GLO de Lula é negacionismo científico na segurança pública, diz professor

Decreto de Garantia e Ordem vai colocar militares para atuar em portos e aeroportos; pesquisador fala que caminho é posposto ao que se defende em democracias

Lula assinou a GLO na quarta-feira (1/11) ao lado dos ministros Flávio Dino (Justiça e Segurança Pública) e Rui Costa, da Casa Civil | Foto: Valter Campanato/Agência Brasil

“Espero que dê certo”, disse o presidente Lula (PT) ao assinar o primeiro decreto de Garantia da Lei e da Ordem (GLO) de seu terceiro mandato. O instrumento convoca as Forças Armadas para operações em que terão poder de polícia. Desta vez, militares vão atuar em portos e aeroportos até maio. A ação, defendida pelo governo federal para ajudar o país a “se livrar do crime organizado”, é rotulada como mais uma solução paliativa para especialista ouvido pela Ponte

Professor de Ciência Política na Universidade de Brasília (UnB) e pesquisador do Instituto Tricontinental, Rodrigo Lentz, diz que há negacionismo científico quando se coloca as Forças Armadas para atuar na segurança interna. 

“Eu vejo que esse ato da decretação da GLO é mais um capítulo desse negacionismo científico na segurança pública e, como tanto a esquerda como direita disputam para ver quem vai fazer com mais intensidade ou com uma marca específica, uma mesma mentalidade de segurança pública, que é contar sempre com as Forças Armadas para a segurança interna como uma grande polícia nacional, estando acima e apoiando as polícias estaduais e federais. É mais um capítulo de uma medida que não vai surtir um efeito concreto na solução do problema”, avalia o professor. 

Essa ideia, diz Lentz, passa “recibo” para a mentalidade de que as Forças Armadas precisam estar integradas às polícias. Para ele, esse caminho é o oposto do que se defende em democracias para instituições militares — de atuação na defesa nacional. 

As operações de GLO ocorrem por ordem expressa do presidente da república e sob justificativa de esgotamento das polícias estaduais. A lei 97/1999 que estabeleceu a atuação e, posteriormente, o decreto (3.897/2001) que as regulamentou foram criadas no governo de Fernando Henrique Cardoso (PSDB). O instrumento foi usado por ele e todos os presidentes que o sucederam. 

A memória nacional guarda tragédias da atuação dos militares. Uma delas ocorreu em 2008, no Rio de Janeiro. Três jovens foram detidos por um grupo de militares e levados para serem mortos por uma facção rival. Na ocasião, o Exército reforçava a segurança no Morro da Providência, onde as vítimas viviam, durante as obras de um projeto de habitação do governo federal. O presidente era Lula e o caso completou 15 anos sem responsabilização dos envolvidos. 

Em 2016, durante a ocupação do Exército no Complexo da Maré, o jovem Vitor Santiago Borges, foi baleado enquanto voltava de uma festa. O carro onde ele estava foi fuzilado e Vitor acabou paraplégico e teve uma perna amputada. A história foi revelada pela Ponte

O músico Evaldo dos Santos Rosa, 51 anos, foi fuzilado e morto por militares do Exército em abril de 2019. Ele se deslocava com a família para um chá de bebê quando ocorreu o crime na favela do Muquiço, no Rio de Janeiro. Além dele, o catador de latinha Luciano Macedo também morreu atingido pelos disparos. 

GLO e a ditadura

A GLO anunciada por Lula terá atuação dos militares nos aeroportos de Guarulhos (SP), do Galeão (RJ) e nos portos de Portos de Santos (SP), Itaguaí (RJ). A integração das Forças Armadas com a Polícia Federal é um dos pontos centrais do plano do governo. 

Essa aliança é citada pelo menos três vezes no plano de medidas que incluía a GLO (leia na íntegra a seguir). Um exemplo é o trabalho conjunto de Marinha e PF na Baía da Guanabara e de Sepetiba, no Rio de Janeiro, Lago de Itaipu, no Paraná, – Porto de Santos, litoral de São Paulo

O governo também colocará homens do Exército e da Aeronáutica nas fronteiras do Brasil nos estados do Paraná, Mato Grosso e Mato Grosso do Sul com outros países. Não há neste caso tutela da GLO. 

Lentz avalia que a ação é mais do mesmo e repete um modelo com raízes do período ditatorial. “A segurança pública no Brasil não passou por uma transição. Nós temos ainda hoje a segurança pública da ditadura de 64”, afirma. Ele fala em uma “dependência estrutural” do poder civil na presença dos militares na segurança interna, que pode ser compreendida por um pragmatismo ou traço cultural. 

A resposta de Lula apresenta ao problema da segurança pública uma vitrine ao poder militar, avalia Lentz, que ao final da GLO pode sair fortalecida. 

“O governo não está mudando a política. O governo está apoiando uma política já existente, inclusive, do governador Cláudio Castro (Rio de Janeiro). Não há uma mudança substantiva e aqui também o custo para as Forças Armadas é muito mais alto indo para o território. Essa medida, na verdade, reduziu o custo político e de imagem das Forças Armadas e ainda vai trazer um ganho de imagem para as Forças Armadas porque elas não vão ser expostas a situações de confronto e de exposição e de ameaça à vida e a direitos de amplas comunidades”, pontua. 

O professor vê como positiva a não presença de militares nas comunidades conforme prevê a GLO de Lula, mas reforça que esse traço não vai acabar a violência nesses espaços. 

“Isso não representa uma mudança dessa política de tornar esses territórios um teatro de guerra, que a prática pública de segurança acaba praticando no Rio de Janeiro”, afirma Lentz. 

Eleições e economia criminal

Há ainda duas dimensões que o professor traz sobre a GLO. A primeira delas é uma “forte dose” de pragmatismo eleitoral carregado na medida. Com o fim previsto para maio, quando o desenho da eleição municipal vai estar em pleno vapor, presença das Forças Armadas podem contribuir com uma sensação de segurança e possivelmente avanços em indicadores que poderão ser usados nas campanhas eleitorais.

Outro aspecto é uma possível consequência. A atuação das Forças Armadas no controle do que entra e sai pelas fronteiras pode levar à expansão da participação dos militares na economia criminal. 

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“O Exército já controla a entrada de produtos criminais pela fronteira e agora as Forças Armadas, a partir da Marinha e da Aeronáutica, passarão também a controlar a saída, sobretudo para a Europa, desses produtos e a entrada, eventualmente, do que vier de lá. A logística agora está sendo expandida da porta de entrada para a porta de saída. Na minha avaliação, tende a vir uma expansão da participação das Forças Armadas na economia criminal, o que é péssimo para a instituição, não resolve, e vai agravar o problema da segurança pública”, analisa. 

O professor avalia que uma política efetiva na área da segurança pública tem que se basear em uma mudança em relação à guerra às drogas. Lentz diz não ser possível pensar em preservação de direitos e sensação de segurança sem que isso seja discutido. 

“Quando nos deparamos com a guerra às drogas, vemos que ela produz insegurança, uma série de violações de direitos humanos e não resolve o problema”, diz. 

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