Justiça nega pedido de promotora para prender jovens que iriam a ato contra aumento da tarifa em SP

Desembargadora apontou que não houve ilegalidade em decisão que determinou soltura de 7 pessoas com uso de tornozeleira eletrônica; para a polícia, manifestantes tentavam abolir Estado Democrático de Direito

Manifestante pula por cima de catraca que seria queimada de forma simbólica representando a reivindicação por tarifa zero | Foto: Daniel Arroyo/Ponte Jornalismo

O Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP) negou, nesta segunda-feira (15/1), o pedido do Ministério Público estadual (MP-SP) para prender sete pessoas que participariam de protesto contra o aumento da passagem de metrô e trens na capital, no dia 10 de janeiro, e que tiveram a liberdade concedida em audiência de custódia mediante cumprimento de medidas cautelares, como uso de tornozeleira eletrônica e proibição de participar de manifestações.

A desembargadora Erika Soares de Azevedo Mascarenhas, da 15ª Câmara de Direito Criminal e relatora do pedido, argumentou que a medida liminar, ou seja, uma decisão de urgência só cabe para casos em que houve evidente constrangimento ilegal ou abuso, o que, para ela, não aconteceu quando o juiz Antonio Balthazar de Matos determinou a soltura dos sete.

A magistrada entendeu que Balthazar de Matos expôs argumentos suficientes para emitir a decisão e que a promotora Ana Paula Freitas Vilela Leite fez um pedido “inadequado” por não questionar essencialmente se houve legalidade ou necessidade da prisão, que é o que a audiência de custódia avalia, e ter trazido elementos que só a investigação vai poder esclarecer.

A representante do MP-SP alegou que a Constituição Federal garante o direito à manifestação pacífica e sem armas, mas os sete detidos, incluindo um que portaria apenas gazes farmacêuticas, formavam “uma associação criminosa armada, que se dirigiu com muitas armas à manifestação, pondo em risco todos os manifestantes” e que, ainda, aliciaram adolescentes. “Houve, sim, inequívoca grave ameaça, inclusive, expressa, e o escopo foi restringir o exercício dos poderes constitucionais, no caso, o executivo, responsável pelo serviço do metrô, via concessão ou diretamente”, escreveu Ana Paula Leite.

Como Ponte revelou, 25 jovens, entre adultos e adolescentes, foram detidos por volta das 18h na saída da estação República do Metrô, na quarta-feira (10/1), que fica a aproximadamente 500 metros do Theatro Municipal, onde acontecia a concentração do ato convocado pelo Movimento Passe Livre (MPL) contra o aumento da passagem de R$ 4,40 para R$ 5, que começou a valer no dia 1º de janeiro por determinação do governador Tarcísio de Freitas (Republicanos).

Dentre os 25, a polícia afirma que 13 deles, sendo sete adultos e seis adolescentes, estavam com objetos como faca, canivete, gaze, porrete, garrafas de álcool, gasolina e vinagre. O delegado Alexandre Henrique A. Dias, do 3º DP (Campos Elíseos), entendeu que os adultos cometeram os crimes de tentativa de abolir violentamente o Estado Democrático de Direito, associação criminosa e corrupção de menores.

Com exceção deste último, os adolescentes foram autuados por atos infracionais análogos e o tribunal não deu informações sobre o resultado da audiência deles. O inquérito referente aos adolescentes tramita em segredo de justiça e em fórum diferente, por isso a promotora menciona apenas os sete adultos.

Especialistas entrevistadas pela Ponte esboçaram preocupação com os crimes atribuídos aos jovens por entenderem que é uma forma de cercear o direito ao protesto. Tentativa de abolir violentamente o Estado Democrático de Direito, cuja pena varia de quatro a oito anos de prisão, é um crime que passou a existir em 2021, quando foi aprovada durante o governo do presidente Jair Bolsonaro uma nova lei para substituir a Lei de Segurança Nacional que havia sido criada durante a ditadura civil-militar.

Esse é um dos crimes pelo qual ao menos 30 pessoas que participaram dos atos antidemocráticos de 8 de janeiro de 2023 foram condenadas pela destruição dos prédios dos Três Poderes, em Brasília, e filmagens em que pediam intervenção militar e queda do Supremo Tribunal Federal (STF) por não aceitarem o resultado das eleições de 2022.

No boletim de ocorrência sobre os 25 detidos, o delegado justificou os indiciamentos ao escrever que mensagem de rede social, não explicitando qual, convocando o protesto que “evolui para um chamado de que se não tiver seus anseios atendidos irão ‘parar a cidade’ alimenta por si só um sentimento de enfrentamento” porque o horário marcado para a caminhada do ato começar coincidia com a saída das pessoas do trabalho, o que motivaria, para ele, “caos e desordem urbana” e causaria “um genuíno atentado contra o Estado Democrático de Direito no seu viés de aplicação de políticas públicas prevista na Constituição Federal, não sendo a violência a forma adequada e legal para solução de lides”.

