Lançamento de manifesto ao presidente Lula ocorreu este sábado (16/5), na Brasilândia, zona norte de São Paulo. Movimentos pedem que casos do Cabula, Jacarezinho e mortes na Operação Escudo passem para a esfera federal

São dez anos sem a responsabilização dos policiais militares envolvidos nas mortes de 12 jovens negros em Salvador, no que ficou conhecido como Chacina do Cabula. Os laudos apontaram que as vítimas foram mortas ajoelhadas e com sinais de tortura. Os policiais — um subtenente, um sargento e sete soldados — não foram presos. A impunidade é denunciada por movimentos sociais que pedem a federalização do caso.
Um ato ocorrido neste sábado (16/5) na Travessa do Luigi Sabbattini, na Brasilândia, zona norte de São Paulo, ecoou o pedido por justiça. Além da Chacina do Cabula, os movimentos sociais querem a federalização da Chacina do Jacarezinho e dos inquéritos da Operação Escudo.
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“É muito importante a federalização porque é um meio de acabar com as chacinas e ter mais investigação em cima. São poucas as investigações em conjunto sobre violência policial. É uma esperança muito grande para nós, dos movimentos sociais, das famílias”, diz Márcia Gazza, coordenadora do Movimento Mães da Leste. “O fato desses casos terem pouco avançado nos seus estados colabora para que o comportamento de quem pratica esses atos criminosos se perpetue. Porque é a certeza da injustiça, da impunidade”, diz Claudio Silva, um dos organizadores do ato e ex-Ouvidor das Polícias de São Paulo.
O ato também contou com falas de familiares de vítimas da violência policial. “Enquanto eu estiver aqui vou lutar contra a opressão do Estado”, disse, em lágrimas, Beatriz da Silva Rosa, de 30 anos, mãe de Ryan da Silva Andrade Santos, 4, e companheira de Leonel Andrade Santos, 36, ambos mortos pela polícia de Tarcísio de Freitas (Republicanos) nas operações Escudo e Verão.
A médica Silvia Mônica Cardenas Prado, mãe do estudante Marco Aurélio Cardenas Acosta, 22, morto pela PM paulista na Vila Mariana em novembro de 2024, pediu a saída de governador e do secretário da segurança pública Guilherme Derrite. “Não é justo que nós geramos, parimos e nos despedimos por culpa de um infeliz que está despreparado para conduzir a segurança deste país”, afirma.
Falta de resposta
Jeffei Estevão de Oliveira, militante do Diálogo e Ação Petista e um dos organizadores do ato, diz que as três chacinas marcaram a história nacional recente e a falta de resposta marcou uma guinada na violência policial. “O que faz as polícias agirem assim é a certeza da impunidade. É preciso uma resposta forte ao crescimento da violência policial no país, por isso, nos dirigimos ao governo Lula, exigindo essa resposta, que para nós, seria um primeiro passo, federalizando, de fato, as investigações dessas três chacinas e punindo, realmente, aqueles que cometem crimes contra o povo”, defende.
Um manifesto direcionado ao presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) e aos ministros Ricardo Lewandowski, Macaé Evaristo e Anielle Franco foi lançado pelos movimentos sociais que articulam o ato. É possível assinar o texto clicando aqui.
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A federalização transfere toda a competência de um processo para a Justiça Federal e os órgãos estaduais passam a não ter mais responsabilidade ou atuação no caso. O mecanismo passou a existir em 2004, com a reforma no judiciário, e está disposto no artigo 109, parágrafo 5º, da Constituição Federal. São considerados critérios para a federalização a grave violação de direitos humanos e a possibilidade do Estado brasileiro ser responsabilizado internacionalmente por não assegurar o cumprimento de tratados internacionais de direitos humanos dos quais é signatário.
