21ª edição do Acampamento Terra Livre, em Brasília, foi marcada por críticas ao STF por tentar “conciliar” interesses dos indígenas com fazendeiros, ideias como a instalação de uma Comissão Nacional Indígena da Verdade e repressão policial

Os últimos pingos de chuva caíam quando o Cacique Chinil, do povo Tabajara, subiu no palco montando para as plenárias do Acampamento Terra Livre (ATL), a maior assembleia de povos e organizações indígenas do país. A discussão daquela quarta-feira (9/4) tratava da conciliação proposta pelo Supremo Tribunal Federal (STF) sobre o chamado Marco Temporal — tese segundo a qual os povos indígenas só teriam direito às terras que já ocupavam ou disputavam em 5 de outubro de 1988, a data de promulgação da Constituição.
A plenária começou um pouco depois do horário, com o público caçando um lugar seco nas arquibancadas. Os olhares se voltaram com atenção ao palanque quando Chinil pegou o microfone. “Eu amaldiçoo essa conciliação”, esbravejou e foi aclamado.
O Marco Temporal foi o tema central da 21ª do ATL. O acampamento montado no Eixo Cultural Ibero-Americano, em Brasília, no Distrito Federal, de segunda-feira (7/4) a sexta-feira (11/4), foi o epicentro de confabulações sobre como vencer mais essa investida contra os direitos dos povos originários do Brasil. O tema deste ano foi “Apib somos todos nós — Em defesa da Constituição e da vida”, homenagem aos 20 anos da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib).
Sempre que provocados, os presentes no ATL gritavam: “Demarcação já!”. A frase foi a que mais se ouviu nos cinco dias de evento. E por um motivo simples: não ter seus territórios reconhecidos é a gênese de todos os problemas que essas comunidades enfrentam. A ausência da demarcação tem provocado confrontos armados e injustos. Um relatório da Comissão Pastoral da Terra mostrou que foram os indígenas quem mais morreram em conflitos no campo: em 2023, dos 31 assassinatos, 14 das vítimas eram indígenas. A resposta tem que ser rápida.
“Nós pedimos a extinção imediata da câmara de conciliação. Pedimos a extinção imediata. Não podemos mediar uma COP onde lideranças indígenas ainda estão sendo mortas no território”, afirma Dinamam Tuxá, diretor executivo do Apib.

Indígenas querem protagonismo na COP 30
Foi para falar da COP 30 que autoridades como as ministras Sônia Guajajara, do Ministério dos Povos Indígenas, e Marina Silva, do Ministério do Meio Ambiente e Mudanças no Clima, estiveram no ATL, na quinta-feira (10/4). Ambas defendem a importância da participação dos indígenas na conferência do clima que acontece em Belém, no mês de novembro.
Marina falou do esforço do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) para a retomada de políticas ambientais. Também defendeu a desintrusão de terras indígenas — quando são removidas das terras indígenas pessoas que ocuparam sem direito.
A ministra dos Povos Indígenas falou da COP. Disse que haverá credenciais para que indígenas participem da Conferência na zona azul, área reservada para negociações e eventos oficiais. Nenhum dos discursos, no entanto, entrou no tema da conciliação que caminha no STF.
Também não falaram sobre o pedido ecoado na ATL para que as demarcações e titulações de terra sejam uma política climática e que isso seja incluído nas Contribuições Nacionalmente Determinadas (NDCs) que o Brasil vai apresentar na COP.

Repressão policial à marcha na Esplanada
A ida das ministras de Lula ao ATL coincidiu com um episódio de violência policial. Por volta das 17h, os indígenas deixaram o acampamento no Eixo Ibero-cultural e caminharam até a Esplanada dos Ministérios. O grupo carregava faixas pedindo o fim do desmatamento, as demarcações, respeito à Constituição.
A violência aconteceu em frente ao Congresso Nacional. Um grupo da etnia Xakriabá descia em direção ao prédio acompanhado da deputada Célia Xakriabá (PSOL-MG). O grupo cantava e nega que tenha derrubado qualquer barreira ou gradil para acessar o gramado e posteriormente as instalações. Uma série de bombas de gás pimenta foi atirada contra o grupo. Um helicóptero passou a circular voando baixo e jogando luz na direção dos indígenas. A ação envolveu o Departamento de Polícia Legislativa (DPOL) e a Polícia Militar do Distrito Federal (PMDF).
