José Cláudio Souza Alves, pioneiro no estudo de milícias e professor da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro analisa desfecho do caso Marielle: “uma gota d ‘água num oceano gigantesco”
Diferente de muitos de seus amigos, José Cláudio Souza Alves não está exultante com o que o ministro da Justiça Ricardo Lewandowski classificou como o “encerramento” das investigações sobre a execução da vereadora carioca Marielle Franco (PSOL) e do motorista Anderson Gomes.
“Eu olho para tudo isso e eu tenho uma alegria, mas tenho minha contradição. Conseguimos, pegamos uns cinco ou seis desses assassinos, desses canalhas. Mas eu sei do tamanho de tudo isso”, explica. O “tudo isso” é o entranhamento, especialmente no seio da polícia, mas não só, da corrupção herdada do autoritarismo da ditadura militar-empresarial que comandou os destinos do país de 1964 a 1985 (ou 89, a depender do gosto do leitor).
Ao parafrasear Darcy Ribeiro (autor da frase-título desta entrevista, mas trocando “segurança pública” por “educação”), José Cláudio lembra de que, apesar de a família Brazão, na figura dos irmãos Domingos Brazão, conselheiro do Tribunal de Contas do Estado do Rio de Janeiro, e Chiquinho Brazão, deputado federal (União Brasil – RJ), juntamente com o ex-chefe da Polícia Civil fluminense Rivaldo Barbosa, tenham sido presos por mandar e planejar os assassinatos, ainda há muita gente “matável” no Brasil, que seguem sendo mortas e seus executores seguem impunes.
Pioneiro no estudo das milícias no Brasil (seu livro Dos Barões ao Extermínio, esgotado, teve sua primeira edição publicada em 2003), José Cláudio carrega poucas ilusões sobre o que pode mudar depois das revelações que a investigação de a Polícia Federal fez sobre o caso Marielle – mesmo sobre o fato chocante de que o então chefe da Polícia Civil do Rio, que consolou a família e deu declarações à imprensa sobre o empenho nas investigações, seria quem efetivamente planejou o crime. “As estruturas criminosas com que eu já convivo há tanto tempo aqui e conheço não foram arranhadas, elas vão seguir funcionando”, afirma.
Em uma conversa de pouco mais de uma hora com a Ponte, José Cláudio lembra de casos anteriores de violência policial em todo o país, chama a atenção da relação da milícia com a política (“sempre tem um ‘inho’, muito cuidado com esses ‘inhos’”) e faz questão de lembrar o legado nefasto do período autoritário que comandou o Brasil seis décadas atrás: “Na ditadura empresarial-militar os caras falaram: ‘Aqui é nosso Rubicão. Aqui a gente ficou o pé e acabou, aqui, vim e venci. Daqui em diante ninguém vai conseguir nos desmontar’”.
Ponte — A revelação de que o Rivaldo Barbosa, então chefe da Polícia Civil do Rio de Janeiro, planejou o assassinato de Marielle pegou muita gente de surpresa. Você foi surpreendido por isso?
José Cláudio Souza Alves — Eu sou louco, não estou surpreso. Eu já estudo esse tema há mais de 30 anos. As milícias têm estruturas econômicas muito fortes, são ligadas a grupos econômicos, grupos já consolidados economicamente ou grupos em formação. Quando você vê o caso dela [Marielle], desde o começo se percebe que tem uma articulação mais elaborada, mais sofisticada.
Vou dar um exemplo: você não tem imagem do crime, quando você deveria ter muitas imagens produzidas por todos esses dispositivos que coletam imagens em tudo quanto é lugar hoje. Tem muita grana envolvida, compra de gente, articulações mais poderosas. Como isso logo no início começou a ficar evidente, você começa a perceber que é uma estrutura miliciana que tem poder, que tem sofisticação. De um lado é grana, são estruturas econômicas que se movimentam. E associado à grana, você tem necessariamente uma estrutura política que vai proteger os interesses envolvidos ali. De cara eu comecei a perceber que são profissionais de execução sumária. Eles não estão simplesmente aprendendo alguma coisa, eles são pessoas treinadas.
Como a resolução do crime acabou demorando demais, virou uma disputa interna da estrutura de segurança pública. Agora vem à tona que havia, de fato, o esquema do delegado, do chefe da Polícia Civil, o Rivaldo Barbosa, junto com Giniton Lages, ligado à Delegacia de Homicídios. Eu vi logo de cara, percebi, pensei: “isso aí é mais sofisticado Não vão conseguir tão facilmente chegar até essas pessoas”.
