Swammy Hwygen era conhecido pelo amor à escrita e à natureza no bairro do Capão Redondo, na periferia da zona sul da cidade de São Paulo; em novembro, foi morto pela PM e a família busca entender o que aconteceu
Atenção: esta reportagem trata de saúde mental, depressão e pensamentos suicidas – que podem gerar gatilhos. Caso você não esteja bem e precise conversar com alguém, a Ponte recomenda entrar em contato com o Centro de Valorização à Vida (CVV), que funciona 24 horas e pode ser acionado através do telefone 188 (ligação gratuita) ou neste site. Você ainda pode buscar uma unidade de saúde mais próxima da sua casa por meio do Mapa da Saúde Mental.
Antes de iniciar este texto, gostaria de expor o quão difícil foi construir uma reportagem que abordasse de forma responsável e sensível uma morte que, até a publicação desta reportagem, não foi comprovada como suicídio indireto, mas contém elementos que não podem ser descartados, além da atuação das forças policiais neste caso. O CVV tem um manual de como noticiar o tema da melhor maneira e que foi utilizado aqui. Por isso, há detalhes e descrições que não faremos a fim de não incentivar práticas. Porém, não podemos deixar no esquecimento a história de uma figura tão importante para sua família, para os moradores e para a cultura do Capão Redondo, na periferia da zona sul da cidade de São Paulo. Uma pessoa que também tinha deficiência e que merece ter sua memória resguardada e não estigmatizada.
Swammy Hwygen Araújo de Oliveira, de 31 anos, era um jovem muito querido no bairro. Gente fina, amoroso, parceiro. Não faltaram adjetivos emocionados para descrever o poeta. Rafael*, um dos seus melhores amigos de caminhada, de vida, de infância, como prefere descrever essa trajetória que começou ainda na escola, conta que Swammy não tinha muito jeito para tocar instrumento musical, e que a influência da família o levou para a escrita.
Rafael criou uma melodia em cima de uma das poesias de Swammy, chamada Bola de Cristal, que leu para mim em uma entrevista e que reproduzo abaixo. “Uma das cenas que mais me marcaram foi poder cantar junto com ele, enquanto tocava violão. Eu fico até emocionado de lembrar”, disse.
Quando saí do útero materno,
eu fui direto ao berço social.
Saí, abri os olhos,
vi o mundo, a terra e suas belezas
e não sonhava que tinha tanto mal.
O universo conspira a favor de nós.
Muitos abrem os olhos e poucos ouvem a voz.
Aquela flecha que quis me acertar quebrou
e aqueles olhos que quis me devorar cegou.
Eu sou mais um sobrevivente ao féu da selva.
Fazer o quê se a bola de cristal só erra?
E erra, e erra, só erra.
E erra a bola de cristal.
Eu quero tudo novo, eu quero tudo oposto.
Nadar no céu e flutuar no mar,
refletir a vida sobre uma fogueira.
A vida é bela, a vida é doce,
também amarga e passageira.
Eu fui ao topo da espera.
Eu me senti tão só.
E o pior que essa essência foi esculpida sobre o pó.
O planeta se vegeta,
eu fui à órbita e voltei.
Todas as minhas ideias estavam no livro que eu queimei.
Eu quero tudo novo, eu quero tudo oposto.
Nadar no céu e flutuar no mar,
refletir a vida sobre uma fogueira.
A vida é bela, a vida é doce,
também amarga e passageira.
Um dos irmãos do jovem lembra que desde novinhos eles costumavam fazer um sarau na praça perto de casa, o “Praçarau”. “Eu ensinei meu irmão a tocar violão. Antes de ele começar a escrever, eu já escrevia. E aí ele começou a escrever poesias. Era uma coisa mais linda que a outra. Ele me superou assim de uma forma absurda”, conta. “Ele tem mais de 200, 300 poesias escritas. Eu mesmo, particularmente, já compus várias músicas com ele”.
Um dos sonhos do poeta era publicar seu primeiro livro, algo que Rafael e a família pretendem dar continuidade, chamado deTarja Verde. A referência à natureza era muito presente, principalmente depois que integrou a primeira turma da Horta Cores e Sabores, em 2015. “É uma horta que não é uma horta só para plantar e comer. É uma horta pro desenvolvimento humano”, conta Paulo Magrão, ativista, morador do Capão há 25 anos, coordenador do projeto e que tinha um carinho grande pelo poeta. “A gente assiste filme, tem sarau na horta, tem uma feijoada gratuita uma vez por mês”. Ali, segundo ele, além dos eventos e da distribuição de alimentos, é também uma forma de ajudar pessoas que estão com depressão a partir dessas atividades.