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O gramado foi tomado por corpos desmaiados. Duas ambulâncias, uma delas do Serviço Móvel de Atendimento de Urgência (Samu), foram ao local. Ao menos duas pessoas foram encaminhadas para unidades hospitalares. A Ponte procurou a Secretaria de Saúde do Distrito Federal e a Apib perguntando sobre o número de pessoas atendidas, mas não houve retorno.
A deputada Célia passou mal com os efeitos do gás. Nas redes sociais, a parlamentar divulgou um vídeo em que é impedida pelos policiais legislativos de acessar o prédio. “Não vai passar ninguém”, disse um agente. No gramado, enquanto o atendimento médico ainda acontecia, muitos indígenas se diziam decepcionados. “Vocês viram o que acontece aqui? Hoje o governo se juntou com o Senado para poder prorrogar a morte no nosso território. Para prorrogar a câmara de conciliação. É por isso que está acontecendo isso aqui”, disse um participante.
Em entrevista coletiva nesta sexta-feira (11/4), a coordenação da Apib reafirmou que não houve invasão ao Congresso. Dez pessoas precisaram de atendimento médico após inalarem os gases atirados pela Polícia Legislativa e quatro foram levadas a Unidades Básicas de Saúde (UBS). Todos já foram liberados.
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Um dos coordenadores da instituição, Kleber Karipuna, disse que a organização vai cobrar judicialmente uma resposta por fala feita durante uma reunião com a Secretaria da Segurança Pública do Distrito Federal. A Apib denuncia que, na quarta-feira (9/4), um dos participantes da reunião disse: “Deixa descer logo. Deixa descer e mete o cacete se fizer bagunça. Pronto.” Ao g1, a SSP-DF negou que a fala tenha sido feita por um membro da força de segurança.
A reunião tratava justamente do pedido para liberação dos indígenas na marcha de quinta-feira (10/4). Para coordenação da Apib, a fala configura uma ação planejada para atacar os indígenas.

Marco Temporal
A revolta tem como base o Marco Temporal. A tese surgiu em 2009, em um parecer da Advocacia-Geral da União (AGU), sobre a demarcação da Terra Indígena Raposa-Serra do Sol, em Roraima. O que ela diz é que os indígenas só têm direito à demarcação de terras que já ocupavam ou disputavam em outubro de 1988, data da promulgação da Constituição Federal.
O questionamento sobre a constitucionalidade do Marco Temporal chegou ao STF por meio do povo Xokleng de Santa Catarina. Em 2003, os indígenas criaram a Terra Indígena Ibirama-Laklãnõ, mas parte do território foi alvo de disputa por agricultores. A posse daquela área foi requerida pelo governo daquele estado, sob argumento de que não havia ocupação do espaço em 1988. Os Xokleng argumentaram que não estavam ali porque foram expulsos.
Os ministros começaram a analisar a tese em 2021, mas o julgamento só foi concluído em 2023. Por 9 a 2 — Nunes Marques e André Mendonça foram favoráveis ao marco —, o STF o declarou inconstitucional.
O revés veio por via legislativa. A lei 14.701/23 foi aprovada, determinando que a cessão de posse de terras aos indígenas ocorrida antes de 1988 inviabiliza o reconhecimento da área, independentemente da causa. O trecho chegou a ser alvo de veto do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), mas a oposição do presidente foi derrubada pelos parlamentares.
Mesmo já tendo declarado o Marco Temporal inconstitucional, o STF criou uma comissão especial para tentar “conciliar” os interesses dos indígenas e dos ruralistas. A primeira reunião aconteceu em agosto de 2024, mediada pelo ministro Gilmar Mendes, relator de cinco ações sobre a tese. A Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) se retirou da composição por entender que não havia transparência sobre os objetivos da comissão.
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Outro ponto que levou à saída foi a composição da comissão. Apenas durante a primeira audiência é que os indígenas foram avisados de que as decisões do grupo poderiam ser tomadas por votação. Mas uma desvantagem numérica já estava estabelecida. Dos 24 componentes do colegiado, a Apib tinha apenas seis representantes.
