Michel Cruz, 21, foi baleado por um policial em São José dos Campos, interior de SP, e morreu quatro dias depois. A cabeleireira Rosicleide quer agentes afastados do serviço
Rosicleide Cruz Bispo de Jesus, 45 anos, perdeu o filho Michel Cruz, 21, no último Dia das Mães. O jovem passou quatro dias internado após ser baleado por um policial militar no condomínio onde vivia com a família no bairro Parque dos Ipês, em São José dos Campos, no interior de São Paulo. Em luto, a cabeleireira diz temer pela própria segurança. “Eu não durmo, eu fico alerta”, fala.
Leia também: 85% dos policiais apoiam afastamento temporário de policiais que matam, aponta pesquisa
No dia em que foi baleado, 9 de maio de 2024, por volta das 11h, Michel saiu de casa para ir ao mercado, diz a mãe. Rosicleide conta que os policiais o abordaram no trajeto e um deles, o PM Jeremias Pinto da Cunha, teria apontado a arma para o jovem já na primeira interação. Michel correu e passou a ser perseguido pelos policiais.
Rosicleide estava deitada em casa quando recebeu uma ligação. A cabeleireira se recuperava da dengue. “Rose, corre. A polícia está batendo no seu filho”, teria dito uma cliente. Quando chegou na rua, disse ter visto o PM Jeremias com arma apontada para Michel. Ela se posicionou na frente do filho. “Eu pedia para ele atirar em mim, não no meu filho”, diz.
Segundo a cabeleireira, o policial a empurrou e passou a cercar Michel. O jovem repetia: “Eu não fiz nada. Atira, atira”. A mãe se levantou correndo, tentando impedir o disparo. Segundo ela, o policial a olhou e atirou contra o filho. Parte da confusão que terminou com a morte de Michel foi captada em vídeo.
Leia também: PM atira em mulher que diz não ter ouvido ordem de parada e MP afirma que policial agiu certo
Michel foi socorrido por vizinhos e levado ao Pronto Socorro da Vila Industrial. No sábado (11/5), ele já tinha batimentos cardíacos mais baixos. Se melhorasse, conta a mãe, passaria por cirurgia no domingo (12/5), mas não resistiu. A cabeleireira diz que, desde o dia 9, sente que a polícia tem feito mais diligências no condomínio onde ela mora.
Presença da PM assusta
Segundo Rosicleide, vizinhos contam que policiais ficam rondando o bloco onde ela mora. “Se cuida, Rosi”, alertam. Além do condomínio onde vive e onde Michel foi baleado, há outro residencial ao lado. O local, segundo ela, é visado pelos policiais que sempre aparecem ali com o pressuposto de apurar denúncia de tráfico de drogas.
Ela explica que a área é dividida em dois condomínios separados por uma viela que os moradores chamam de “fronteira”. Era por essa área, conta Rose, que os policiais entravam no residencial para abordagens. Depois da morte de Michel, diz, eles passaram a entrar no local pelo portão principal. “E eles entram e fazem o que querem aqui dentro”, completa.
O não afastamento do policial que baleou Michel mesmo após a morte do serviço, indigna a mãe. ”É ridículo isso. O cara está trabalhando praticamente na porta da minha casa”, afirma.
O afastamento de policiais envolvidos em caso de violência em São Paulo não é automático. Em 2020, a Rede de Proteção e Resistência contra o Genocídio lançou uma campanha que buscava a implementação de programa que assegurasse o afastamento automático de qualquer agente público que tenha porte de arma pelo exercício da função (policial militar, policial civil ou guardas municipais) e esteja envolvido em ação que resulte em morte.
Leia também: PM mata adolescente que ia comprar refrigerante, diz família
O objetivo da proposta era retirar o agente público da área onde o fato aconteceu, para proteger familiares e vítimas de crimes, reduzindo as chances de interferência nos elementos de prova e intimidação de testemunhas, além de prevenir novos homicídios.
Pesquisa publicada pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP) em 2021 mostrou que 85% dos policiais apoiam o afastamento temporário de policiais que matam.
Implementado em 1995 pelo então governador de São Paulo Mário Covas, o extinto Proar (Programa de Acompanhamento para Policiais Envolvidos em Ocorrências de Alto Risco) obrigava os policiais envolvidos em homicídios a se afastarem do serviço de rua por dois meses, período em que passavam por acompanhamento psicológico e reciclagem profissional.
Desde 2020, foram implementadas as Comissões de Mitigação e Risco em São Paulo. O objetivo é o aprimoramento profissional dos policiais envolvidos em ocorrências com letalidade. Pela normativa, essas comissões são formadas toda vez que há casos de mortos por policiais e têm por finalidade checar se os procedimentos operacionais foram seguidos e, se necessário, há o encaminhamento do agente para um treinamento. A norma, no entanto, não prevê um afastamento automático.