Já dava muito claro que havia uma disputa política. Havia uma estrutura que passava por dentro do poder do Estado, passava por grupos políticos que, de fato, tinham interesse em eliminar Marielle. Ela representava uma ameaça para essa estrutura,ela tinha poder para ameaçar: era uma vereadora que tinha assumido a relatoria da CPI da Intervenção, e ela vinha de um partido de esquerda que tinha posicionamentos contrários a essa estrutura miliciana.
Mas você não tinha a evolução das investigações, tudo começou a ficar obstruído Hoje a gente sabe aí todo o esquema que foi montado na obstrução. Talvez o que não esteja muito claro é como é que o Rivaldo Barbosa foi bancado pelo então general interventor Walter Braga Netto, se havia já de antemão alguma costura, não tem nenhuma prova disso. Não aparece [no relatório disponibilizado pelo STF] o fato de os Brazão e os Bolsonaro estarem muito próximos em termos de moradia, de interesses políticos, de votações. Tem essas pontas que ficam no ar, que ficam soltas, se a Marielle tinha informações que pudessem trazer mais prejuízos para grupos maiores, politicamente falando, além dos Brazão, se esses grupos também não se valem agora de uma estratégia muito comum, que é jogar pro andar de baixo: no caso dos Brazão, o andar de baixo é ali.
Ponte — Uma questão que realmente deixou as pessoas muito de cabelo em pé é essa participação do Departamento de Homicídios da Polícia Civil no crime. Dentro das suas pesquisas sobre as milícias no Brasil, o senhor já detectou anteriormente esse nível de infiltração do processo miliciano dentro de departamentos específicos da Polícia Civil? Ou é uma coisa que já era mais endêmica, que perpassa todo o sistema policial?
José Cláudio Souza Alves — São os dois casos. Eles [milicianos] tanto têm uma intervenção direta nas áreas de interesse deles e tem o que você acabou de dizer, que é algo endêmico, geralzão, que vai dar a base da extrema direita, a base do “bandido bom é bandido morto”. As milícias têm uma dimensão institucional, cultural, com o discurso político colado muito forte a essa dinâmica institucional é muito forte. Isso vem desde a ditadura militar-empresarial de 1964. A montagem dos grupos de extermínio, que são os antecessores das milícias, são a montagem de um aparelho dentro do Estado e ao mesmo tempo não assumido pelo Estado, clandestino, ilegal. São invisibilizados, mas são o próprio Estado. É uma estrutura de controle absoluta, totalitária.
Se você batesse de frente com qualquer grupo desses, naquela época, na Baixada Fluminense, você estava eliminado. Eles eliminavam qualquer pessoa que se contrapusesse a eles, talvez não eliminaram gente do porte da Marielle. Naquele momento eles começaram eliminando gente “matável”, gente pobre, gente simples, gente periférica, favelados. Normalmente é essa massa que eles estão sempre matando. E é aí que eles treinam a sua técnica de execução sumária, a sua capacidade de provocar danos à vida alheia. Esse é o geralzão que nós temos
E nós temos um específico, que aí são os casos. Na Baixada, por exemplo, eu vou lá atrás. No meu livro eu trago o caso da Rua das Rosas, que são dois policiais acusados de matar dois garotos, em uma rua lá em Belford Roxo, numa barbearia. No julgamento desse caso, que os jornais trazem da época, a audiência é composta por policiais militares, que vão para lá para dar apoio aos acusados. Desnecessário dizer que eles foram absolvidos. Já havia ali um indício dessas montagens todas.
O Judiciário, todo ele é recortado. Tem um caso exemplar, denunciado pela Tânia Maria Salles Moreira, uma promotora pública aqui da Baixada, em Duque de Caxias. Ela identifica um juiz [não vou citar o nome do juiz porque ela foi processada por essa denúncia e morreu antes do processo ser concluído). Um candidato a vereador tinha sido preso em Duque de Caxias, o nome com o qual ele concorria às eleições era Pedro Capeta, membro de grupo de extermínio. Ele foi preso e com ele se encontrou uma carteirinha de oficial de justiça do Fórum de Caxias dada por esse juiz, e uma arma, que tinha sido apreendida pela Justiça em um crime anterior e que tinha sido acautelada por esse juiz também na mão desse Pedro Capeta. Isso foi na década de 1990. Essas estruturas sempre existiram, sempre funcionaram e isso não foi alterado e não vai ser alterado.
