Multas aplicadas a condenados pobres e desempregados viram ‘pena perpétua’

Pesquisa do Instituto de Defesa do Direito de Defesa mostra que, mesmo com alegação de pobreza, TJ-SP e MP-SP tendem a não extinguir penas

Ilustração: Antonio Junião / Ponte Jornalismo

A cuidadora de idosos Hojani Gelma de Souza, de 47 anos, sonha virar enfermeira. O principal obstáculo é financeiro: R$ 117 mil. Esse é valor corresponde à pena de multa ela recebeu junto de uma condenação por tráfico de drogas. Ela cumpriu sete anos em uma penitenciária, mas a sensação de Hojani ainda é de aprisionamento. “Se eu pagar esta multa, vou passar necessidade”, diz.

O valor corresponde à correção monetária e juros aplicados a uma multa inicial de R$ 35 mil — que Hojani já não tinha condições de pagar. O dinheiro com que ela vive é contado. São 12 horas de trabalho na informalidade para custear água, luz, aluguel e comida para ela e o filho de 19 anos. A cuidadora complementa a renda mensal de R$ 3.500 fazendo marmitas para pagar sua faculdade de Enfermagem. Em novembro de 2022, ela teve a conta bancária bloqueada por causa da dívida. O saldo era de R$ 3 mil. “É difícil acreditar que alguém possa deixar uma mãe de família com conta a bloqueada próximo do Natal”, lamenta.

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A história de Hojani não é caso isolado. É o que mostra o relatório Pena de Multa-sentenças de exclusão, lançado pelo Instituto de Defesa do Direito de Defesa (IDDD) nesta quarta-feira (11/9). A pesquisa analisou 241 casos de pessoas com penas de multa pendentes. O que mais se viu foram casos de pessoas em situação de vulnerabilidade — mulheres que sustentavam os filhos com menos de um salário mínimo, por exemplo — sendo cobradas na Justiça em montantes com os quais jamais teriam como arcar. Quatro em cada cinco multados tinham o valor devido superior à sua renda mensal. 

“Nós entendemos que o judiciário opta deliberadamente pela perpetuação da crueldade”, diz Vivian Peres, coordenadora de programas do IDDD. Os casos analisados foram alvo de um mutirão que buscou a extinção da cobrança por hipossuficiência financeira dos condenados.

Leia relatório do IDDD na íntegra

Dos 241 casos analisados pelo IDDD, 80% dos condenados multados eram negros; 72% não finalizaram o ensino médio; 75% possuíam dependentes e 19% estavam em situação de rua. Para essas pessoas, em 60,9% dos casos, os pedidos de extinção da multa foram negados, mesmo com a alegação de pobreza. Deste grupo, 61% estavam desempregados e, mesmo assim, 73,9% não conseguiram extinguir as multas.

As tentativas de extinguir penas de multa encontram barreiras no Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP) e no Ministério Público do Estado de São Paulo (MP-SP). Em um dos casos relatados, o condenado estava desempregado e em situação de rua. Ele tinha apenas R$ 7 em uma conta bancária. O pedido de extinção da multa foi negado sob justificativa de que a falta de bens não provava a impossibilidade do pagamento, nem que o sentenciado não pudesse trabalhar. 

“O que a gente viu é que realmente essa dívida em aberto é uma pena perpétua”, diz Vivian. “Ela mantém as pessoas que sobreviveram ao cárcere, que estão muitas vezes ali tentando retomar sua vida, presas. E a pena empurra as pessoas de volta para a criminalidade”, completa.

Pena de multa 

A pena de multa é uma das três formas de sanção criminal previstas no Código Penal Brasileiro. Além dela, existem penas privativas de liberdade e de restrição de direitos. No caso da multa, ela pode ser aplicada de três formas: 1) isolada ou alternativa, 2) substitutiva, 3) cumulativa.

A multa isolada é aplicada como única sanção. Já no caso da alternativa, é dada ao juiz a possibilidade de escolher entre a multa e outra espécie de pena. Isso ocorre, por exemplo, em crimes como de dano, quando a pena prevista é de prisão ou multa.

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No caso da substituição, ela ocorre em casos em que o réu cumpra requisitos como: ter cometido crime em que a sentença não ultrapasse quatro anos e não ser reincidente. Nestes casos, o juiz pode substituir a pena de restrição de liberdade por uma pena de multa. 

