Promotores pedem fim de abusos de poder da GCM na Luz, em SP

Ação civil pública do Ministério Público contra prefeitura denuncia violações de direitos humanos cometidas por guardas na região da ‘Cracolândia’ desde 2017; órgão aponta que GCM deveria preservar patrimônio público e não revistar e prender pessoas

Moradores da região da Cracolândia protestam contra a ação violenta da prefeitura da Guarda Civil Metropolitana da cidade de São Paulo em 24/5/2017, que promoveram uma tentativa de desocupação na região | Foto: Sérgio Silva/Ponte Jornalismo

O Ministério Público Estadual ingressou com ação civil pública para que a Prefeitura de São Paulo desmilitarize a atuação da GCM (Guarda Civil Metropolitana) na região da Luz, conhecida pejorativamente como ‘Cracolândia’. Ajuizada nesta segunda-feira (31/5), a petição da Promotoria de Direitos Humanos denuncia em 95 páginas que a guarda vem atuando com uma “lógica militar de ocupação de espaço”, exercendo papel de Polícia Militar ao abordar, revistar e prender pessoas, realizar operações e apreender bens de forma ilegal, e de Polícia Civil ao fazer investigações utilizando serviço de câmeras para “diferenciar usuário de traficante”, embora não tenha competência constitucional para tal, o que configuraria desvio de função e abuso de poder.

Os promotores elencam uma série de violações cometidas pela guarda desde maio de 2017, quando aconteceu a megaoperação conjunta das polícias Civil e Militar e a GCM na região, e que se perpetuaram ao longo dos anos, com abordagens abusivas, uso indiscriminado de bombas de gás, spray de pimenta e balas de borracha, agressões e revistas contra assistentes sociais, dependentes químicos e pessoas em situação de rua, ameaças, apreensão de bens pessoais – que foi proibido pelo governo municipal – e cerceamento do trabalho da imprensa durante coberturas dessas ações.

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Especialmente sobre uma operação de setembro de 2017, em que a GCM atirou contra pessoas dentro de tendas de equipamentos sociais da prefeitura e realizou revistas em massa, inclusive vexatórias contra mulheres, o MPE já havia expedido, em 2018, uma recomendação administrativa para que a guarda não atuasse como polícia ostensiva na região, não realizasse abordagens nem revistas ou qualquer tipo de constrangimento ilegal contra a população de rua, dependentes químicos e funcionários.

Esse episódio gerou a criação do POP (Procedimento Operacional Padrão) da GCM para acompanhamento das ações de zeladoria urbana no território, em julho de 2018. O documento, que a Ponte teve acesso, instrui que a corporação deve atuar exclusivamente para zelar e coibir infrações que atentem contra bens, serviços e instalações municipais. Em caso de flagrância de crimes, a guarda deve encaminhar diretamente à autoridade policial.

No entanto, conforme aponta o MPE, inclusive a partir de depoimento de membros da corporação, a competência de preservação de serviços e do patrimônio municipal foi deixada de lado e as violações de direitos humanos prosseguiram. Um dos episódios citados é o da operação de maio de 2019, que resultou na morte de Adélia Batista Xavier, atingida por arma de fogo, na qual assistentes sociais uniformizados relataram terem sido abordados de forma truculenta pelos guardas. O MPE também havia solicitado imagens de drones da secretaria de Segurança Urbana sobre operações específicas que ocorreram entre 2017 e 2019 e indica que constatou que a própria guarda iniciava a repressão sem motivo aparente.

Mesmo com a pandemia de Covid-19, as operações no território continuaram. Os promotores utilizaram reportagem da Ponte, de março de 2020, em que pessoas em situação de rua relataram aumento da repressão da GCM, com uso recorrente de bombas, e apreensão de pertences dos acampados na Praça Princesa Isabel, a partir do mês seguinte, uma vez que o Atende II, o último equipamento social da Prefeitura que atende a população de rua na Luz, foi fechado.

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Em outra operação, em janeiro de 2020, uma testemunha disse que os guardas usaram arma de fogo na incursão. Em setembro do ano passado, moradores filmaram guardas agredindo com chutes homem caído no chão já rendido. Dois meses depois, imagens mostraram outro homem baleado sendo espancado e arrastado pela GCM, em ação conjunta com a PM.

