “por se tratar de um caso flagrancial”.

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À Ponte, Willy Hauffe, presidente da Associação Nacional dos Peritos Criminais Federais (APCF), explicou que a identificação de uma digital não significa necessariamente que a pessoa praticou o crime, mas “a coloca na cena do crime” e que esse tipo de prova também precisa ser confrontada com outros elementos. Ele também aponta que a identificação no laudo parece “inequívoca”, uma vez que há mais de 12 pontos de convergência na digital, que é considerado o padrão mínimo para uma identificação mais robusta. O jovem branco também já estava cadastrado no banco de dados da polícia.

Hauffe indica ainda que uma única prova não é determinante e que o reconhecimento sozinho é falho. “Para ter uma falsa percepção é muito fácil. E como é que você tira essa falsa percepção? Com outros tipos de exames. Seria o DNA, seria a papiloscopia ou então seria a análise de câmeras do local. Você pode agregar mais valores. Existem formas de chegar a uma justiça, a indicar algum suspeito, que não só a prova testemunhal”, declarou.

Reportagem atualizada às 15h16, de 20/10/2023, para incluir resposta da SSP.

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