Mesmo estando com a namorada no horário do crime, Kauã Felipe Cândido dos Santos, de 19 anos, foi acusado de sequestro e roubo e submetido a um reconhecimento irregular. Advogada aponta erros na investigação
A auxiliar de limpeza Tamires Regina Cândido da Rocha, de 35 anos, nunca imaginou que levaria uma hora de viagem, de Aricanduva, na zona leste de São Paulo, até o Centro de Detenção Provisória (CDP), em São Bernardo do Campo, no ABC paulista, para poder ver o filho. “Ele está muito assustado e a gente fica sem entender o que está acontecendo, porque o Kauã nunca foi a uma delegacia, nunca fez nada”, diz, angustiada, após a visita do último sábado (21/9).
Operador de máquina, Kauã Felipe Cândido dos Santos, 19, está preso há dois meses após ter sido acusado de participar de um roubo mediante sequestro, ocorrido no bairro Jardim Eliane, na zona leste da capital. A família afirma que o jovem estava em casa com a namorada em horário aproximado ao momento em que um homem de 43 anos foi abordado por dois assaltantes armados, por volta das 21h30 do dia 14 de julho, e levado a um cativeiro onde permaneceu por dois dias até ser largado dentro do porta-malas do próprio carro, sair e conseguir pedir ajuda à Polícia Militar.
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Na ação, os criminosos roubaram o celular da vítima para fazer transferências bancárias que totalizaram um prejuízo de R$ 150 mil e ficaram com a chave do veículo. Esse tipo de ocorrência se popularizou pelo nome de “golpe do pix” ou “golpe do amor”, pois a vítima em geral é atraída para encontrar uma pessoa que conheceu via aplicativo de relacionamento.
O homem registrou o caso via boletim de ocorrência eletrônico e, no dia seguinte, foi ouvido formalmente no 66º DP (Jardim Aricanduva). Lá, mencionou que pelo menos dez indivíduos estavam presentes no cativeiro. Em nenhum desses documentos consta a descrição física dos assaltantes. Por outro lado, o depoimento indica que a equipe de investigadores apresentou fotografias de “possíveis suspeitos”, oportunidade em que a vítima teria reconhecido duas pessoas como aquelas que estavam no primeiro cativeiro para o qual foi levado.
Kauã foi uma das pessoas reconhecidas, a partir de uma foto retirada de suas redes sociais. “Como a polícia pega uma foto de Instagram?”, questiona a mãe, que não consegue entender como a imagem do filho foi parar na Polícia Civil.
No auto de reconhecimento fotográfico também não há informação de onde foram retiradas as fotografias nem descrição prévia das características dos suspeitos antes de se apresentar pessoas com perfis semelhantes — procedimento previsto tanto no artigo 226 do Código de Processo Penal quanto na recomendação do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) para evitar falhas em reconhecimentos.
Kauã, portanto, está preso após ter sido submetido a um reconhecimento irregular.
No auto de reconhecimento, ao contrário do depoimento, é informado que a vítima reconheceu três e não dois rapazes. Além disso, nas seis fotos de jovens indicadas, a de Kauã é a única de corpo inteiro, em que a qualidade da identificação do rosto é baixa. Os rapazes das fotos também têm características físicas diferentes entre si.
Apesar disso, o reconhecimento fotográfico foi o bastante para o delegado José Claudio de Freitas pedir a prisão temporária e busca e apreensão na casa dele — acatadas pelo Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP) em 26 de julho.
Nesse mesmo dia, o operador de máquina foi colocado ao lado de outros cinco jovens: ele e mais três foram reconhecidos pela vítima como os criminosos. Também desta vez o auto de reconhecimento, agora presencial, não cita a descrição de características físicas dos suspeitos antes da exposição à vítima. Os rapazes também têm perfis diferentes entre si, seja pelo tom de pele, corte de cabelo, altura e vestimenta, o que contraria as normas do procedimento.