Kleber Karipuna, Coordenador Executivo da APIB, diz que a Articulação discorda da existência dessa conciliação. “Não concordamos com essa câmara de conciliação por trazer propostas e medidas que tentam, de várias maneiras, flexibilizar e abrir os territórios indígenas para outros tipos de exploração”, diz. O gabinete do ministro Gilmar Mendes chegou a elaborar uma proposta de alteração na lei, em que previa a possibilidade de exploração de recursos minerais em terras indígenas.
A ação poderia acontecer mesmo sem a aprovação das comunidades, justificada pelo “relevante interesse da União”. O trecho acabou sendo retirado da discussão.
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“O mundo fala sobre a importância dos povos indígenas, dos territórios indígenas, como política para a demarcação desse território, como política para enfrentar a crise climática e ações como essas da câmara de conciliação, de tentativa de flexibilizar os direitos indígenas, de abertura de mineração, por exemplo, para as terras indígenas, e tentar limitar o direito à demarcação do território indígena vai na contramão do que a pauta climática exige a nível global”, fala Kléber.
Chinil ainda discursava no palco, quando chegou a notícia de que a Câmara dos Deputados e o Senado Federal pediram que a comissão especial tivesse os trabalhos estendidos até “que se alcancem os resultados pretendidos”. Assim, o desfecho fica sem data. A Advocacia-Geral da União (AGU) concordou com a solicitação.
O tempo que passa, a demora na solução, são estratégias, define Carlos Marés. O advogado de povos indígenas desde 1980 diz que a câmara de conciliação é uma tentativa de atrasar a aplicação do direito conquistado. Marés participou da plenária que discutiu o Marco Temporal durante o ATL. “Está posto, está posto na Constituição, está posto na Convenção 179, está posto no mundo. É claro que os indígenas têm direito. Os povos indígenas, cada povo tem direito de existir e de ter um território para existir”, disse.

Pataxós ameaçados
Sanauary Pataxó, de 20 anos, desviou das barracas e dos vendedores de açaí e cupuaçu até ficar a poucos metros da tenda principal. O rosto pintado de amarelo queimado estava recheado de marcas pretas de diferentes formatos. A figura atraiu olhares curiosos e espantou algumas crianças que, ao verem a índia, correram para o colo das mães. “Eles acham que sou uma onça”, riu.
Foram dois dias e meio de viagem em um ônibus que saiu da Terra Indígena de Barra Velha, no município de Porto Seguro, na Bahia. Ao chegar, a jovem encontrou em Brasília mais de 6 mil parentes de diferentes etnias. Muitos grupos ficaram juntos com as barracas reunidas em um só espaço. Outros se distanciaram para buscar abrigo próximo de uma árvore ou estrutura que pudesse proteger da chuva.
Quem não conseguiu a proteção, improvisou com lonas e pedaços de madeira cobrindo as barracas para impedir a entrada dos pingos de chuva. O cuidado valeu a pena. Quando a tempestade começou na quarta-feira (9/4), a maior preocupação era com a lama, essa sim inevitável. O terreno de chão batido e pedaços de grama fez a lama tomar os pés, sapatos e calças de quem andava por ali. Mas também levou muita gente às tendas cobertas, onde aconteciam simultaneamente discussões sobre saúde, educação e território.

Na tenda principal, onde ocorreram as plenárias, Sanauaury acompanhou atentamente. “São esses movimentos que garantem nossos direitos”, disse ao parente Xohã Pataxó, 30, que assentiu com a cabeça. Xohã conta que vem ao ATL para observar. A edição deste ano é a terceira que participa, nas duas anteriores, que aconteceram em Salvador, ele conseguiu se manter calado. Apenas escutando os dilemas e lutas dos outros povos. Neste ano, não conseguiu. Teve também que contar os horrores pelos quais passam os Pataxó, no sul da Bahia.
A violência contra os indígenas daquela região ganhou novos contornos com a Operação Pacificar, no fim de março. Cerca de 150 agentes das Polícias Militar e Civil foram até a Terra Indígena Barra Velha do Monte Pascal, no município de Prado, para cumprir mandados de prisão e busca.
