Acompanhe uma visita guiada por antigos militares que abandonaram o Exército israelense e agora denunciam os abusos cometidos contra os palestinos
“Eu estava ‘envenenado’. Mas envenenado em um bom sentido. Eu queria entrar no Exército para proteger minha família e meus amigos”, conta o israelense Ido Even-Paz, que iniciou seu serviço militar durante a Segunda Intifada. Ido não está mais no Exército e se juntou à organização Breaking the Silence (Quebrando o silêncio), que torna públicos testemunhos de soldados sobre as violações cometidas nos “territórios” — a Cisjordânia ocupada. A organização, que enfrenta grande resistência do governo de Israel, promove visitas guiadas mensais a Hebron, a maior cidade palestina e o mais triste exemplo dos efeitos da ocupação israelense.
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De importância religiosa para judeus e muçulmanos pela localização do Túmulo dos Patriarcas e da mesquita de Ibrahim, houve um acordo específico para dividir Hebron (ou al-Khalil, em árabe). Em janeiro de 1997, o “protocolo sobre a transferência em Hebron” definiu que a área H-1 seria de responsabilidade administrativa dos palestinos, conforme outras regiões da Cisjordânia. Cerca de 20% dos territórios da cidade foram denominados como H-2, onde o protocolo afirma que “Israel reterá todos os poderes e responsabilidade pela segurança interna e ordem pública” — área que abrange os assentamentos e a cidade velha de Hebron. O remanejamento das tropas israelenses deveria ter sido feito até junho de 1998, mas até hoje não ocorreu.
Em H-2 vivem cerca de 40 mil palestinos, mais os 850 colonos que se dividem nos cinco assentamentos no centro da cidade: Tel Rumeida, Beit Hadassah, Beit Romano, Avraham Avinu e Al-Rajabi. Assim, Hebron é a única cidade palestina que tem colonos morando dentro dela e a presença permanente de 1.500 a 2.000 soldados para protegê-los (o número varia de acordo com a fonte). Isso causa tensão e restrição ao movimento dos palestinos, além de levar a diversos casos de extrema violência. Recentemente, o soldado Elor Azaria foi condenado a 18 meses de prisão pelo homicídio culposo do palestino Abdel Fattah al-Sharif.
O crime ocorreu em Hebron, no entorno do assentamento Tel Rumeida, em março de 2016. Al-Sharif e outro jovem, Ramzi al-Qasrawi, haviam esfaqueado um soldado e foram baleados — al-Qasrawi acabou morto e al-Sharif permaneceu deitado no chão, ferido. Um voluntário da organização israelense de direitos humanos B’tselem filmou o momento em que Azaria se aproxima do palestino e atira em sua cabeça. A cena é chocante, pois o suspeito estava imobilizado e não oferecia mais ameaça às vidas dos soldados:
As fotos de Azaria abraçado à mãe e sorrindo ao ouvir sua sentença ilustram as reportagens sobre o caso. A porta-voz do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos, Ravina Shamdasani, chamou a punição de “excessivamente leniente”, além de “contrastar com as sentenças proferidas por outras cortes israelenses por ofensas menos sérias, notavelmente as sentenças de mais de três anos de prisão dadas a crianças palestinas por atirarem pedras em carros”.
Visita guiada
A primeira parada do grupo guiado pelo ex-soldado Ido, durante uma visita guiada acompanhada pela Ponte no ano passado, é no assentamento de Kiryat Arba, no entorno de Hebron. No Brasil, Kiryat Arba seria um grande condomínio fechado com conjuntos de casas muito distantes entre si. “Aqui você precisa ter um carro para ver o seu vizinho no outro bloco. Isso é proposital. A lógica do assentamento é ocupar um grande espaço de terra”, afirma Ido. A visita a Kiryat Arba não tem como objetivo demonstrar apenas a lógica de dominação de território: lá fica o túmulo de Baruch Goldstein, israelense que matou 29 pessoas e feriu 130 na mesquita de Ibrahim em 25 de fevereiro de 1994. Goldstein teve tempo de carregar seu fuzil cinco vezes e atirar novamente antes de ser morto por sobreviventes no local.