Nenhum objeto roubado foi encontrado na casa de Kauã. O operador de máquina também negou participação no sequestro durante o interrogatório na delegacia, disse que estava com a namorada em casa e que trabalhou nos dias subsequentes, das 7h às 17h, numa empresa que presta serviços de zeladoria urbana para a Prefeitura de São Paulo — emprego que havia conseguido em junho.
A defesa do jovem anexou a reprodução de um story do Instagram — que é uma postagem com duração de 24 horas — feita pela namorada com ele na data do crime, publicada às 21h27, para comprovar que ele estava em casa quando o sequestro aconteceu. O advogado Wanderson Dourado, que representa Kauã, também incluiu a folha de ponto dele, comprovando os dias trabalhados.
Ainda assim, ele continua preso.
Kauã declarou ainda que a foto obtida pela Polícia Civil foi tirada durante as comemorações do Natal de 2023, ocasião em que estava com um primo que se parece fisicamente com ele. O jovem disse que o primo já morou nas proximidades do bairro Jardim Eliane e que tem “problemas na justiça” por conta de investigações criminais, mas não sabe se ele teve de fato envolvimento no “golpe do pix”.
O primo de Kauã foi ouvido na delegacia, negou participação de ambos no crime e disse que conhecia um dos outros rapazes que foi reconhecido. A foto dele foi mostrada junto com de as de outros jovens diferentes à vítima, que não o reconheceu como integrante da quadrilha — mas reafirmou o reconhecimento de Kauã.
‘Ato irrepetível’
Para Fernanda Peron, advogada criminalista e apoiadora da Rede de Proteção e Resistência Contra o Genocídio, o reconhecimento ocorreu de forma irregular. “O CNJ descreve que o reconhecimento é um ato irrepetível, pois uma vez que um reconhecedor tem contato com a imagem de alguém, a memória da pessoa já é totalmente misturada, contaminada com o que ela está vendo. Então, essa vítima vai manter o reconhecimento”, avalia.
“Eles [a Polícia Civil] tentam trazer uma aparência de legalidade, mas aconteceram vários fatos ali que reduzem a confiabilidade desse reconhecimento: não dá para dizer que houve descrição prévia se isso não foi registrado com detalhes antes”, afirma Fernanda.
O procedimento adotado pelo delegado vai contra portaria da própria Polícia Civil de São Paulo, publicada em 2023 e inspirada no CNJ, que afirma que o reconhecimento só pode ser feito uma única vez e prevê pela rigidez da descrição a termo, além de não utilizar de forma sugestiva fotos extraídas de redes sociais, entre outros.
Ela pondera, ainda, que o reconhecimento não pode servir de única prova para manter a prisão ou acusar alguém por um crime. E que a Polícia Civil deveria ter se baseado primeiro numa investigação antes de se chegar a possíveis suspeitos.
Isso porque, no relatório final, o delegado descreve que os investigadores conseguiram imagens de câmeras de segurança de uma loja de roupas e sapatos em que compras foram realizadas com o cartão digital do celular da vítima, em 22 de julho, embora a filmagem indique o dia 12. Nas imagens, cinco dos sete jovens que aparecem experimentando calçados e fazendo o pagamento no caixa foram identificados. Kauã não é indicado entre eles.
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Parte dos rapazes que foram filmados tiveram as fotos apresentadas para a vítima para reconhecimento, que os identificou como integrantes do crime. Um deles ainda estava com uma blusa que foi comprada na ocasião. “Esse é o trabalho de investigação que se espera da polícia: investigar documentos e, a partir dos documentos, você ir até o local, procurar câmeras”, ressalta a advogada.
O delegado pediu a perícia do celular de Kauã, questionando se era possível verificar geolocalização e trocas de mensagens, por exemplo, mas os resultados ainda não foram anexados à investigação. Mesmo assim, foi pedida a prisão preventiva (por tempo indeterminado) de todos os jovens reconhecidos pela vítima, o que foi concedido pelo TJ-SP com apoio do Ministério Público do Estado de São Paulo (MP-SP).