No inquérito, foram anexadas uma postagem do MPL que traz orientações sobre como se proteger da violência policial, cujo texto não trazia ilegalidades; um vídeo de parte da caminhada de um protesto, que não se informa a autoria, em que o delegado Alexandre Henrique A. Dias, do 3º DP (Campos Elíseos), destaca se tratar de “imagens dos fatos, com as faixas de “‘antifas’ e ‘Fogo no Pavio’”; um flyer com fotos de manifestações em que aparece em destaque uma faixa escrita “se a tarifa não baixar, a cidade vai parar”, com o logo do perfil Federação das Organizações Sindicalistas Revolucionárias do Brasil (FOB); e uma página em branco com a frase “Coquetel molotov é uma arma química incendiária, que combina diversos líquidos inflamáveis e é, geralmente, utilizada em protestos e guerrilhas urbanas” em que não fica claro se é uma postagem nem de onde foi retirado.

Na última sexta-feira (12/1), o MPL emitiu nota pública em que considerou as detenções como “absurdas” e uma “tentativa de intimidação”. “Antidemocrática é a atuação das forças policiais e do judiciário quando criminalizam quem está em audiências públicas e nas ruas lutando por direitos”, diz trecho do texto.

O movimento convocou um novo protesto para esta quinta-feira (18/1), às 17h, na Praça da República, no centro da cidade.

Procurada pela reportagem, a assessoria disse que o Ministério Público só se manifesta nos autos.

Novo “18 do CCSP”

A forma como a Polícia Civil e o Ministério Público têm atuado neste caso é semelhante à famosa detenção que ficou conhecida como “os 18 do Centro Cultural São Paulo (CCSP)”. A diferença é que a detenção dos 25 partiu da Polícia Militar e não de uma investigação da Polícia Civil.

Em 4 de setembro de 2016, 18 jovens foram detidos diante do centro cultural na região central da capital, antes de uma manifestação contra o presidente Michel Temer (MDB) na Avenida Paulista, em uma operação policial em que um juiz comparou aos crimes da ditadura militar e que envolveu a participação — nunca explicada pelas autoridades — de um capitão de inteligência do Exército, atuando sob identidade falsa e com práticas recorrentes de assédio sexual, como a Ponte revelou ainda naquele ano.

Ao todo, foram 21 detidos, incluindo três adolescentes. O encontro havia sido marcado em grupos de Facebook, que haviam sido criados por jovens que não pertenciam a movimentos organizados nem a partidos políticos, mas queriam um grupo para ir à manifestação, pois tinham medo da repressão policial.

Nem todos eles se conheciam. Um dos detidos, inclusive, nem participava do grupo e estava no centro cultural porque fazia uma pesquisa para o trabalho de conclusão de curso (TCC) para a graduação de jornalismo.

Na audiência de custódia, o juiz Rodrigo Tellini de Aguirre Camargo determinou a liberdade de todos. O magistrado afirmou que não havia ilegalidade na posse de qualquer dos objetos apreendidos com eles, como vinagre e material de primeiros socorros, nem indícios de que os jovens tivessem intenção de praticar algum delito. Comparou a ação do governo paulista à ditadura militar: “O Brasil como Estado Democrático de Direito não pode legitimar a atuação policial de praticar verdadeira ‘prisão para averiguação’ sob o pretexto de que estudantes reunidos poderiam, eventualmente, praticar atos de violência e vandalismo em manifestação ideológica. Esse tempo, felizmente, já passou”.

Mesmo assim, os 18 foram sido denunciados pelo promotor Fernando Albuquerque Soares de Souza com base em um inquérito policial em que o delegado Fabiano Fonseca Carneiro, do Departamento Estadual de Investigações Criminais (Deic), da Polícia Civil, apontava o porte de vinagre e de equipamentos de primeiros socorros como prova de crime, misturando as acusações com textos de articulistas conservadores, como o agora deputado federal Kim Kataguiri (União-SP) e o jornalista Reinaldo Azevedo, e discursos em favor do “estabelecimento de limites” para “o direito de livre manifestação”.

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Em 2017, o inquérito sobre os três adolescentes foi arquivado e, no ano seguinte, os 18 adultos foram absolvidos pelos crimes. A juíza Cecília Pinheiro da Fonseca argumentou que a polícia não conseguiu provar que os jovens se conheciam e nem que pretendiam cometer atos de vandalismo e violência contra policiais durante a manifestação.  “A prova, portanto, é no sentido de pessoas reunidas, sem demonstração nem de intenção nem de prática efetiva de atos de violência nem de vandalismo: a manifestação pública é permitida e nenhum objeto de porte proibido foi apreendido, o que também afasta a prática da corrupção de menores”, afirmou na sentença.

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