A Ponte também mostrou que de 2018 a 2020, o uso de balas de borracha pela GCM na Luz aumentou 475%. Em meio à campanha eleitoral municipal, em setembro de 2020, o deputado estadual Arthur do Val (Patriota), o Mamãe Falei, então candidato a prefeito, e Carlos Alexandre Braga, ex-comandante da GCM que aprovou o POP de atuação na Luz e que pleiteava uma vaga para vereador, ambos pelo Patriota, faziam uma live no território quando a guarda passou a realizar uma operação no local. De acordo com moradores ouvidos pela reportagem, as intervenções da corporação haviam aumentado após a realização de lives de candidatos.

Na época, os candidatos mostravam a atuação dos GCMs. “Isso aqui é guerra”, dizia Arthur do Val. “Cadê o mata leão, cacete?”, questionava Braga, a respeito da decisão do então prefeito Bruno Covas (PSDB) que proibiu o uso do golpe que aperta o pescoço como forma de imobilizar pessoas na época, pouco tempo depois de o governador João Doria (PSDB) proibir o uso de mata-leão pela PM.

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O MPE informa que fez reuniões e recomendações de forma extrajudicial à Prefeitura e à secretaria de Segurança Urbana, mas não surtiram efeito e que a própria administração pública legitima a atuação da GCM, tratando “um problema sanitário e socioassistencial como se fosse apenas uma questão de segurança pública”, inibindo a atuação de funcionários e gerando custos de verba pública com aquisição de armas e equipamentos em mais de 280 operações realizadas desde maio de 2017 que têm se demonstrado “ineficazes”.

“O que se percebe, portanto, é que os guardas civis metropolitanos estão desempenhando funções de policiais militares e assumindo riscos de policiais militares, mas sem a formação de policiais militares, sem a estrutura de trabalho dos policiais militares e sem o salário de policiais militares”, escreveram os promotores Eduardo Valerio, Arthur Pinto Filho e Anna Trotta Yaryd.

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Além disso, o MPE evidencia que “esse ilícito modo de atuar da instituição municipal está inclusive expondo os guardas civis a agudas situações de risco pessoal e psicológico, numa impressionante precarização das condições de trabalho da categoria”.

Já em 2021, as denúncias mais recentes de atuação da GCM se deram a partir de um dossiê com 12 vídeos realizado pelo movimento A Craco Resiste, que visibiliza violações de direitos humanos no território. Nas filmagens, encaminhadas à Comissão de Direitos Humanos da OAB-SP, são mostradas ações com bombas de gás, spray e agressões da guarda entre dezembro de 2020 e março deste ano.

O MPE informa na petição que questionou a secretária municipal de Segurança Urbana Elza Paulina de Souza sobre a imagens e solicitou novamente plano para conter a atuação militarizada da guarda na região. No dia 24 de maio, em reunião com ela e com o comandante da GCM Agapito Marques, foram informados que será realizada uma operação na Luz, em conjunto com a PM, sem data ainda para ocorrer a fim de fazer um “pente-fino” durante a ação de limpeza urbana.

Com isso, o MPE solicita que o governo municipal realize um estudo prévio de impacto e de efetividade das medidas a serem adotadas antes de qualquer operação da GCM na região da Luz; que a guarda não realize ações de apoio à zeladoria urbana fora do horário permitido; não atuem como “polícia repressiva e sob formação militar, voltada à conquista de ‘espaços’ nas vias públicas, com arremesso indiscriminado de munições contra pessoas e expulsão desmotivada de pessoas de logradouros públicos”; e que a corporação seja fiscalizada e reorientada a não exercer atividades de policiamento ostensivo nem de polícia judiciária, apresentando um plano de capacitação para os agentes em 120 dias e um plano de observância ao POP de 2018 em 60 dias. O órgão submete multa de R$ 500 mil caso as obrigações não sejam cumpridas. Cabe agora ao Tribunal de Justiça analisar se acata ou não os pedidos do MPE.

O que diz a prefeitura

A Ponte questionou a secretaria municipal de Segurança Urbana sobre todas as pontuações realizadas pelo MPE e sobre a operação na Luz que o órgão afirma que está para ser marcada.

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Em nota, a pasta informou que “não foi oficialmente noticiada sobre o ajuizamento da ação civil pública mencionada e reforça a disponibilidade para prestar esclarecimentos após ciência dos termos”.

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