Decreto de Lula fortalece caráter repressivo das guardas municipais, avaliam especialistas

Legislação deixa as guardas civis ainda mais parecidas com as Polícias Militares e insere as corporações na lógica da “guerra às drogas”, denunciam estudiosos ouvidos pela Ponte

Guardas civis metropolitanos da cidade de São Paulo vigiam manifestação contra a violência da corporação, em 24/5/2017 | Foto: Sérgio Silva/Ponte Jornalismo

No apagar das luzes de 2023, o governo do presidente Lula (PT), por meio do Ministério da Justiça e Segurança Pública (MJSP), publicou um decreto que chancela a atuação ostensiva das guardas municipais e, na avaliação de especialistas ouvidos pela Ponte, fortalece o caráter repressivo dessas organizações.

O texto do decreto 11.841/2023, publicado em 21 de dezembro, permite que os guardas façam prisões em flagrante e encaminhem ocorrências diretamente à Polícia Civil. O ministro da Justiça e Segurança Pública, Flávio Dino, compartilhou o texto classificando a ação como um fortalecimento dos agentes civis. “Guardas municipais mais fortes e com mais segurança jurídica para atuarem na Segurança Pública, em defesa da sociedade”, escreveu. 

O decreto regulamenta o artigo 5º do Estatuto Geral das Guardas Municipais, sancionado em 2014 pela presidenta Dilma Rousseff (PT) e estabelece que é função das guardas municipais: 

  • Colaborar, de forma integrada com os órgãos de segurança pública, em ações conjuntas que contribuam com a paz social;  
  • Garantir o atendimento de ocorrências emergenciais, ou prestá-lo direta e imediatamente quando deparar-se com elas; 
  • Encaminhar ao delegado de polícia, diante de flagrante delito, o autor da infração, preservando o local do crime, quando possível e sempre que necessário. 

O texto define que ocorrências emergenciais são aquelas em que é necessária atuação célere e configuram risco à vida, à segurança das pessoas ou do patrimônio. 

O decreto estabelece que, nestes casos, a guarda municipal fará o atendimento inicial e preliminar e deve acionar os órgãos de segurança pública competentes. Contudo, “na hipótese de ocorrências que configuram ilícito penal”, as guardas poderão realizar prisão em flagrante e apresentar o preso diretamente para a polícia judiciária (Civil).

Essa determinação acende um alerta. Para o  professor da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC-Minas) Luís Flávio Sapori, membro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública e ex-secretário adjunto de Segurança Pública do estado, o decreto pavimenta a atuação das guardas municipais no policiamento ostensivo. “Com esse decreto do governo federal, mais do que nunca, a porteira está aberta para que o modelo de guarda municipal repressivo, com identidade de guerra contra o crime, se dissemine país afora”, afirma à Ponte.

Luís Flávio argumenta que está em curso a adoção pelas guardas municipais do modelo de atuação repressiva da Polícia Militar. “O que mais me preocupa é o fato de as guardas municipais no Brasil, nos últimos dez anos, terem adquirindo, em boa medida, uma identidade muito repressiva. Elas estão, de alguma maneira, copiando o modelo de atuação repressiva de certos segmentos das polícias militares, com viaturas caracterizadas, armamento pesado e fardamento muito similar ao dos grupos táticos. É como se a guarda municipal também estivesse se preparando contra o crime, contra o tráfico de drogas”, defende. 

Na visão do professor, o fortalecimento das guardas como forças repressivas semelhantes às Polícias Militares contribui para afrouxar ainda mais a articulação do Sistema Único de Segurança Pública (Susp). Criado em 2018 pelo presidente Michel Temer (MDB) e inspirado no Sistema Único de Saúde (SUS), o Susp prevê a integração entre os governos federais, dos estados e municípios na área de segurança, mas ainda não foi efetivamente implantado — embora sua implantação seja uma das bandeiras de Dino à frente do Ministério da Justiça e Segurança Pública.

“A única maneira de a gente diminuir essa frouxa articulação do sistema, que tende a ser acentuado por esse decreto, seria o governo viabilizar o Sistema Único de Segurança Pública, onde você vai ter uma definição consensual entre União, Estados e Municípios do que cada um vai fazer no controle, na prevenção e na repressão do crime”, defende Luís Flávio.