Estamos de parabéns com esse avanço no caso Marielle, é uma vitória, uma batalha que você ganha em uma batalha no meio de uma guerra. Tem que se comemorar quando se resolve em meses o que não se resolveu em cinco anos e pouco. Mas isso não significa que essa estrutura toda da qual estou falando, que vem de seis décadas, da ditadura empresarial-militar, não vai se resolver. É algo de uma proporção impensável, eu tenho ideia porque eu estudo isso, mas nem eu tenho ideia suficiente de como essa estrutura é.
Estou falando aqui de um pedacinho do Brasil, que é a Baixada Fluminense, na região metropolitana do Rio de Janeiro. Você imagina, agora, essa estrutura Brasil afora. Vão ser o que? Grileiros, agronegócio, empreiteiras, mineradoras, latifundiários, toda espécie de gente que trabalha em grandes empreendimentos lançam mão dessa estratégia que foi montada 60 anos atrás.
Se eles se sentirem que pela grana não vão resolver seus problemas, vai ser na bala. E no caso da Marielle, não é só a terra, terra é a porta de entrada. Claro que é essencial, é o território, naquele espaço que vai se constituir tudo. Dali vêm empreendimentos imobiliários, construções, venda de aterro sanitário clandestino, serviços como água, gás, luz, “gato net”, transporte clandestino. Enfim, você tem aí uma urbanização toda de serviços e bens controlada por uma estrutura de grana, de poder criminoso, que está diretamente acoplada ao Estado.
As pessoas não gostam, elas ficam apavoradas quando ouvem isso: é o Estado, é ele próprio exercendo a sua capacidade de controle totalitário, de forma armada e violenta. A gente pode até dizer que são ilegais, são clandestinos, mas o que é o legal, o que é o ilegal? Nós pegamos o caso Marielle como o grande exemplo da ilegalidade que tem que ser combatida, mas a estrutura toda funciona legalmente e ninguém toca nela.
Vou dar um exemplo do que é legal, que está rodando e que ninguém toca. Tem lá uma área em Duque de Caxias de 3.500 hectares, um negócio gigantesco. O ex-prefeito Quer criar o Cearj, Centro de Abastecimento do Rio de Janeiro. Ele quer pegar esse Campo do Bomba, de 3.500 hectares de terra e destinar 20 % desse território para construir o Cearj. Pô, maravilha. E os 80% restantes? Vamos desenvolver empreendimentos imobiliários. De quem? Nessa área do Campo do Bomba há quase 30 anos operam várias milícias que vendem terras da União (porque aquela área toda ali é terra da União) como se fossem áreas particulares,eles dão registro geral de imóveis para os terrenos que estão vendendo para a população, divididos em não sei quantas prestações, isso já há quase 30 anos. Ou seja, é um projeto legal para legalizar o que é o criminoso, que já está ali estruturado há tanto tempo, e ninguém vai tocar em nada, isso vai continuar e daqui a pouco vai ser aprovado.
Em outras áreas da Baixada os caras identificam terrenos que não pagam o IPTU, ocupam esses terrenos, passam a pagar o IPTU e passam aquele terreno para o seu nome. É outra estratégia. Você vai para áreas de proteção ambiental, ali em Nilópolis, em Mesquita, até ali na Chatuba
Você tem inúmeras estruturas legalizadas desses mecanismos que estão funcionando, e ninguém vai tocar nelas, porque é muito poder. Um grupo armado que fica num território seja nas áreas dos Brazão, na zona oeste da capital, em Jacarepaguá, até aqui na Baixada Fluminense. Ninguém toca nisso porque é muito voto, é muito dinheiro. A estrutura de poder político local já está toda envolvida e dependente dessas milícias.
Aí vem [o presidente] Lula (PT), se elege e coloca a mulher do prefeito de Belford Roxo como ministra. O próprio Lula reconhece essa estrutura e usa dela quando precisa, e depois tem que desfazer o acordo, porque já traz um monte de prejuízo. Essa estrutura vai comprometer todos nós aqui nessa sociedade.
