‘Eu sempre fui defensor da Polícia Militar, mas é muita falta de respeito com a população saírem atirando a torno e a direito’, conta um motorista atingido por estilhaços durante a repressão em Poços de Caldas
Foliões que curtiam a festa de carnaval promovida pela Prefeitura de Poços de Caldas (MG) voltaram para casa feridos e passando mal na madrugada de domingo (11/2). A Polícia Militar reprimiu a dispersão com uso de balas de borracha, bombas e gás lacrimogêneo na Praça Dom Pedro II, conhecida como Praça dos Macacos.
Vídeos divulgados nas redes sociais mostraram a repressão. As cenas mostram pessoas correndo tossindo por causa do gás e uma mulher jogada ao chão. Em um dos vídeos, um homem conta que teria sido agredido ao buscar ajuda de um policial para uma amiga que passava mal. Também é possível ver pessoas feridas nas pernas em frente a uma ambulância. Uma delas conta no vídeo que foi atingida nos calcanhares pela polícia quando comprava um lanche.
O motorista Lucas Santiago Cirino, 35 anos, foi uma das vítimas. Em um dos vídeos, ele aparece com a bermuda rasgada e com cortes na coxa. Ele contou à Ponte que estava com a família, aproveitando os shows que aconteciam na praça, e que ao final resolveu esperar a aglomeração se dispersar para não pegar trânsito na volta para casa. Foi quando os ataques começaram.
“Era 0h40 mais ou menos que [equipes da Prefeitura] desligaram o som. A gente só escutou o barulho de bomba e o pessoal correndo”, conta Lucas. “A praça estava lotada de família, de criança. Eu estava com meu cunhado, minhas tias, minha sobrinha, minha ex-esposa, as minhas filhas, de 8 e 15 anos, inclusive a minha filha mais nova tem [síndrome de] Down, e a mais velha passou mal. A mais nova só não se intoxicou porque a mãe foi acudir.”
Assim que Lucas percebeu que tinha cortes na coxa, correu para um pronto-socorro. De acordo com ele, estilhaços de uma bomba o atingiram, e por isso está tomando antibióticos. “Graças a Deus não teve nenhum corte profundo e não machucou as minhas filhas”, diz. “Mas tinha umas 20 pessoas na UPA [Unidade de Pronto Atendimento] porque aqui na cidade tem dois prontos-socorros. Eu fui para um onde não tinha ninguém, que é um pouco mais distante do centro.”
Lucas afirma que viu um homem próximo a ele ser ferido no olho com um disparo de bala de borracha. “Estou tentando buscar contato porque temos que levar isso para a justiça”, declarou. A Prefeitura de Poços de Caldas confirmou ao G1 que nove pessoas foram socorridas após as agressões da PM, inclusive um homem que levou um tiro de borracha no olho e uma adolescente de 13 anos, ferida na perna com o mesmo tipo de munição.
Usar balas de borracha para dispersar multidões e mirar nos olhos das vítimas são práticas que violam as recomendações dos fabricantes desses produtos e as próprias normas internas, conhecidas como “procedimentos operacionais padrão”, de muitas polícias. As regras da PM paulista, por exemplo, afirmam que as munições de borracha só podem ser empregadas contra um “agressor ativo, certo e específico”, mirando nas pernas, a uma distância de 20 metros, e nunca disparada aleatoriamente contra uma multidão.
Segundo Lucas, a versão da PM é a de que que foliões tinham arremessado garrafas em cima dos policiais, mas ele não presenciou algo do tipo. “O que eu vi é que depois que eles [policiais] começaram a atirar, o pessoal começou a jogar garrafa, jogar latinha contra a polícia. Havia uma multidão na praça, com criança, idoso, eles [policiais] foram para cima”, afirma. “Isso daí é uma coisa que não deveria ser feita. A corporação é instruída pra isso? Eu sempre fui defensor da Polícia Militar. Acho muito bonito o trabalho deles. Agora… eles fazerem uma dessa? Num ambiente desse? É muita falta de respeito com a população a pessoa sair atirando a torno e a direito”.
O motorista também denuncia que nenhum PM socorreu as pessoas feridas pelas armas menos letais. “Eu fui falar pro polícia. Ele falou: ‘foda-se, irmão, vai, foda-se’. Ele falou bem assim pra mim”, disse, revoltado. “Foi uma cena de guerra. Não tem cabimento isso.”
Lucas disse que tentou registrar um boletim de ocorrência, mas os policiais civis da delegacia onde esteve teriam lhe dito que só poderiam atendê-lo na quinta-feira (15).
O que dizem as autoridades
Procurada, a Polícia Militar respondeu, por e-mail, que responderia às perguntas da reportagem no telefone (31) 3071-2607. A Ponte tentou ligar por mais de duas horas, repetidas vezes, e não foi atendida.
Ao ser perguntada sobre a afirmação de Lucas Cirino de que uma delegacia teria negado atendimento, a assessoria da Polícia Civil disse que está em regime de plantão e a delegacia da cidade “está funcionando normalmente”. Sobre o caso, informou que “as ocorrências de desacato e resistência foram lavradas pela Polícia Militar”, que não havia localizado registro sobre feridos e que cabia buscar a assessoria da PM, pois é a corporação que costuma registrar “ocorrências de menor potencial ofensivo”.
A reportagem não conseguiu contato com representantes da Prefeitura de Poços de Caldas.
Ao G1, a Polícia Militar respondeu com uma nota em que omite informações sobre os feridos pela PM e diz que os policiais teriam reagido à violência dos foliões. “Após o encerramento do show, observou-se que muitos veículos permaneciam estacionados, ainda com som alto. Os militares então orientaram os proprietários sobre o encerramento do evento, solicitando o desligamento dos aparelhos de som automotivos. Apesar da cooperação da maioria, alguns indivíduos, insatisfeitos com a situação, iniciaram atos de vandalismo, lançando garrafas contra as viaturas policiais e incitando outros presentes a fazerem o mesmo. Uma policial feminina foi agredida com o arremesso de um copo de cerveja no rosto, bem como diversos policiais sofreram agressões”, afirma a nota da PM, segundo o site. O texto afirma que “dois policiais sofreram escoriações e outros seis foram agredidos, porém sem lesões” e que “uma viatura também foi danificada após ser atingida por garrafas”.