Em nota divulgada no próprio site, a Secretaria da Segurança Pública da Bahia (SSP-BA) disse que a ação investigava grupos armados de “supostos indígenas”, que “a pretexto de estarem atuando em “retomadas” de territórios de seus ancestrais, agem com violência e grave ameaça contra trabalhadores e proprietários rurais”. À Ponte, os indígenas contaram que a abordagem foi violenta, com a intimidação de crianças, retenção de celulares e documentos. Segundo a Repórter Brasil, um agente usou balaclava durante a operação, a fim de esconder a identidade.
O medo ainda impera entre os Pataxós, que temem uma nova investida policial e também ataques de fazendeiros da região. “Nós viemos trazer o nosso recado”, diz Xohã.
Comissão Nacional Indígena da Verdade
A Comissão Nacional da Verdade (CNV), instituída em maio de 2012, divulgou em seu relatório final que pelo menos 8.350 indígenas foram mortos durante a Ditadura Militar no Brasil. E recomendou que o Estado Brasileiro fizesse um pedido público de desculpas pelas mortes e graves violações cometidas contra esses povos durante o período autoritário. Outra recomendação feita pela CNV foi a instalação de uma Comissão Nacional Indígena da Verdade, para aprofundar o estudo sobre os casos.
Até hoje, essa comissão não saiu do papel. O tema foi debatido em uma das plenárias do ATL. “Esse é um assunto que é tabu, a gente não gosta de falar de morte, mas aconteceu. E do relatório da Comissão Nacional da Verdade, que se fala de 8.350 mortes indígenas, se fala apenas de 10 povos. Nós somos 305. Ou seja, esse número pode ser exponencialmente maior. Nós ainda não sabemos a dimensão do que foi a ditadura militar brasileira. A gente ainda precisa pesquisar muito sobre isso, a gente precisa escavar muito sobre isso nos relatórios e nos documentos que a ditadura produziu”, diz Maíra Pankararu, a primeira jurista indígena responsável por relatar um pedido coletivo a indígenas na Comissão de Anistia.
Ao menos duas frentes tentam reverter a inércia. A primeira delas se dá por meio do Fórum Povos Indígenas: Memória, Verdade e Justiça. O grupo é composto por mais de 50 entidades e é coordenado pela Apib, Ministério Público Federal (MPF), Observatório dos Direitos e Políticas Indigenistas (Obind) da Universidade de Brasília (UnB), e pelo Instituto de Políticas Relacionais (IPR).
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O grupo criado em 2024 levanta casos de graves violações e discute como poderia ser uma Comissão Indígena da Verdade. Nesta semana, em uma das atividades do Fórum, o relator especial da Organização das Nações Unidas (ONU) para a Promoção da Verdade, Justiça, Reparação e Garantias de Não Repetição, Bernard Duhaime, reconheceu a necessidade de apuração sobre a necessidade de apuração. Bernard também declarou que a violência policial contra os indígenas e o Marco Temporal são como repetir os crimes da ditadura a esses povos.
Uma segunda frente, que acontece de forma paralela, é um projeto que recebeu financiamento da Embaixada da Noruega. Lideranças das sete regionais da Apib — que contempla quase todas as regiões do país — vão indicar um caso cada para investigação. O objetivo é que o relatório final seja apresentado à Comissão, se ela for criada. Caso contrário, eles serão base para ação na justiça cobrando a responsabilização do Estado.
“Ela [comissão] depende do Estado Brasileiro”, diz Elaine Moreira, coordenadora do Observatório dos Direitos e Políticas Indigenistas da UNB. “O Fórum tem esse escopo, de pressionar o Estado brasileiro para que ele implemente essa comissão para que ela possa dar resposta aos povos indígenas e à sociedade brasileira sobre esse passado que é muito pouco conhecido”, completa.
A repórter Catarina Duarte viajou a Brasília a convite do Instituto de Desenvolvimento Institucional e Ação Social (IDEAS), organização da sociedade civil que promove assessoria popular a ocupantes e trabalhadores de territórios negros e suas organizações, sejam grupos, coletivos, associações ou movimentos sociais.