O caso Marielle é um caso visível. Eu dou meus parabéns, porque achava que não iam conseguir resolver o caso, mas conseguiram. Agora, as dimensões que eu já convido há tanto tempo aqui e conheço, elas não foram arranhadas, elas vão seguir funcionando. 2024 é um ano eleitoral. Você tem certeza que se vai tocar na disputa de grupos milicianos em Belford Roxo, que estão na prefeitura, estão na Alerj (Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro)?
Você quer votos para suas eleições futuras, em 2026 para governador mesmo. Quem é que nós podemos dizer que está interessado em fazer essa mudança neste país? Eu não vejo Essa é a minha contradição essencial De um lado eu tenho muita alegria de ver um caso que tem um estande probatório razoável, que tem levantamento de várias informações, mostrando todo o ambiente, as disputas políticas, os interesses colocados, a trajetória dos Brazão, do Rivaldo Barbosa, do Giniton, é muito bom ver isso, é uma alegria ver que gente começa a pensar e perceber isso. Mas por outro lado você vê que isso é uma gota d ‘água num oceano gigantesco, que está se movimentando nas direções políticas, eleitorais, deste ano e futuras.
Ponte — As taxas de resolução de homicídios pela Polícia Civil no Brasil todo são muito baixas. Mas quando a gente vê um delegado-chefe da Polícia Civil planejando uma execução, a gente se pergunta se essas taxas são baixas apenas por incompetência da Polícia ou se tem algo a mais…
José Cláudio Souza Alves — Eu vou parafrasear Darcy Ribeiro, que disse que “a crise da educação não é uma crise, é um projeto que deu certo”. A crise da segurança pública é um puta projeto e ele dá certo. Ele traz um monte de benefícios para uma galera. Se você reprime as drogas, você tem todo o mercado de drogas com preços altíssimos, com fações poderosíssimas. Você vai encher os presídios com essa galera, você vai matar essa galera e fazer o preço da droga aumentar. Isso movimenta uma economia ilegal fabulosa, um quilo de cocaína comprada na Bolívia por R$ 6 mil, a barata, você bota a Pó Royal e vende por R$ 42 mil reais no varejão. Se você vai para a Europa e pega uma cocaína da Bolívia, você transforma R$ 10 mil reais em R$ 360 mil reais o quilo da cocaína vendida lá, batizada na Europa. Não tem comparação, toda a estrutura é muito dinheiro. Vamos matar essa galera, “bandido bom é Isso aí, bandido morto”. É um capítulo dessa estratégia de segurança pública que movimenta um monte de grana
Se você olha para os outros negócios, tráfico de armas, roubo de carga Todos os negócios milicianos do gás, água rede elétrica, transporte clandestino, aterro sanitário clandestino, combustível adulterado, roubado de oleoduto da Petrobras, pesca clandestina na época do defeso. Eles têm duzentos mil negócios.
Quando você olha para esse outro lado, que é o negócio mais miliciano, começa a ver quem controla a votação. Aí são os de Brazão, outros nomes que não vou falar aqui ou vou começar a ter problema, mas são várias famílias e grupos políticos envolvidos nisso, com graus variados. Você tem desde o cara limpinho, bonitinho, fofinho, que vai fazer discurso que sei lá, ele é influencer. Ou ele é um cara projetado pela mídia toda. Normalmente é ‘inho’, “Fulaninho”, “Beltraninho”. Esses “inhos” aí tem que tomar cuidado, porque é a galera que tá misturada com tudo isso, abre o olho quando aparece um um “inho” (risos). E aí tu vê esses caras todos, ninguém pega, ninguém sabe, eles estão ali bonitos. Ninguém vai tocá-los, porque eles tem todo um ambiente, um entourage que vai protegê-los.
E tem uns caras que estão nas escalas mais baixas, que sujam as mãos de sangue, que tem um controle territorial mais violento, que também se elege com muito voto. E quando um desses cai, é preso, como o Carlinhos da Barreira, um cara lá de Duque de Caxias, o mais votado, que foi preso em um esquema de extorsão. Esse caiu, mas o resto permanece.
Essas estruturas todas estão ali lucrando com essa “crise” de segurança. Mas lucrando muito, não estou falando aqui de dinheirinho, de salário de professor. Isso que eu vivo, de um governo que não quer nem negociar reajuste, que tá cagando em cima da gente. Ele quer déficit zero, foda-se professor de universidade, “vocês se ferraram porque lutaram por mim contra o Bolsonaro, o problema é de vocês, vocês são uns idiotas, nós não vamos dar nada pra vocês”. É assim que eles me tratam.