No início, Paulo afirma que o jovem conseguiu uma bolsa para trabalhar na horta depois que o projeto ganhou um edital da prefeitura e acabou se destacando. “Antes disso, as pessoas não acreditavam muito nele porque ele tinha muito surto”, lembra.
De acordo com os familiares que, assim como a maior parte dos entrevistados pediram para ter as identidades preservadas, Swammy passou a ter alguns surtos psicóticos a partir dos 20 anos de idade. Esses surtos, em que a pessoa pode ouvir vozes, ter algum delírio, se sentir perseguida e se entender em uma realidade paralela pode, em geral, ter relação com uso de alucinógenos, como drogas, ou estarem vinculados a um transtorno mental.
Um pouco antes de atuar na horta, segundo os parentes, o jovem teve o diagnóstico de esquizofrenia paranóide, que é um transtorno mental considerado pela Lei Brasileira de Inclusão como uma deficiência psicossocial. É diferente da deficiência intelectual porque não é uma condição que afeta o intelecto da pessoa desde a infância, mas um transtorno que em geral é identificado por volta dos 20 anos de idade e está no escopo dos distúrbios psiquiátricos. Não há também uma causa pré-definida e pode estar vinculado a vários fatores.
Médica psiquiatra do Programa de Esquizofrenia da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), Claudiane Salles Daltio pondera que não pode fazer uma avaliação específica do caso de Swammy por não ter feito o acompanhamento e por uma questão ética, mas explica de uma forma geral que uma pessoa em surto psicótico não significa necessariamente que ela vá agir com violência. “Tem surto psicótico que o paciente fica desorganizado, por exemplo, sai sem roupa na rua ou, enfim, se veste, se esconde debaixo da cama. O comportamento agressivo, violento, não é o mais comum. Pode acontecer numa vigência de surto psicótico, mas é bom destacar isso porque se não fica uma coisa estigmatizada de que o paciente com esquizofrenia é violento”, afirma.
Os parentes e amigos do poeta contam que esses surtos eram diferentes. Ele poderia ficar mais recluso, contestar algo com muita veemência, ter episódios com ideias de perseguição e comportamentos suicidas. Além disso, ele também desenvolveu e tratava uma depressão que teria surgido pela dificuldade em lidar com o diagnóstico.
Os parentes afirmam que ele fazia tratamento e acompanhamento no Hospital Municipal do Campo Limpo, onde passou a tomar as medicações para controlar as crises, algo que, segundo Claudiane, é uma das possibilidades quando o paciente não consegue se adaptar bem ou acaba negligenciando o tratamento. A Secretaria Municipal de Saúde disse à Ponte que não tinha autorização para passar qualquer informação sobre o acompanhamento de Swammy.
“Ele tinha pelo menos um surto por ano”, me disse um dos irmãos de Swammy. “E sempre a gente levava para o hospital. Uma situação que aconteceu no começo deste ano foi ele subir no telhado, começar a gritar e jogar pedra, ele ficou muito agitado. Meu irmão tentou conter, não conseguiu. Alguém chamou a Polícia Militar, eles chegaram, não conseguiram conter. E um deles falou ‘a gente não vai atirar’ e chamou outra equipe que tinha aquela arma de choque. Agiram de maneira prudente, foi algo que realmente a gente espera da Polícia Militar.”
Swammy trabalhou na horta até 2016, quando, no ano seguinte, mudou a gestão do então prefeito Fernando Haddad (PT) para João Doria (PSDB). Na época, o hoje ministro das Relações Institucionais, Alexandre Padilha, era secretário municipal de Saúde e registrou o jovem declamando uma poesia sobre a horta que ele e Magrão escreveram.
Segundo Magrão, o poeta ainda trabalhou num projeto de horta de uma organização social vinculada à prefeitura, mas não se adaptou e foi demitido ainda em 2017. Mesmo assim, Swammy ainda participava dos eventos da Horta Cores e Sabores, além de atuar como jardineiro e paisagista de forma autônoma.
