Artigo | Do 8 de janeiro ao caso Gritzbach: como as polícias flertam com a ilegalidade

    Mesmo distantes em termos de tempo e localidade, a omissão da PM-DF em relação aos atos golpistas e os serviços prestados por PMs de SP ao PCC demonstram a tranquilidade com que policiais ultrapassam o limite da lei

    A morte do delator Vinicius Gritzbach por policiais a serviço de uma facção e a conivência de PMs do Distrito Federal com a movimentação golpista de 8 de janeiro são faces de um mesmo problema | Foto: Reprodução

    “Estas manifestações são claramente antidemocráticas. Defendendo uma intervenção militar, defendendo o rompimento da sociedade política do país. A gente não tem o aparato repressivo direcionado da mesma maneira que encontra, por exemplo, em favelas e periferias. Quando a gente vê, por exemplo, moradores ou até familiares participando de manifestações, quando da morte de um jovem negro numa favela do Rio de Janeiro, a gente não observa o mesmo tratamento que está sendo despendido a esses manifestantes em particular.”

    Retirei a fala acima de uma entrevista de 2022 que o sociólogo e coordenador do Grupo de Estudos dos Novos Ilegalismos da Universidade Federal Fluminense (Geni-UFF) Daniel Hirata deu à Ponte — dias após o fatídico 08 de janeiro, quando a nossa democracia foi duramente testada. Ali, naquele instante, já ficavam claras as diferenças de tratamento entre quem se manifesta na periferia contra a violência de Estado e quem participa de um ataque à democracia com atos de vandalismo. 

    Leia mais: Qual foi a participação das forças de segurança do DF na tentativa de golpe de Bolsonaro?

    A inércia das forças de segurança pública da capital do país foi um grande aceno ao bolsonarismo, quase um grito de “estamos com vocês” de quem deveria defender a letra da lei. Não era surpresa para as autoridades e integrantes da Polícia Militar do Distrito Federal (PM-DF) de que algo grave aconteceria ali, e que haveria violência. A denúncia da Procuradoria-Geral da República (PGR) deixa claro que houve omissão — e foi deliberada. 

    Relação promíscua

    A reportagem do meu colega, o repórter Paulo Batistella, se aprofundou e trouxe detalhes dessa participação da então cúpula de segurança pública do DF no 8 de janeiro ao analisar os elementos da denúncia de Paulo Gonet, procurador-geral da República. Na mesma semana, publicamos uma apuração também do Paulo sobre a aparente existência de um envolvimento das polícias de São Paulo e o PCC

    Nos últimos meses, tivemos uma série de evidências dessa relação promíscua. A suspeita da própria PM de que policiais da Rota, a tropa de elite da corporação, vazavam informações ao PCC. A prisão de 17 policiais militares e cinco policiais civis com ligações com o PCC após a morte do delator Vinicius Gritzbach. A operação contra guardas civis metropolitanos suspeitos de operar uma milícia na cracolândia em São Paulo. A prisão de policiais civis por suspeita de revenderem drogas apreendidas, no que seria o maior esquema de corrupção da história da Polícia Civil paulista.

    Leia mais: O que o caso Gritzbach explica sobre o envolvimento do PCC com as polícias de SP?

    Todos esses exemplos demonstram que há muita coisa errada no quintal de quem deveria estar combatendo o crime organizado. 

    Sempre haverá os que dizem: “São apenas algumas maçãs podres.” Será mesmo? Tantos indícios, me parece, são indicadores de que o problema está na macieira. Especialistas ouvidos pela Ponte indicam que a falta de controle externo da atividade policial é um fato determinante nessa equação. “A força policial ganhou autonomia política, passou a ocupar espaços de civis, e isso sem surgir qualquer novo mecanismo de controle sobre sua atividade”, alerta o advogado e autor de A História da Polícia no Brasil: Estado de exceção permanente?, Almir Felitte. 

    Periferias violentadas

    “O entendimento comum é que, quando não responsabilizados por excessos em sua conduta profissional e insubmissos ao crivo da sociedade, policiais passam a fazer uso do poder coercitivo de Estado do qual dispõem para benefício próprio — ou seja, de modo criminoso”, aponta a reportagem. 

    Mesmo distantes em termos de tempo e localidade, o 8 de janeiro e o caso Gritzbach demonstram a tranquilidade com que policiais ultrapassam o limite da lei que juraram defender e cumprir. Ultrapassam até os limites da própria democracia. E mesmo a opinião pública — e a imprensa tem sua responsabilidade — trata essas características com indiferença, sobretudo enquanto são as periferias que são atingidas. 

    Leia mais: Decisão do STF sobre GCMs e tropa de Paes são passos para militarização, dizem especialistas

    Esses dois episódios com que nos debruçamos nas últimas semanas são reflexos de análises feitas ao longo da década de existência da Ponte. Durante esse tempo, trouxemos dados que demonstraram a infiltração do bolsonarismo nas polícias, denunciavam a falta de controle externo nas polícias e até o risco de ruptura gestada a partir dessas instituições.

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