A cabeleireira fechou o salão que mantinha e passou a atender em casa depois da morte de Michel. Mesmo sentindo-se acuada, ela diz que continuará lutando por justiça. “Vou lutar até o fim porque já estou morta. Quando mataram meu filho, me mataram também”, afirma.
PMs falam em tráfico
O caso foi registrado na Central de Polícia Judiciária de São José dos Campos pelo delegado Rodrigo Azevedo Custodio. O registro no boletim de ocorrência chegou a ser notificado como morte em decorrência de intervenção policial, mas foi alterado para homicídio decorrente de oposição à intervenção policial. Participaram da ação os policiais Jeremias Pinto da Cunha e Fábio Santos Oliveira.
O PM Jeremias contou, em depoimento à Polícia Civil, que ele e o colega Fábio foram até o bairro Parques dos Ipês para averiguar uma denúncia sobre uma motocicleta. Quando chegaram ao condomínio Colônia Paraíso II teriam visto duas pessoas “em nítida atitude correspondente ao tráfico de drogas”. Ao notarem a presença dos PMs, a dupla teria corrido para dentro do condomínio. Um deles, que seria Michel, carregava um saco plástico.
Jeremias passou a perseguir Michel a pé. Eles teriam chegado a entrar em luta corporal, mas o jovem teria conseguido se desprender. Ainda segundo relato do PM, Michel teria incitado a população a ajudá-lo.
O policial contou que a mãe de Michel, Rosicleide, teria tentado impedir a abordagem ao filho. Ela e outros moradores teriam se colocado entre os dois. O tiro teria ocorrido “para evitar ser imobilizado e agredido”, disse o PM. Ele contou ter disparado apenas uma vez e depois ter sido alvo de agressões com garrafas, paus e pedras pelas pessoas ali presentes.
Leia também: Área de batalhão que atuou no Massacre de Paraisópolis lidera mortes pela polícia
O PM fugiu por uma área de mata e conseguiu chamar reforço usando o celular de um transeunte. Com apoio de outros PMs, ele voltou ao local e descobriu que a motocicleta do policial Fábio foi danificada e que o cabo também teria tido itens pessoais furtados. A câmera corporal dele foi recuperada pelo PM Jeremias. A arma do PM, uma pistola Glock calibre .40, foi apreendida.
O PM Fábio confirmou a versão contada pelo colega. Disse ainda que caiu de moto durante a perseguição ao Michel. Ele teve a motocicleta arrombada e objetos pessoais subtraídos, entre eles um taser usado no trabalho.
Delegado pede imagens das COPs
O inquérito foi instaurado no dia 14 de maio pelo delegado Fernando Patto Xavier, do 3º Distrito Policial de São José dos Campos. O delegado pediu as imagens das câmeras corporais dos policiais que atenderam à ocorrência.
Foram feitas perícias na arma do PM, no local onde Michel foi ferido (um cartucho foi encontrado lá), nas motos dos policiais e também feita perícia médica em ambos os agentes. Ele concluiu que a dupla tinha lesões corporais leves.
O laudo do Instituto Médico Legal (IML) sobre a morte de Michel ainda não foi anexado ao processo.
No dia 3 de junho, o promotor Sidney Alves de Mattos, da 13ª Promotoria de Justiça de São José dos Campos, pediu que o processo fosse distribuído para a Vara do Júri por se tratar de um caso de suspeita de homicídio. Ainda não houve posição do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP) sobre o caso.
Assine a Newsletter da Ponte! É de graça
Rosicleide é acompanhada pela Rede de Proteção e Resistência contra o Genocídio, movimento que desenvolve ações de enfrentamento e proteção às pessoas que sofrem violações de direitos pelo Estado brasileiro.
“Este caso demonstra a vulnerabilidade das populações precarizadas, entram dentro das casas e matam um morador jovem. Quais as medidas protetivas que temos que buscar garantir a vida dos nossos jovens? Entendemos que é a resistência deverá ocorrer a partir da incidência no poder público e a organização popular no território”, diz a psicóloga e articuladora da Rede Marisa Feffermann.
“O Michel era muito querido na comunidade”, conta. Ele deixou um filho de um ano e três meses. O jovem era o filho do meio da cabeleireira. O filho mais velho tem 24 anos e é autista, e ela tem ainda um filho de 18 anos. O último emprego de Michel foi em uma empresa de coleta de materiais.
O que dizem as autoridades
A Ponte procurou a Secretaria da Segurança Pública de São Paulo (SSP-SP) solicitando entrevista com os agentes públicos citados no texto. Também foi questionado o motivo da presença de policiais militares nas proximidades do condomínio onde Michel foi morto. Não houve retorno. O espaço está aberto.