A demonstração de total incapacidade, desinteresse, descaso e/ou ausência de vontade política de resolução por parte das autoridades estaduais também é base para a federalização. Somente a Procuradoria-Geral da República é quem pode fazer o pedido para que o caso seja federalizado. Essa solicitação é feita ao Superior Tribunal de Justiça (STJ), que pode acatá-la ou não.

‘Campanha precisa alcançar periferia’
A articuladora da Rede de Proteção e Resistência Contra o Genocídio, Marisa Feffermann, diz que é importante que a campanha alcance a periferia. “Nós trabalhamos com isso há anos e é super importante que grupos que nunca trabalharam começarem a trabalhar nesta perspectiva. Não dá mais para esconder debaixo dos tapetes os corpos negros mortos. Nós exigimos que isso não fique só em uma campanha. Nós estamos aqui acompanhando as mães durante muito anos e a nossa preocupação é que essa campanha se transforme nos territórios, que não fiquem só centralizadas”, defende.
“Nossa preocupação enquanto Rede de Proteção é que essa campanha sai do nicho e possa viralizar para todos os territórios. A chacina é o extremo da violência, quando o Estado se vê no direito de matar. Quando nós vamos contra a chacina, nós vamos contra todas as outras violências’, defende.
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Em 2022, o STJ decidiu por unanimidade federalizar as investigações sobre um dos episódios dos Crimes de Maio de 2006. O caso é o da morte de cinco jovens atacados por um grupo de homens encapuzados no Parque do Bristol, em São Paulo. Três deles morreram na hora e um dos sobreviventes foi morto um mês depois. O Ministério Público de São Paulo (MP-SP) arquivou a investigação alegando ausência de provas.
Com a decisão, a Polícia Federal passou a investigar as mortes e quem vai julgar o caso será a Justiça Federal. É esse o caminho que os movimentos sociais desejam para as chacinas do Cabula, Jacarezinho e os crimes cometidos na Operação Escudo.
Os 12 mortos na Bahia
As 12 mortes no Cabula, bairro da região central de Salvador, ocorreram em 16 de fevereiro de 2020. O então governador da Bahia, Rui Costa (PT), chegou a dizer que as mortes foram como a jogada “de um artilheiro em frente ao gol”.
As vítimas são Evson Pereira dos Santos, 27 anos, Ricardo Vilas Boas Silvia, 27, Jeferson Pereira dos Santos, 22, João Luis Pereira Rodrigues, 21, Adriano de Souza Guimarães, 21, Vitor Amorim de Araújo, 19, Agenor Vitalino dos Santos Neto, 19, Bruno Pires do Nascimento, 19, Tiago Gomes das Virgens, 18, Natanael de Jesus Costa, 17, Rodrigo Martins de Oliveira, 17, Caique Bastos dos Santos, 16.
Além deles, os PMs balearam aleatoriamente outros seis moradores da comunidade. Na denúncia, o Ministério Público do Estado da Bahia (MP-BA) destacou que “militares em serviço, todos portando armas de fogo de grosso calibre, no curso de suposta diligência policial, encurralaram e executaram sumariamente os jovens”.
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Em julho de 2015, os policiais foram absolvidos pela juíza Marivalda Almeida Moutinho sob o argumento da “excludente de ilicitude”. O MP-BA conseguiu reverter a sentença por meio de um recurso que abriu caminho para reiniciar o processo. Contudo, até hoje sequer chegou a ser decidido por um júri popular ou não.
Em 2018, o STJ negou um pedido para federalização do caso alegando que não foram cumpridos os requisitos para o pedido. O pedido havia sido feito dois anos antes, quando o Ministério Público Federal (MPF) entendeu que os policiais agiram em “verdadeira execução, sem chance de defesa das vítimas, o que configura grave violação de direitos humanos, a exigir pronta atuação dos poderes constituídos do Estado brasileiro”.