Festas na comunidade também o animavam. “Ele tinha a capacidade de tirar o melhor de você para participar”, lembra Rafael, que o ajudou a montar quermesses, festas juninas, festas de Dia das Crianças que os moradores costumam organizar.
Neste ano, a família também havia conseguido o Benefício de Prestação Continuada (BPC) para Swammy, que é a garantia de um salário-mínimo por mês à pessoa com deficiência cuja condição “a impossibilite de participar de forma plena e efetiva na sociedade, em igualdade de condições com as demais pessoas”. O Instituto Nacional do Seguro Social (INSS), que é responsável pelo benefício, confirmou que o último valor pago foi em 17 de novembro.
A morte
No dia 17 de novembro, Rafael lembra que foi ao parque com Swammy no final de tarde e depois voltaram para o caminho de casa. Os familiares perceberam que, por volta das 18h, Swammy decidiu sair de casa. “Ele não levou documento, não levou celular, não levou nada”, lembra o pai. Dali, depois de algumas horas, passaram a procurá-lo.
No Hospital do Campo Limpo, a namorada de Swammy conseguiu confirmar que uma pessoa com as mesmas características estava lá. “As duas coisas que ficaram na minha mente foi o médico dizer que ele chegou sem vida e que eu tinha que ir no IML”, diz um dos irmãos, que afirma que ainda teve de passar por três unidades do Instituto Médico Legal para conseguir achar o corpo.
Um dia após o enterro, em 20 de novembro, feriado do Dia da Consciência Negra, amigos e moradores do bairro fizeram uma passeata em homenagem a Swammy e caminharam com faixas e balões brancos até o 37º Batalhão de Polícia Militar Metropolitano (BPM/M). “Tinha pouca gente, mas passou uma viatura, parou, ficou filmando. Depois passou outra. Eu senti como um meio de intimidação”, diz Paulo Magrão, que participou do ato.
O boletim de ocorrência foi relatado por policiais que não atuaram diretamente no caso, mas fizeram a comunicação na delegacia. No documento, é informado que Swammy, que não tinha sido identificado quando o registro foi feito, entrou no batalhão “em posse de uma faca e foi pra cima dos policiais militares”. A dupla de PMs, por sua vez, fez seis disparos em direção ao rapaz.
O texto não deixa claro se Swammy morreu no local ou durante o resgate, já que é informado que “foi acionado o socorro médico que constatou o óbito do autor/vítima fatal” e seu corpo se encontrava no necrotério do Hospital Campo Limpo.
É descrito que “o local onde ocorreu os disparos não possuía câmeras que pudessem auxiliar na investigação” e os militares envolvidos alegam que não usavam câmeras nas fardas “pois estavam dentro do batalhão”. A reportagem constatou que existem câmeras na fachada do batalhão, mas a Secretaria de Segurança Pública não respondeu se os equipamentos funcionavam.
Os soldados envolvidos não prestaram depoimento na delegacia no dia. Isso porque a Lei do Pacote Anticrime, de 2019, incluiu no Código de Processo Penal que todo agente de segurança pública que estiver envolvido em crimes ou tentativas de crimes dolosos (quando há intenção) contra a vida não é obrigado a dar depoimento antes de constituir um advogado ou defensor público em até 48 horas e ser citado, ou seja, ser formalmente informado da investigação.
O delegado Rodrigo Gentil Falcão, do Departamento de Homicídios e Proteção à Pessoa (DHPP), determinou a apreensão das pistolas dos dois policiais, além de exames necroscópico e de local do crime, e a citação dos PMs para prestarem depoimento posteriormente.
Só no boletim interno da PM, chamado de talão, é informado que um dos PMs envolvidos teria sido ferido superficialmente no pescoço. Esse dado não consta no boletim de ocorrência registrado pela Polícia Civil. A Ponte localizou perfis em redes sociais desse soldado, que chegou a postar referência da data como dia que “renasceu”. Pedimos entrevista com ele, mas logo em seguida ele apagou todas as publicações e restringiu a visualização do seu perfil.
O caso está sob investigação e a família de Swammy busca entender o que aconteceu. “Nós acreditamos que houve excesso. Houve exagero. E esse exagero que nos machuca”, diz um dos irmãos, já que a família acredita que poderiam ter sido empregados outros meios para contê-lo caso a narrativa descrita seja mesmo essa.