O ato terrorista teve grande impacto na consolidação dos Acordos de Oslo, além de causar a instalação de postos de controle nos acessos à mesquita, que fica fechada para muçulmanos em feriados judaicos ou quando há “questões de segurança”. O túmulo de Goldstein, que era médico e atendia palestinos e judeus, recebe peregrinações anuais e tem inscrita a frase “suas mãos estão limpas e seu coração é puro”. Havia algumas pedras em cima dele, sinalizando o recebimento de visitas, conforme a tradição judaica. Aproveitando a dispersão do grupo após as explicações de Ido, um norte-americano — que fazia questão de se identificar como judeu — cuspiu na sepultura dizendo “não cultuo assassinos em massa”. Logo depois, um colono com arma na cintura caminhou em direção ao túmulo e por pouco um incidente foi evitado.
No caminho da área H-2, Ido lembra da Segunda Intifada e do toque de recolher imposto a Hebron continuamente por seis meses. Nessa época, as pessoas apenas podiam sair de suas casas algumas vezes por semana para comprar comida e obter outros itens essenciais, como remédios. Ele fala também dos israelenses mortos, como o assassinato de uma bebê de 10 meses por um atirador palestino. E explica a expansão dos assentamentos, como Givat Ha’avot, que fica em frente a Kiryat Arba. Nos terrenos entre eles moram famílias palestinas pressionadas a sair de suas casas nos últimos anos para que haja continuidade territorial dos dois assentamentos.
Ido mostra a escada que dá acesso a Givat Ha’avot e diz que apenas judeus podem usá-la — há um posto de observação do Exército logo acima dela para prevenir qualquer comportamento indesejado de palestinos. A relação entre colonos e soldados é muito delicada, não apenas em Hebron como em outras áreas da Cisjordânia. Muitos relatos fornecidos à Breaking the Silence mostram a impunidade dos colonos ao agredir palestinos e a pressão feita a soldados para que não atuem nessas situações. “Se você não dá aos colonos o que eles querem, você vai ter problema. Se você quer que seu local seja pacífico e quieto, você dá aos colonos o que eles querem”, afirma Ido.
A B’tselem reporta a violência perpetrada por colonos de Hebron e menciona ataques com pedaços de madeira, pedras, lixo e garrafas vazias. “Colonos destruíram lojas, cometeram roubos e cortaram árvores frutíferas. Colonos também já estiveram envolvidos em disparos, tentativas de atropelamento, contaminação de poço de água, invasão de casas, jogaram líquido quente no rosto de um palestino, e assassinaram uma menina palestina”.
A presença massiva e permanente de soldados causa violações frequentes aos direitos dos palestinos que moram em Hebron. A organização de direitos humanos Al-Haq afirma que a cidade é um microcosmo da ocupação, onde Israel criou uma situação “que permite a um pequeno grupo de colonos israelenses controlar a cidade, reprimindo a vida palestina que existia lá há muito”. Segundo o Escritório das Nações Unidas de Coordenação de Assuntos Humanitários (OCHA), existem 95 barreiras na área H-2, entre postos de controle e outros obstáculos físicos. Os militares controlam o movimento dos palestinos que moram lá e conduzem revistas e buscas a casas.
Ao falar da interação com palestinos, Ido explica que os soldados aprendem um vocabulário básico chamado de “árabe de checkpoint”: frases como “abra sua bolsa”, “levante a camisa” e “pare ou eu vou atirar em você”. “O interesse em aprender hebraico é deles [dos palestinos], porque são eles quem precisa fornecer informação. O soldado não se importa. Infelizmente, essa é a mentalidade”. Para ele, a atuação do Exército tem como objetivo promover uma guerra psicológica. Ido cita as operações de “mapeamento” como exemplo.
No “mapeamento”, soldados entram em uma casa de madrugada e geralmente levam todos os membros da família para um cômodo separado, enquanto interrogam o dono da casa ou alguém que dizem ser suspeito. Por vezes,levam pessoas presas ou apenas deixam a casa após algumas horas. O objetivo é deixar os palestinos intimidados. “Assim, você rompe o entendimento na cabeça deles de que estão em controle das suas vidas. Eu sou apenas um cara de 18 anos com um fuzil, mas você se sente com poder. Você está na casa de um pai de família de 50 anos, mas ele faz o que você quer”.