Eu não estou falando desse salário de merda que eu tenho, estou falando de grana, de muita grana. De bicheiro que vai tirar, com caça-níqueis, R$ 4 milhões por semana. E aí esses bicheiros estão todos lá, citados no processo do caso Marielle. No processo você vê o envolvimento desses matadores com vários grupos desses que tem muito dinheiro, que vem desde a ditadura empresarial-militar, que estão disputando todo o espólio do jogo do bicho. Essa grana do bicho que vai para tráfico de drogas, para tráfico de armas.
Isso é um puta projeto, esse Brasil deu certo para essa galera. Aí muita gente do mundo acadêmico, muita gente do mundo da Justiça, do mundo jornalístico, vai olhar pra tudo isso e vai dizer ‘pô, que merda, o Brasil é uma desgraça, nós não demos certo nós somos uma bosta, simplesmente não somos capazes de ser um Estado”.
Não galera, não é nada disso. Ao contrário, deu certo, esse projeto funcionou e funciona pra uma galera. Não é essa palhaçada que a gente fica defendendo de Estado soberano, Estado que tem um monopólio legal da violência. Isso é piada isso aí não existe O que existe é esse Estado real. Se você não é capaz de identificar que ele deu certo, você não é capaz de mudá-lo. Você primeiro tem que mergulhar dentro dele, tem que saber o que é a sua essência. “tá na minha cara, se esfregando em mim e eu não percebia”, mas o caso da Marielle vai permitir a gente fazer isso.
Tem um monte de amigos meus que estão felizes, estão comemorando lá na zona sul, na cachaça, botecozinho. Beleza, eles estão felizes na vida. Eu olho para tudo isso e eu tenho uma alegria, mas tenho minha contradição. Conseguimos, pegamos uns cinco ou seis desses assassinos, desses canalhas. Mas eu sei do tamanho de tudo isso.
O traficante lá do Comando Vermelho, que é o que mais morre na mão da estrutura de segurança pública, é na Chacina do Jacarezinho, do Cruzeiro, do Alemão, da Maré, esse diabo de chacina pra todo lado. Você acha que ele quer que isso mude? Não quer: o preço da droga que ele vende depende dessa estrutura. Ele vai votar em gente que diz que vai acabar com isso? Não. Ele vai votar no Bolsonaro, vai votar na extrema-direita, porque esses caras mantêm os acordos.
Essa lógica funciona, ela é real. Ela está diante de mim, é com ela que eu convivo. é com ela que eu acordo e vou dormir. É preciso ter essa dinâmica muito presente. E pode entrar Bolsonaro, pode entrar Lula, pode entrar quem quiser nessa merda que isso continua funcionando. Eu sou um dos poucos doidos, talvez o único doido mental maluco no Brasil que fala sobre isso. E sei também das consequências disso, a família sofre, todo mundo sofre ao redor de mim. Eu não moro na Zona Sul, no Leblon, eu moro na periferia Baixada Fluminense, no meio de uma polícia que sabe onde eu moro.
E Marielle, qual foi o erro dela? Ela não tinha percepção de com quem ela estava se confrontando. E o partido dela, o PSOL, foi incapaz de perceber esse risco, essa disputa com essa estrutura. Foi incapaz de perceber que gente denunciada numa CPI em 2008 representaria uma estrutura de poder tão violenta que ia atingi-la dez anos depois.
A gente é iludido pela história de que o Estado é o bem, é a lei, tem monopólio da violência, tem soberania no seu território. A gente fica iludido por esses discursos fáceis, que são defendidos por qualquer acadêmico, por qualquer jornalista, qualquer político. Mas esse discurso é ilusão, a ilusão que levou ela à morte.
Ponte — Você conseguiria explicar sobre como essa infiltração tem funcionado dentro da Polícia Civil?
José Cláudio Souza Alves — Vou te dar dois casos gigantescos. O primeiro grande caso é de 2007, conhecido na história do país e do mundo como chacina do Pan-Americano O que que é isso? Nas vésperas dos Jogos Pan-Americanos, realizados naquele ano no Rio de Janeiro, há em torno de 1.500 homens das várias forças de segurança do Estado autorizadas pelo senhor Sérgio Cabral, então governador. Adentram o complexo do Alemão e matam 19 pessoas, no que seria uma operação policial para dar segurança à cidade, aos jogos.