Inação do Ministério Público
Os casos do Jacarezinho e da Operação Escudo têm uma característica em comum. Em ambos, o Ministério Público pediu o arquivamento da maior parte dos inquéritos. “Nós vivemos uma situação de parcimônia, de pouco envolvimento dos ministérios públicos nos estados com o seu papel fundamental de controle externo da atividade policial. Essa parcimônia, essa inação, muitas vezes pedidos de arquivamento e uma série de outros comportamentos que colaboram para as injustiças, dialogam na perspectiva de que esses policiais acham que podem, a qualquer momento, a qualquer tempo, tirar a vida das pessoas na certeza da impunidade e da injustiça”, diz Claudio Silva.
A Chacina do Jacarezinho foi uma operação policial na zona norte do Rio de Janeiro. Ao todo, 28 pessoas morreram. Uma delas é o policial civil André Farias, que foi baleado com um tiro na cabeça. O processo que julga os envolvidos na morte do agente é um dos únicos que avançou. Das 13 investigações sobre as mortes no Jacarezinho, o Ministério Público do Rio de Janeiro (MP-RJ) arquivou 10.
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Reportagem exclusiva da Ponte analisou seis dos inquéritos arquivados e dois dos três que viraram denúncia e engataram em um processo judicial. A reportagem constatou que dois deles carregam evidências fortes de execução, enquanto os outros três parecem ter sido montados de forma a se esquivar de responder se havia ou não sinais de tais crimes.
Os inquéritos têm evidências de contradições entre os testemunhos dos policiais envolvidos e os laudos cadavéricos. Muitos locais onde as pessoas foram mortas não passaram por perícia e, nos que tiveram, o trabalho não foi minucioso, já que os peritos foram apressados por policiais civis para conclusão rápida da atividade. Em 2024, o Ministério Público Federal no Rio de Janeiro (MPF-RJ) defendeu a federalização das investigações sobre a Chacina. Em nota publicada no site do MPF, o procurador da república Eduardo Benones defendeu que todos os requisitos necessários para esse mecanismo foram cumpridos.
“Hoje, o que se exige é uma grave violação aos direitos humanos e, juntamente, a possibilidade de que isso ocasione a responsabilização do Estado brasileiro internacionalmente. E nós entendemos que esses dois requisitos estão preenchidos nesses casos, inclusive na Chacina do Jacarezinho”, declarou.
Morte de encanador pela PM foi arquivada
O Ministério Público de São Paulo (MP-SP) também arquivou a maior parte dos inquéritos que investigavam as mortes na Operação Escudo. Foram 23 arquivamentos de 27 procedimentos abertos pelo próprio MP para investigar as 28 mortes.
Segundo a assessoria de imprensa do órgão, porque “constatou-se que a conduta dos agentes ocorreu dentro dos parâmetros legais ou que não havia elementos indiciários suficientes para o início de ação penal, levando assim à promoção de arquivamento”.
A Operação Escudo matou 28 pessoas ao longo de 40 dias nos bairros pobres da Baixada Santista, sobretudo no Guarujá, onde Patrick Bastos Reis, de 30 anos, da Rondas Ostensivas Tobias de Aguiar (Rota), força especial da PM paulista, foi morto. Um dos casos arquivados é o do encanador Willians dos Santos Santana, 36, morto com oito tiros dentro de casa, no Guarujá, em 18 de agosto de 2023. Os policiais que o mataram não usavam câmeras nas fardas.
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Familiares relataram à Ponte na época que Willians voltava de um “bico” quando foi abordado pelos PMs e arrastado para dentro da residência, onde foi baleado. Um pouco antes, ele teria sido ameaçado de morte por policiais “caso ficasse na rua”, por ter passagem criminal. Já os policiais disseram que Willians estava armado e teria atirado contra eles.
Os promotores entenderam que a versão dos parentes era “isolada”, já que a PM afirma ter apreendido um revólver com indicação de disparo recente e uma bolsa com radiocomunicador, drogas e papel de anotações. “São histórias muito mal contadas”, diz Fernanda Balera.