Rua al-Shuhada
Após passar por vários pontos de Hebron, o grupo chega à famosa rua al-Shuhada – “Rua dos Mártires” em árabe, ou “Rua Rei David” em hebraico. Antigamente, a al-Shuhada era a principal via do centro comercial de Hebron. No entanto, desde o ano 2000 parte dela está completamente fechada ao trânsito de palestinos, a pé ou de carro, enquanto colonos têm livre passagem. Em 2007, a Suprema Corte israelense decidiu que palestinos devem ter direito a utilizar a via, mas as Forças Armadas se recusaram a implementar a ordem até agora. As poucas casas onde palestinos ainda moram possuem grades em volta das sacadas, para proteção contra pedras jogadas por colonos. Enquanto o grupo guiado por Ido caminhava pela al-Shuhada, um soldado parou uma das participantes para saber do que se tratava a visita, perguntando: “não é nada contra Israel, é? ”.
Para garantir uma proteção mínima a palestinos que moram na área H-2, organizações atuam como observadores, oferecendo presença protetiva com o intuito de prevenir atos violentos. Além da divisão territorial, o protocolo de 1997 também decidiu que haveria um grupo de estrangeiros que atua sob o mandato da “Presença Internacional Temporária em Hebron” (TIPH, na sigla em inglês). A presença de uma força do tipo já havia sido requisitada após o massacre na mesquita de Ibrahim em 1994. Os membros da TIPH ainda atuam na cidade diariamente.
Grupos como a TIPH, o Programa de Acompanhamento Ecumênico na Palestina e Israel (PAEPI) e o Time de Pacificadores Cristãos (CPT, na sigla em inglês) permanecem próximos à população em diversas situações cotidianas, como a ida de crianças à escola. Na rua al-Shuhada, por exemplo, está a entrada para uma escola palestina chamada Córdoba, à qual os estudantes chegam após atravessarem um checkpoint onde podem ter suas mochilas revistadas. Desde 2015 há uma catraca no posto de controle, e alguns professores da escola preferem passar por ela em dupla para não ficarem sozinhos com os soldados. Com a configuração atual do checkpoint, do lado de fora não é possível ver o que acontece na sala lá dentro.
Ao andar pelas ruas da área H2 de Hebron, é certo se deparar com soldados nos telhados ou em grupos fazendo patrulhas. A Cidade Velha, muito parecida fisicamente com as de Jerusalém ou Nablus, é um labirinto deserto de lojas fechadas. Os vendedores que ainda persistem assediam os pouquíssimos turistas que andam por lá, e a tristeza de se deparar com a destruição do centro comercial, outrora rico e vivo, é inevitável.
Em meio ao colorido dos vestidos tradicionais e echarpes trazidas da Jordânia, o palestino Jamal conta que seu pai foi dono da loja por 50 anos e agora ele continua o negócio. O comerciante tenta descrever como a cidade velha costumava ser. “Aqui era muito diferente. Todas essas lojas aqui ficavam abertas, tinha todo tipo de coisa. Agora é assim. E os negócios estão muito, muito ruins, porque poucos vêm aqui comprar. As pessoas têm medo. É muito triste”.
Em uma manhã de outubro, acompanhei a ida de crianças à escola Córdoba. Algumas, muito pequenas, subiam os altos degraus que levam à escola com dificuldade. Na base da escada, cinco soldados e dois membros da TIPH acompanhavam a movimentação. Um colono surgiu no topo da escada acompanhado de três meninos. Ao avistarem os quatro israelenses, duas crianças palestinas que estavam lá embaixo hesitaram e desistiram de subir. Deram as costas para os colonos e aguardaram que eles passassem. Depois, seguiram seu caminho.
(*) A repórter Dani Ferreira viajou à Palestina como participante do Paepi (Programa de Acompanhamento Ecumênico na Palestina e em Israel)