Contrariando Defensoria e MP, Prefeitura de SP fecha espaço para povo de rua

    Parte dos usuários do Atende 2 foi transferida para unidade a 3 km de distância, mas aglomeração de moradores de rua continua na região da Luz

    Espaço Atende 2, que atende população de rua na região da Luz, foi fechado pela prefeitura. | Foto: Jeniffer Mendonça/Ponte Jornalismo

    Alguns carregavam malas, cobertores e roupas. Welington Lima Evaristo, 28 anos, tinha só duas muletas por causa do pé machucado enquanto recebia uma máscara e subia num ônibus. “Nós estamos em recuperação, aqui eu durmo, almoço, janto. Por que vão mudar a gente de lugar logo durante a pandemia?”, questiona. Ele é um dos usuários do Atende 2, último espaço de atendimento a pessoas em situação de rua na Luz, no centro de São Paulo, remanescente do extinto programa De Braços Abertos, voltado aos dependentes de drogas que se aglomeram na região, e que foi fechado na manhã desta quarta-feira (8/4).

    Depois da ação de limpeza na rua Helvétia, onde essa população fica e que é chamado de “fluxo” (local de venda e uso de drogas), por volta das 6h30 da manhã, a GCM (Guarda Civil Metropolitana) passou a interditar as ruas do entorno e assistentes sociais começaram a se organizar para encaminhar os usuários aos ônibus e vans que chegavam.

    Segundo o inspetor e subcomandante da GCM Marcus Valério Ferreira, estava previsto o transporte de 240 pessoas cadastradas pela Secretaria Municipal de Assistência e Desenvolvimento Social, com destino aos SIAT (Serviço Integrado de Acolhida Terapêutica) I e II, localizados respectivamente na região da Armênia, a três quilômetros de distância do Atende 2, e no Glicério, a dois quilômetros e que foi inaugurado no mesmo dia da transferência. Esses equipamentos fazem parte do Programa Redenção, criado quando o atual governador João Doria era prefeito da cidade, em 2017.

    Há 11 anos nas ruas, Welington aponta, no entanto, que a transferência não vai reduzir o problema da dependência química. “É uma situação difícil. O que eu vou fazer eu não sei. Não vai mudar nada indo pro Glicério, a gente vai acabar voltando pra cá”, afirma.

    A principal preocupação para a assistente social Carmen Lopes de Almeida é de que a população de rua que se aglomera no local é grande e o fechamento da unidade prejudica o auxílio a quem vive na região central em plena pandemia do novo coronavírus. “Está sendo fechado o único equipamento da prefeitura que atende o território da Cracolândia (*). Onde essas pessoas vão lavar a mão, vão comer?”, critica.

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    “Aqui eles têm 200 almoços, 200 pernoites, têm banheiro e água. O que a gente quer deixar claro é que ninguém é contra tirar essas pessoas daqui. O que não pode é deixar essas pessoas sem serviço para serem atendidas”, explica.

    Esse também foi um dos argumentos da Defensoria Pública de São Paulo em ação civil pública solicitando à prefeitura a suspensão do encerramento do Atende 2, nesta terça-feira (7/4). O Ministério Público também havia endossado o pedido da Defensoria, definindo o fechamento da unidade como “tragédia humanitária”. No entanto, a ação aconteceu sem o Tribunal de Justiça ter se manifestado.

    Os defensores apontaram a necessidade de se manter “a vocação do equipamento para prover o que há de mais básico para exercício da dignidade humana: fornecimento de alimentação, água, banho, espaço para higiene das mãos e prestação de socorro àqueles que apresentam sintomas de Covid-19 com o devido encaminhamento a UBSs e hospitais”.

    Usuários do Atende 2 foram transferidos em ônibus e vans para equipamento na região do Glicério | Foto: Pedro Ribeiro Nogueira e Caio Castor/Ponte Jornalismo

    A reportagem observou pelo menos três ônibus e seis vans levando pessoas conforme assistentes sociais conferiam nomes em uma lista. A cada um era oferecida uma máscara e havia aglomeração para a entrada em cada veículo.

    A imprensa foi impedida de entrar no espaço do Atende 2. Funcionários informaram que seria feita a limpeza do local e que ele seria mantido fechado. Questionados, eles também não souberam dizer qual seria a nova função do imóvel.

    Pouco mais de uma hora após a desativação do equipamento, outras pessoas em situação de rua que vivem no local e que estavam dispersas durante a ação retornaram à rua Helvétia.

    Procurada pela Ponte, a assessoria de imprensa da prefeitura de São Paulo enviou um release detalhando a inauguração do SIAT II Glicério, com as seguintes informações: “o local tem 200 vagas, sendo 100 para atendimento diurno e 100 para pernoite, destinadas a homens, mulheres e transexuais em situação de rua e dependência química”. Serão oferecidos café da manhã, almoço e janta, e a unidade dispõe de atendimento prioritário aos usuários do Atende 2. “Além disso, uma unidade de saúde vai funcionar dentro do equipamento com uma equipe de trabalho composta por assistentes técnicos e sociais, psicólogos, pedagogos, orientadores socioeducativos e agentes operacionais”, aponta trecho da nota.

    O órgão não respondeu sobre as demais pessoas em situação de rua nem sobre a ação civil pública e o que será feito com o espaço do Atende 2.

    Já a assessoria da Defensoria Pública declarou que vai aguardar decisão judicial em relação à ação civil pública e que pede que a prefeitura elabore materiais informativos sobre o risco da Covid-19 e “plano para atendimento de pessoas em situação de rua durante a pandemia que se encontram na região conhecida como Cracolândia, intensificando ações para acesso a alimentação, equipamentos sanitários e de prevenção de doenças”.

    A assessoria do Ministério Público também informou que aguarda decisão judicial.

    (*) A Ponte evita usar a expressão “cracolândia” para se referir a regiões ocupadas por pessoas pobres no bairro da Luz, em São Paulo, ou em outros locais, por considerá-la imprecisa e preconceituosa. As pesquisas mais amplas sobre o tema, como a Pesquisa Nacional sobre o Crack feita pela Fiocruz em 2016, apontam que as causas da situação de vida dessas pessoas estão muito mais relacionadas com a pobreza e a exclusão social do que com o uso de alguma substância. Entenda: ‘Repórteres que falam em Cracolândia são uma fraude’, diz Carl Hart.

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    […] Mesmo com a pandemia de Covid-19, as operações no território continuaram. Os promotores utilizaram reportagem da Ponte, de março de 2020, em que pessoas em situação de rua relataram aumento da repressão da GCM, com uso recorrente de bombas, e apreensão de pertences dos acampados na Praça Princesa Isabel, a partir do mês seguinte, uma vez que o Atende II, o último equipamento social da Prefeitura que atende a população de rua na Luz, foi fe…. […]

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