No mês passado, o promotor Alexandre Rocha Almeida de Moraes acusou Kauã e outros oito rapazes (entre eles os identificados por câmeras de lojas) por extorsão, cuja pena pode variar de quatro a 10 anos de prisão, além de pagamento de multa.
A juíza Andrea Coppola Brião aceitou a denúncia e manteve as prisões sob a justificativa de se tratar de “crime gravíssimo” e “risco de prejuízo à apuração da verdade real caso os acusados estejam soltos, à
luz da grave ameaça empregada durante a prática delitiva, causadora de trauma”. Para a magistrada, embora esse seja um dos requisitos para conceder liberdade, ter profissão e residência fixa não é o suficiente para soltar os réus.
Agora, as audiências do caso estão agendadas para novembro e dezembro.
‘Lábios grandes’
Paralelamente a esse processo, Kauã está sendo investigado em outro caso semelhante de roubo com sequestro, ocorrido no dia 25 de julho, na mesma região. No dia seguinte ao crime, a vítima foi à delegacia registrar o caso e, antes de qualquer apuração, lhe foram apresentadas fotografias de parte dos jovens que foram reconhecidos no outro processo, entre elas a de Kauã.
As fotos usadas desta vez foram feitas pela Polícia Civil no mesmo dia, já que eles tinham sido presos por conta do pedido de prisão temporária. A vítima só descreveu com alguns detalhes três suspeitos. Já no caso de Kauã, a vítima disse que o reconheceu devido à sua “boca de lábios grandes”.
O advogado Wanderson Dourado, que representa Kauã, defende que ele foi confundido com outra pessoa, já que no mês passado a Polícia Civil prendeu em flagrante três homens que fizeram uma terceira vítima no mesmo cativeiro. “Um dos autores desse crime tem as características iguaizinhas às dele, inclusive o corte e a cor do cabelo, até os traços do rosto. A pessoa presa nesse crime em agosto também usava aparelho também nos dentes, como Kauã”, afirma. “O que pode ter acontecido é que essa pessoa presa em agosto seja a mesma responsável pelo crime de que ele está sendo acusado”.
O defensor pontua que o estilo de cabelo de franja alisada com luzes loiras tem sido comum em jovens da periferia de São Paulo e que houve erro no reconhecimento.
Enquanto isso, a família de Kauã espera que o resultado da perícia no celular dele seja enviado logo à justiça. “Até eu conseguir meu emprego, ele que sustentava a casa”, lamenta Tamires. “O sonho dele sempre foi me ajudar, arrumar nossa casinha, ele também queria ter uma moto, ia tirar carta. Mas agora ele só chora, desacreditado, e meu outro filho de 14 anos está traumatizado”.
O que dizem as autoridades
A Ponte procurou a Secretaria da Segurança Pública (SSP-SP) sobre a investigação da Polícia Civil e os procedimentos de reconhecimento. A Fator F, assessoria terceirizada da pasta, enviou a seguinte nota na qual erra sobre o dia do cumprimento do mandado de prisão de Kauã, que ocorreu em julho e não em agosto.
A Polícia Civil esclarece que a ocorrência de extorsão mediante sequestro, que resultou na prisão preventiva de cinco suspeitos, incluindo o homem mencionado na reportagem, foi investigada por meio de inquérito policial instaurado pelo 66º DP (Jardim Aricanduva). A apuração foi remetida para análise da Justiça, que decretou a prisão dos suspeitos. Os mandados foram cumpridos em 23 de agosto deste ano e os indiciados permanecem à disposição do Poder Judiciário. Durante as investigações, diversas diligências foram realizadas, incluindo o cumprimento de mandados de busca e apreensão e a coleta de depoimentos das vítimas e testemunhas. Além disso, outro inquérito policial foi instaurado no mesmo distrito, referente a um crime de roubo triplamente qualificado em concurso com associação criminosa. A investigação, que segue em andamento, busca apurar a conduta dos suspeitos, com as provas sendo gradualmente anexadas aos autos do processo para análise do judiciário.
A reportagem procurou a Potenza Engenharia e a Prefeitura de São Paulo sobre o vínculo de Kauã, que ainda não responderam.