A outra hipótese é a cumulativa. Nestes casos, a pessoa apenada cumpre a pena de restrição da liberdade e também é condenada a pagar multa. Isso ocorre nos crimes que mais levam pessoas às prisões no Brasil.

Para chegar ao valor final da multa, o juiz determina primeiro os dias-multa devidos. Em seguida, determina o valor para cada dia.

Enquanto as penas para crimes são previstas no artigo que as define, os dias de multa podem seguir uma regra geral do código penal. O juiz pode escolher entre 10 a 360 dias-multa. Já o valor não pode ser menor do que 1/30 do valor do salário mínimo vigente, nem superior a cinco vezes esse salário. 

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Assim, para pessoa condenada à pena mínima de prisão por tráfico (cinco anos), a multa corresponderá ao pagamento mínimo de 500 dias de multa. Se o juiz aplicar o valor de 1/30 do salário-mínimo (que em 2024 é de R$ 1.412), o valor a ser pago por dia seria de R$ 47,07, totalizando o montante de R$ 23.533,34.

Contudo, existem leis que determinam o montante de dias-multa a serem pagos. É o caso do tráfico de drogas, por exemplo. A lei 11.343/2006 prevê pena privativa de liberdade de 5 a 15 anos de prisão e multa cumulada de 500 a 1.500 dias-multa.

A Lei de Execução Penal determina que o pagamento deverá ser feito até 10 dias após o trânsito em julgado da sentença condenatória. Desde 2019, cabe ao Ministério Público a cobrança, fato que gerou um volume maior de cobranças. 

Agravamento

Para o IDDD, a situação das penas de multa se agravou em 2018 com o julgamento da ADI n. 3.150 pelo Supremo Tribunal Federal (STF). Antes, as multas eram enviadas à procuradoria respectiva para a execução fiscal. Em geral, as multas eram dispensadas pelo montante irrisório que representavam. O julgamento no STF mudou esse cenário. A cobrança da multa passou a ser feita pelo Ministério Público, perante o juiz de execução criminal, impedindo a declaração de extinção da punibilidade. Essa mudança ocorreu por influência de casos como o Mensalão e a Operação Lava Jato, onde o combate se dedicou à criminalidade econômica. 

“Quando uma pessoa tem uma condenação criminal, ela tem diversos direitos suspensos”, afirma Vivian, coordenadora de programas do IDDD. Perde-se o direito de votar, não é possível regularizar documentos como o CPF e a carteira de trabalho.

O mutirão feito pelo IDDD atendeu 241 pessoas. De um total de 150 processos analisados até o fim da coleta de dados, 41% das penas de multa ultrapassavam R$ 3 mil. O cenário era mais grave nos crimes da Lei de Drogas. O valor médio fixado para essas sentenças era de R$ 14.588, subindo para R$ 15 mil quando havia condenação por outro delito. 

Rafael Bastos Tristão, doutorando em Criminologia na USP e Defensor Público Estadual em São Paulo, explica que o que acontece é que, com a condenação, a pessoa já é notificada da multa. Esse processo de cobrança ocorre separadamente da execução da pena — com números processuais diferentes. 

O condenado é notificado para executar o pagamento que, se não for feito, pode levar à penhora de bens e à busca por valores em contas bancárias. Rafael comenta que é comum o bloqueio de valores em bancos, mesmo que o montante não seja suficiente para o pagamento devido. Depois de 2019, com a aprovação do pacote anticrime, mais pessoas passaram a ser cobradas por penas de multa.

Há previsão no Código Penal de transferência do regime aberto se não houver o pagamento da multa imposta. O defensor público, no entanto, diz que nunca viu esse dispositivo ser aplicado. A consequência prática acaba sendo o atraso na extinção da punibilidade.

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Rafael e o IDDD destacam que, de 2019 para cá, iniciativas buscaram reduzir essas cobranças. Uma delas é um entendimento do Superior Tribunal de Justiça (STJ) que prevê a possibilidade de extinção de pena mediante a declaração de pobreza. 

Outro avanço foi o indulto concedido pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva em 2023. O presidente reconheceu o perdão da pena de multa em casos onde haveria comprovação de hipossuficiência ou que o valor a ser pago era pequeno. O problema, destaca Rafael, é que o indulto não abarca condenações por crimes hediondos ou equiparados a hediondos, como o tráfico de drogas — que muitas vezes se refere a pequenas quantidades ou ao varejo da atividade.

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