O decreto também foi criticado pelo advogado Thiago Amparo, professor de direito internacional e direitos humanos na Escola de Direito de São Paulo da Fundação Getulio Vargas (FGV Direito SP), que escreveu no X: “Considero temerário ampliar a atuação em segurança da guarda civil além da sua competência legal de ‘proteção de seus bens, serviços e instalações (municipais)'”, como prevê a Constituição Federal.

Lembrando casos de violências cometidas por guardas contra populações pobres, Thiago afirma que “GCMs integram o sistema de segurança, dentro de sua competência, mas não são polícias” e que “prefeitos usam GCM despreparada pra policiamento para controlar pobres nas ruas”.

Também ouvida pela Ponte, Luciana Rocha, que é guarda municipal em Canoas (RS) e mestre em Segurança Pública pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFGRS), apresenta uma visão diferente, afirmando que a regulamentação feita pelo decreto do governo Lula traria uma limitação, e não uma ampliação, ao trabalho dos guardas. Para Luciana, o texto pode ser interpretado no sentido de que os guardas só possam atuar de forma ostensiva em ações conjuntas com outras forças. 

“Eu entendi que o artigo 3º do decreto restringe a só realizar [ações] de forma integrada com os órgãos de segurança pública. Não se usa o termo ‘só serão realizados’, não se usa o limitante ‘apenas’, mas isso pode ser usado para questionar juridicamente alguma prisão, algum processo contra algum cidadão”, argumenta. 

Guardas na guerra aos pobres e negros

As guardas civis municipais fazem parte de uma tradição que remonta ao início do século XX, explica Almir Felitte, mestre em Direito pela Faculdade de Ribeirão Preto (USP) e autor de História da Polícia no Brasil. Naquela época, grandes cidades, principalmente as capitais, criaram suas próprias guardas, comumente subordinadas às polícias civis. A exceção era São Paulo, onde a Guarda Civil era vinculada à Força Pública, que era militar.

Esse modelo chegou ao fim com a ditadura militar (1964-1985), quando o governo reorganizou o policiamento, por meio do decreto 677/1969, e reservou a exclusividade do policiamento ostensivo para as Polícias Militares estaduais. “As PMs engoliram essas guardas civis e, por um bom tempo, as guardas municipais deixaram de existir”, conta Almir.

Uma nova versão das guardas civis municipais, sem caráter de policiamento, ressurgiu durante a redemocratização — uma das primeiras foi a Guarda Civil Metropolitana, instituída na cidade de São Paulo pelo prefeito Jânio Quadros em 1986. A Constituição Federal, de 1988, estabeleceu que o policiamento só seria realizado por meio das forças de segurança da União e dos Estados, mas os municípios poderiam “constituir guardas municipais destinadas à proteção de seus bens, serviços e instalações”.

A regulamentação desse trecho da Constituição — presente no artigo 144, que trata da segurança pública — só veio em 2014, com a lei do Estatuto Geral das Guardas Municipais. O texto, defende Almir, é tido como um avanço, já que traz nos princípios fundamentais a defesa dos direitos humanos, a preservação da vida e o compromisso com a atuação social da comunidade. 

“Apesar de a lei de 2014 ser muito boa, talvez um dos poucos regulamentos policiais que são pautados em direitos humanos e no policiamento comunitário, ela veio pouco dotado de mecanismos que fizessem com que o Estatuto pudesse ser aplicado. Na prática, o que aconteceu foi que as prefeituras se espelharam nas Polícias Militares para formar as suas guardas municipais”, lamenta Almir.

Na visão do especialista, o novo decreto do governo Lula reforça o que as guardas têm de mais repressivo, em vez de buscar aplicar os princípios de respeito aos direitos humanos presentes no Estatuto de 2014. “Esse decreto repete o erro de colocar muito peso do trabalho policial na questão do flagrante”, analisa.

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Além disso, o decreto insere ainda mais as guardas na lógica da “guerra às drogas” — que, como vem sendo cada vez mais reconhecido por ativistas e estudiosos, sempre foi uma guerra contra pobres e negros. “De certa forma, apesar de não estar sendo falado isso no decreto, ele dá um aval para a GCM também entrar ainda mais nesse mundo da guerra às drogas. Aqui em São Paulo, por exemplo, onde a GCM está muito presente na região da Cracolândia, isso pode ter um impacto pior”, diz. E avisa: “A situação pode ficar pior ainda”. 

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