“A polícia não tem preparo nenhum. Existem armas de choque, gás de pimenta, existem várias coisas, ao invés de dar tiro”, lamenta Paulo Magrão, que destaca que a violência policial é frequente na periferia e que o 37º BPM/M foi berço de um grupo de extermínio que atuou nos anos 2000.
De forma geral, a polícia tem pouco ou quase nenhum preparo para lidar com pessoas em surto, que tenham deficiência ou transtorno mental, segundo Fernanda Cruz, pesquisadora associada do Instituto de Pesquisa, Prevenção e Estudos em Suicídio (IPPES). “Se a gente pensar, por exemplo, que em outros países esse tipo de treinamento já está na pauta das instituições de segurança pública, a minha sensação é que no Brasil a gente estaria engatinhando em relação a isso”, afirma.
Ela também destaca que é problemático o conceito de suicide by cop, ou seja, pessoas que teriam a intenção de tirar a própria vida atacando agentes de segurança pública. “Em vez de você responsabilizar a conduta do policial, você meio que responsabiliza a conduta da pessoa que já está passando por uma questão de saúde mental porque, teoricamente, é como se os policiais não tivessem outra saída a não ser tirar a vida daquela pessoa”, explica, ao lembrar do episódio em que o então governador do Rio de Janeiro, Wilson Witzel (PSC), comemorou a morte de um homem baleado pela polícia que sequestrou um ônibus, em 2019.
A reportagem apurou que a única norma que trata sobre o assunto na Polícia Militar paulista é uma resolução conjunta das secretarias de Segurança Pública e da Pessoa com Deficiência, de 2018, que trata do atendimento de casos que envolvam violência contra esse público. “No caso de pessoa com aparente transtorno mental ou em surto e que esteja colocando em risco a si mesma ou a outros, o servidor deverá, sempre que possível, buscar o contato com familiares ou responsáveis e, na impossibilidade, solicitar apoio de profissionais da rede de assistência psicossocial”, diz o único trecho que trata sobre pessoas em surto.
A psiquiatra Claudiane Daltio concorda que essa recomendação é acertada. “A conduta mais correta é chamar o Samu, que tem preparo para encaminhar essa pessoa para um pronto-socorro, onde ela pode ser medicada”, enfatiza.
Para a contenção, é possível que o Samu precise acionar a Polícia Militar, mas a médica sinaliza que o surto psicótico é uma questão de saúde e que é preciso haver uma orientação para a sociedade como um todo, especialmente aos agentes públicos, sobre como agir em situações como essa. De acordo com o Atlas da Violência, lançado nesta segunda-feira (5/12), dentre as pessoas com deficiência, a maioria das vítimas (44,6%) foram as que têm transtornos mentais.
Fernanda Cruz, do IPPES, que costuma estudar mais a questão da saúde mental dentro das polícias, destaca que falta política de prevenção dentro das próprias corporações. “Se a gente está falando que faltam políticas de sensibilização para os próprios policiais, provavelmente essa falta de sensibilização se expande para a população em geral”, pontua. “Quando a gente fala de ações de prevenção primária, são aquelas relacionadas à conscientização, são aquelas de falar sobre mitos, aquelas de falar sobre comportamentos. Se a gente está falando que isso é importante para os próprios policiais, sem dúvida isso também é importante para a forma que os policiais lidam com as pessoas que estão demandando essas questões”.
O que diz a polícia
A reportagem questionou a Secretaria de Segurança Pública sobre o caso e se existe capacitação das polícias para atuar em situações que envolvam pessoas em surto psicótico. A Fator F, assessoria terceirizada da pasta, não respondeu a todos os questionamentos e encaminhou a seguinte nota:
Todas as circunstâncias dos fatos são investigadas pela Divisão de Homicídios do DHPP e pela Polícia Militar, por meio de Inquérito Policial Militar (IPM). O homem, de 31 anos, foi baleado e morreu após entrar com uma faca no 37º BPM/M (Capão Redondo) e ferir um policial. Na ocasião, os próprios policiais que estavam no batalhão acionaram o Resgate, que encaminhou o homem ao hospital, porém ele não resistiu e faleceu. Foram solicitados exames junto ao Instituto Médico Legal (IML). Os laudos estão em elaboração e, assim que finalizados, serão analisados pela autoridade policial.
*Os nomes foram trocados a pedido dos entrevistados.