Inocentado de extorsão, Gabriel volta a ser condenado pela mesma investigação

Motorista de aplicativo foi condenado a 19 anos de prisão, em 3 de outubro, com base no mesmo inquérito que já havia sido questionado pela justiça em outro processo

O motorista de aplicativo Gabriel Hernandes Souza Santos, 32 anos | Foto: Arquivo pessoal

A chaga na vida do motorista de aplicativo Gabriel Hernandes Souza Santos, 22 anos, começou com um ato corriqueiro, quando tirou uma dezena de fotos 3×4 para o cadastro no bilhete único de transporte. O que ele não imaginava é que as fotografias o levariam a duas condenações por extorsão e roubo. Na primeira delas, ele foi inocentado por falta de provas. Contudo, em 3 de outubro do ano passado, acabou condenado a 19 anos em outor processo, baseado no mesmo inquérito que já tinha sido descredibilizado pela Justiça.

A situação aterroriza a mãe dele, Rosilene Porfirio dos Santos, 55 anos. O motorista está preso em na Penitenciária I de Reginópolis, no interior, que tem capacidade para 844 pessoas, mas abriga 1.158, segundo o site da Secretaria da Administração Penitenciária. “Meu filho está pagando por um crime que não cometeu. Eu quero justiça”, pede Rose.

Um longo caminho, provas fracas

Gabriel foi preso em 14 de dezembro de 2022, na casa em que vivia com a esposa, que foi vasculhada pela polícia com base em um mandado judicial de busca e apreensão. Em agosto de 2023, a Ponte contou a história da primeira condenação do motorista.

As situações que levaram à prisão de Gabriel foram roubos que seguiam o mesmo modus operandi. Um grupo aborda uma vítima e exige que ela faça transferências bancárias. O dinheiro é enviado via Pix para uma conta — e é aqui que o delegado da Polícia Civil Bruno Barros Maciel, do 100º DP (Jardim Herculano), conecta o motorista às acusações. 

Em maio de 2023, um entregador foi assaltado no bairro Cidade Ipava, na zona sul da cidade de São Paulo. Ele apresentou um comprovante com informações da conta de destino dos R$ 1 mil subtraídos. Pelo extrato, a polícia obteve os dados bancários do PagBank, nome e e-mail vinculados ao destinatário.

O nome era de um delegado, Rodrigo Gentil Falcão, que teve a participação do crime descartada pelo investigador do caso, pois o endereço não batia com a residência do agente público. Falcão nunca foi ouvido. 

A Polícia Civil teve acesso ao documento usado na abertura da conta. O RG falso tinha o nome e dados do delegado, mas a foto era de Gabriel. Também era do motorista de aplicativo a imagem usada para verificação de segurança. 

O processo de abertura da conta no PagBank pode ser feito em 20 minutos. Ele exige dados como CPF e e-mail, além de pedir que seja baixado um aplicativo no celular para uma verificação de segurança. Esta etapa consiste na apresentação de uma selfie, imagem que será confrontada com a apresentada no documento. 

O método não é o mais recomendado por especialistas e é passível de fraudes. Na época da primeira condenação de Gabriel, a Ponte ouviu Afonso Morais, especialista em fraudes digitais e CEO da Morais Advogados. Ele explicou que o ideal é que seja feita uma “prova de vida”.

Com o rosto virado para a câmera, a pessoa submetida ao protocolo tem que seguir orientações como virar o rosto para a esquerda ou sorrir. Nos casos em que é exigida selfie, existem maneiras de adulteração. 

“Muito sistema em que você tira uma foto com a identidade do lado pode ser falsificado, pode ser uma montagem. Hoje em dia já se falsifica até impressão digital: ao roubar seu celular, eles conseguem pegar a sua. Eles [criminosos] conseguem pegar fotos das pessoas nas redes sociais e conseguem fazer a selfie”, disse Morais à época. 

À esq., RG falso usando a foto 3×4 de Gabriel; à dir., foto usada para abrir conta virtual no PagSeguro | Foto: Reprodução
À esq., RG falso usando a foto 3×4 de Gabriel; à dir., foto usada para abrir conta virtual no PagSeguro | Foto: Reprodução

A advogada de defesa de Gabriel, Fernanda Monique de Jesus, diz que a foto usada tinha sido compartilhada pelo motorista em um grupo público no WhatsApp. Era comum que os integrantes, a maioria trabalhadores de aplicativos de viagem, mandassem selfies como forma de prevenção. Em caso de desaparecimento, seria fácil saber como a pessoa estava vestida, por exemplo. 

Na versão da defesa e da família, o elo entre os crimes e o motorista é um primo. Ele teria acesso à casa de Gabriel e, portanto, poderia ter pegado as fotos 3×4. O parente também estaria no grupo de WhatsApp, onde selfies eram enviadas diariamente.

A investigação policial apontou que era do primo de Gabriel o endereço ligado à conta de destino do dinheiro da vítima. Outro ponto de conexão é que o montante roubado foi gasto em um mercado próximo da casa do primo. 

