Zilda morreu nesta segunda-feira (17/6). Desde 2015, quando a filha foi morta, ela lutava pela responsabilização dos agressores da jovem
Zilda Laurentino, 66 anos, morreu nesta segunda-feira (17/6) sem a responsabilização que buscava para os assassinos da filha Laura Vermont, 18, fosse alcançada. Desde 2015, quando Laura foi morta, Zilda lutava. A empresária esmoreceu no ano passado quando, no lugar de homicídio, três dos cinco denunciados pela morte da jovem trans acabaram sentenciados por lesão corporal leve. Com o crime já prescrito na data da audiência, ninguém foi preso e a depressão tomou conta da vida da mãe de Laura.
“Sem ver justiça, ela não aguentou”, diz a filha Rejane Laurentino de Araújo, 41. A história do assassinato de Laura foi revelada pela Ponte e completa nove anos na próxima quinta-feira (20/6). Laura morreu por traumatismo craniano e insuficiência respiratória, segundo o laudo necroscópico do IML (Instituto Médico Legal). A jovem trans foi agredida e perseguida por um grupo na Vila Nova Curuçá, no extremo-leste de São Paulo. Ela ainda assumiu a direção de uma viatura da Polícia Militar que bateu no muro de um prédio, foi perseguida, agredida e baleada no braço por policiais.
Cinco suspeitos foram denunciados pelo Ministério Público do Estado de São Paulo por homicídio triplamente qualificado (por motivo fútil, por recurso que dificultou a defesa da vítima e emprego de meio cruel), que entendeu que os socos, chutes e pauladas mataram a jovem.
O julgamento ocorreu em maio do ano passado, com três réus condenados por lesão corporal leve e outros dois absolvidos. Os três condenados, Van Basten Bizarrias de Jesus, 26 anos; Iago Bizarrias de Deus, 24, e Wilson de Jesus Marcolino, 22, receberam pena de um ano. Contudo, esse crime tem como pena um ano de detenção e prescreve em quatro anos. Assim, quando foram condenados, o crime já estava prescrito.
Os policiais militares Ailton de Jesus e Diego Clemente Mendes foram demitidos da corporação em dezembro de 2016. Eles chegaram a ser presos por quatro dias, mas a Polícia Civil e o Ministério Público entenderam que os dois não participaram do homicídio e o inquérito foi arquivado.
Em 2022, o governo paulista foi condenado a dobrar o valor da indenização aos familiares de Laura. Foi decidida a quantia de R$ 100 mil em danos morais pela conduta dos policiais.
O advogado José Beraldo, que representa a família de Laura e atuou como assistente da acusação, conta que tenta recurso para anular o júri. Na época da audiência, em entrevista à Ponte, Beraldo afirmou que o júri “agiu com parcialidade” porque se manifestou incomodado com as conversas paralelas que a acusação fazia durante os depoimentos. Em maio, um recurso com tal objetivo foi rejeitado pelo presidente da Seção de Direito Criminal, Camargo Aranha Filho.“Dona Zilda foi a óbito por desgosto da própria Justiça”, lamentou Beraldo em áudio enviado à reportagem.
Adoecimento do luto
A depressão de Zilda se agravou após o julgamento. No dia, ela não ficou no plenário para ouvir a sentença. “Foi uma baita palhaçada. Quem perdeu a filha fui eu e olha o que acontece”, disse logo que soube do resultado. “Eu quero justiça”, completou.
Para a filha Rejane, o sorriso da mãe mudou. “Ela até sorria, brincava, mas você via que não era mais a mesma pessoa”, fala. Não era só a luta por responsabilização. Zilda doía também pela saudade da filha Laura. Usava sempre uma blusa que estampava o rosto da jovem. Em casa, montou um santuário onde as cinzas da filha tinham lugar de destaque.
A neta Júlia não chegou a conhecer a tia Laura pessoalmente. A criança que hoje tem oito anos nasceu 20 dias depois da morte. Mesmo assim, diz Rejane, mãe da menina, ela conheceu a luta da avó descrita como guerreira. “Ela era a estrutura da família. Estamos sem horizonte”, afirma a filha.
A liderança do Movimento Independente das Mães de Maio, Débora Maria da Silva, lamentou a morte de Zilda. Débora destaca que é de fundamental importância políticas públicas de acolhimento para familiares de vítimas de violência. Outro ponto é a falta de investigação, a demora em respostas ou até mesmo sentenças que livram algozes da responsabilização. Diante disso, o luto se transforma em luta. “Isso é o adoecimento do luto”, diz.
“É revoltante fechar mais um caixão de uma mãe. Queremos viver, queremos transformar, parir um novo Brasil. Precisamos parir um Brasil com o olhar de que ser pobre não é crime e o pobre tem direito a viver”, afirma Débora Maria.
O jornalista Caê Vasconcelos lembra de Zilda com carinho. Ele foi repórter da Ponte e entrevistou a mãe de Laura por diversas vezes. Em uma delas, na casa da família, foi impactado pelo carinho e amor dedicados pela mãe à filha, em vida e após a morte. “Enquanto pessoa trans, nós sabemos a dificuldade das famílias em acolher e a Laura sempre teve esse apoio”, diz.
Caê conta que, quando transacionou, procurou Zilda. Recebeu uma série de áudios com palavras de carinho e apoio. “Ela realmente era uma mãe pela diversidade”, fala.
A dor da ausência de Laura era um elemento latente em Zilda, conta Arthur Stabile, ex-repórter da Ponte e co-autor do livro das Mães em Luta — Dez anos dos Crimes de Maio. A falta de responsabilização aos envolvidos machucava o coração já ferido, completa Arthur.
“Era uma dor já grande que ficava maior com a Justiça, na visão de Zilda, que não olhava para ela, não olhava para Laura”, diz.
Quando foi até a casa da família entrevistar Zilda para o capítulo que compõe o livro Mães em Luta, Arthur lembra do carinho da recepção. Zilda mostrou fotos, contou histórias da infância e do momento de transição da filha. O apoio e amor que Laura recebeu da família era contado pela mãe com um sorriso no rosto.
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Zilda teve um infarto fulminante na tarde de segunda-feira (17/6). Ela deixa o marido Jackson, as filhas Rejane e Geni e os netos Yasmin, Júlia, Dayse, Ysys, Tabata e Ken.
O velório está marcado para quarta-feira (19/6) no Cemitério da Saudade, em São Miguel Paulista, a partir das 6h. O sepultamento está previsto para às 9h.
*Matéria atualizada às 11h40 do dia 19 de junho de 2024 para incluir o depoimento do Arthur Stabile.