No dia seguinte, uma comissão de peritos é nomeada pelo então secretário Especial Direitos Humanos do governo Lula, ligado diretamente à presidência da República, Paulo Vanucchi. A comissão identifica que 73 % das perfurações dos corpos estariam localizadas nas costas e na cabeça daqueles indivíduos. O que traria um indício gigantesco de que teriam sido execuções sumárias, porque numa troca de tiros atingir as costas e a cabeça de alguém que se confronta com você, não precisa nem ser especialista para se saber que é praticamente Impossível.
O que foi feito? O presidente da Comissão de Direitos Humanos da OAB (Ordem dos Advogados do Brasil) João Tancredo tentou fazer alguma coisa, mas foi impedido, acabou sendo defenestrado. A OAB não fez nada. Em outras instâncias, não houve investigação, não se avançou em nada.
E isso se repete em vários casos que vão sucedendo ao longo do tempo. Vimos agora três absolvidos: o crime do Jonathan, filho da Ana Paula, onde o tribunal de júri absolveu o policial que dá um tiro nas costas e mata esse rapaz; a Cláudia que foi arrastada por uma viatura da polícia, também teve aqueles policiais absorvidos; o caso do músico que levou mais de 80 tiros no carro, morto pelos membros do exército que também foram absolvidos.
Eu fui orientador de um cara ligado à Defensoria Pública, para quem os milicianos mais pobres pedem ajuda. E esse cara levantou os vários casos de processos levados adiante pela justiça contra milicianos. O que ele identificou? Simplesmente que o estande probatório de casos relacionados a milicianos é quase nada. Os caras não são condenados, são absolvidos. Isso é um estudo de doutorado dele pela UENF (Universidade Estadual Do Norte Fluminense) que mostra que nem em tribunal, nem em audiência, nem em decisões do juiz esses caras são condenados, simplesmente porque a estrutura toda vai funcionar para protegê-los.
O segundo caso é um que está rolando ainda na Baixada Santista, com essas operações da PM. Em 2023 você tem uma primeira fase de 40 dias de operações da Rota e de estruturas policiais da linha da Rota. Você não tem nem o que ocorreu lá em 2007 na chacina do Pan, que teve uma comissão especial autônoma da Secretaria de Direitos Humanos (isso que hoje temos um Ministério de Direitos Humanos), não foi indicado ninguém da esfera federal para fazer laudo desses corpos, não há investigação. Já tem uma segunda fase dessa operação Escudo (também chamada de Operação Verão) matando mais um tanto de pessoas, e o governo federal simplesmente não toca nisso. O ouvidor das Polícias está lá sozinho, tentando. Coitado, ele sabe o que ele consegue fazer, está tentando trazer luz. É um cara massacrado, ameaçado de morte.
Para encerrar eses casos Brasil afora, tem um caso lá no Pará, de assassinato de um prefeito. Não vou falar o nome da cidade senão eu entrego toda a estrutura. Esse cara era do PT, foi para o MDB e se elegeu, era ligado à área da saúde. E resolveu dizer, “nós vamos investir na saúde para ajudar a população”. O vice dele era ligado à estrutura de latifundiários e fazendeiros daquela região. Os caras deram o primeiro recado dizendo, “olha, tem que parar com essa sua política porque nós não estamos ganhando”. Avisaram uma vez, duas vezes, três vezes. Um certo dia, dois pistoleiros chegaram na cidade e mataram o cara.
Simples assim. As investigações avançaram na direção da mãe do vice-prefeito que assumiu a prefeitura. Você acha que isso foi concluído? Não, nada disso foi concluído. Isso é uma cidadezinha lá do Pará de 100 mil habitantes talvez. Ou seja, onde você for nesse país, essa estrutura funciona. Não é um caso isolado do Rio de Janeiro, da Maré, da Baixada. A meu ver, toda essa estrutura que vem desde sempre, desde que o Brasil é Brasil, ou mais especificamente, desde que se reconstruiu, se estruturou, se consolidou e se tornou esse monolito totalitário com o qual nós convivemos. Na ditadura empresarial-militar de 1964, 60 anos atrás, os caras falaram: “Aqui, acabou. Aqui é nosso Rubicão. Aqui a gente fincou o pé e acabou, aqui, vim e venci. Daqui em diante ninguém vai conseguir nos desmontar”.