Já o e-mail que consta na conta é a junção do nome de Gabriel e do primo, acrescido do número 29. A família do motorista diz que essa era a idade do parente à época.

As informações são mencionadas no relatório da investigação, mas não apontam o primo como suspeito. Ouvido em juízo, o investigador Marcus de Quintella, que participou das apurações quando Gabriel já tinha sido identificado, disse não saber o motivo de o primo não ter sido investigado. 

Gabriel não foi reconhecido pela vítima do roubo em maio. O celular e um HD, apreendidos durante mandado de busca e apreensão na casa do motorista, nunca foram periciados. A investigação não respondeu também qual aparelho telefônico foi usado para a abertura da conta digital.

Para o desembargador J.E.S. Bittencourt Rodrigues, da 13ª Câmara de Direito Criminal do Tribunal de Justiça de São Paulo, a única ligação de Gabriel com o crime é o RG falso, que pode ter sido adulterado em conhecimento do motorista.

Em outubro do ano passado, o magistrado decidiu pela absolvição de Gabriel e o entendimento foi acompanhado pelos demais desembargadores. “Assim, embora não se possa afirmar peremptoriamente que não tenha o acusado praticado o crime a ele imputado, também não é possível descartar a versão sustentada pela defesa de que outra pessoa tenha usado sua foto e seus dados para abrir uma conta digital em nome de terceira pessoa para praticar crimes”, afirmou Rodrigues.

No relatório, o desembargador criticou a postura da promotora Maria do Carmo Galvão de Barros Toscano. Ela ofereceu denúncia contra Gabriel sem pedir nenhuma diligência à Polícia Civil.  

“No caso em apreço, considerando-se que o Ministério Público não se desincumbiu do ônus de trazer aos autos elementos probatórios consistentes de que o acusado praticou os fatos descritos na peça acusatória, melhor e mais prudente que seja proclamada a absolvição do increpado”, escreveu.

A pedido da Ponte, os advogados criminalistas Thais Rego Monteiro e Damazio Gomes da Silva analisaram o processo que levou à primeira condenação de Gabriel.

Thais apontou que o MP foi omisso no caso, que poderia ter levado a um resultado diferente caso diligências tivesse sido requeridas. “O MP não faz justiça, ele é parte, ele acusa, então ele olha as provas de acordo com o entendimento que ele pretende. Raros são os promotores que realmente fazem justiça e têm uma visão imparcial de casos criminais”, disse.

Já Damázio apontou que o inquérito é cheio de lacunas. A principal delas é a ausência de investigações sobre o primo. “Houve alguns elementos que não podem ser esclarecidos. Por exemplo, o advogado argumenta que o Gabriel menciona que o primo pode ter sido quem pegou a foto e eles não tocam para frente, não vão pedir diligência”, afirma.

Inquérito voltou a incriminar Gabriel 

A mesma investigação foi usada para incriminar Gabriel por um roubo seguido de extorsão ocorrido em março de 2023. Na época, um entregador foi abordado por três homens, que, além de roubarem itens que estavam com ele, transferiram R$ 1 mil da conta. Fotos dele no formato de selfie e de seus documentos também teriam sido tiradas pelos assaltantes. Na ocasião do crime, a vítima se disse incapaz de descrever os responsáveis. O caso ficou parado até novembro do ano passado.

O entregador roubado foi intimada após a apuração mostrar que dados da vítima foram usados em uma tentativa de abertura de conta. Ele fez reconhecimento fotográfico e reconheceu dois homens. Gabriel não foi identificado. 

O dinheiro transferido da conta da vítima não foi para a conta do PagBank, aberta com o documento falso. A quantia foi depositada na conta de uma terceira pessoa, que, apesar de ter sido identificada, não foi apontada como suspeita e sequer foi ouvida.

Gabriel é ligado ao caso pelo e-mail com a junção de nomes. Ele foi usado na tentativa de abertura de conta da vítima. O promotor Rodrigo Otávio Frank de Araújo não pediu diligências e denunciou o motorista por roubo e extorsão, mesmo ele não tendo sido identificado pela vítima. 

A família diz que, no dia do roubo, Gabriel estava em casa. A prova apresentada foi uma troca de mensagens entre ele e a esposa. Ela, que não estava no local, teria pedido que Gabriel fechasse os vidros do carro após aviso no grupo do condomínio. Na troca de mensagens, ele confirmou que executou a tarefa.

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No julgamento do segundo processo, feito sete meses após o crime, a vítima reconheceu Gabriel e os dois homens que já tinha identificado na delegacia. Já a dupla previamente identificada afirmou não conhecer Gabriel. Mesmo assim, em 3 de outubro, ele foi condenado por roubo e extorsão a 19 anos de prisão.

O que dizem as autoridades 

A Ponte procurou a Secretaria da Segurança Pública (SSP-SP), o Ministério Público do Estado de São Paulo (MP-SP) e o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo (TJ-SP) questionando os pontos levantados na reportagem. Não houve retorno. 

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