Estudo analisou gênero e raça em 15 anos do Grande Prêmio de Cinema Brasileiro; mulheres pretas não foram nem indicadas a 5 das 7 categorias às quais concorreram
Homens brancos ganharam mais de 75% dos prêmios entregues em 15 anos do Grande Prêmio de Cinema Brasileiro, um dos maiores concursos do setor no Brasil, promovido pela Academia Brasileira de Cinema. Enquanto isso, mulheres pretas não foram nem sequer indicadas a 5 das 7 categorias às quais concorreram. As conclusões são do Boletim Gemaa, do Grupo de Estudo Multidisciplinar de Ação Afirmativa, do Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Universidade Estadual do Rio de Janeiro, divulgado em 21 de dezembro.
O Boletim Gemaa analisou a diversidade de raça e gênero a partir de dados da Ancine (Agência Nacional do Cinema) e da própria Academia Brasileira de Cinema. Foram consideradas nove categorias da premiação entre os anos de 2002 e 2017: Melhor Longa-metragem de Ficção, Melhor Longa-metragem de Documentário, Melhor Direção, Melhor Roteiro Original, Melhor Roteiro Adaptado, Melhor Atriz, Melhor Ator, Melhor Atriz Coadjuvante e Melhor Ator Coadjuvante.
Oferecer uma percepção clara da desigualdade de raça e gênero no cinema brasileiro é a principal contribuição do estudo, segundo a assistente de pesquisa do Gemaa e graduada em Ciência Sociais pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, Cleissa Regina. “Muitas vezes sabemos que um problema existe, mas é só vendo em números que percebemos o quanto ele é profundo”, disse a pesquisadora.
Para Cleissa, a desigualdade racial apontada pelo estudo mostra a necessidade de ações afirmativas em editais na área do audiovisual. “O cinema é uma indústria com muitas frentes de atuação e as ações afirmativas precisam existir para diminuir a desigualdade racial em todas essas frentes, pois estão interligadas e se complementam”.
A diretora e roteirista negra Carol Rodrigues, responsável pelo site Mulheres Negras no Audiovisual Brasileiro, que mapeia as profissionais negras no segmento no Brasil, acredita que o primeiro desafio para elas é existir para o público e para o mercado.
“Há mulheres negras produzindo com quase nenhum recurso, que estão sendo reconhecidas e premiadas no Brasil e no mundo, como a Renata Martins que faz um trabalho incrível com o projeto Empoderadas. Mas lutamos para que esse tipo de iniciativa consiga ser viabilizada e as profissionais envolvidas possam ser pagas pelo seu trabalho”, disse a cineasta.
Votação é pouco representativa, diz diretor
Cerca de 200 profissionais do cinema nacional e que são sócios da Academia Brasileira de Cinema são os responsáveis por escolher os vencedores do Grande Prêmio de Cinema Brasileiro. Joel Zito Araújo, cineasta e pesquisador negro, diretor do longa premiado no Festival de Gramado As Filhas do Vento (2005), relativiza a importância do Grande Prêmio.
“Só tem 200 profissionais votando. Nós, o pessoal de longa-metragem, somos cerca de 4 mil. Essas 200 pessoas que estão votando não representam nem 10% dos profissionais brasileiros dessa categoria”, afirmou. O diretor, que já foi sócio da Academia Brasileira de Cinema, acredita que o prêmio é elitista e não retrata fielmente o cenário do negro no cinema brasileiro. “Você paga uma fortuna por ano para votar e depois percebe que quem está votando é uma minoria. Não é representativo no final.”
A categoria de Melhor Ator Coadjuvante premiou, ao longo dos 15 anos pesquisados, 11,8% de homens pretos, enquanto homens brancos ganharam 76,5% das premiações. Em Melhor Direção, os homens pretos representam apenas 1,3% dos indicados e não ganharam prêmios; os homens brancos são 87,2% dos finalistas e 81,2% dos vencedores.
Embora mais representadas que as pretas e pardas, as mulheres brancas também se encontram em proporção inferior no prêmio em relação aos homens brancos. Em Melhor Roteiro Adaptado, elas ganharam 9,4% dos prêmios, enquanto os homens brancos ganharam 90,6%. As mulheres pardas só foram indicadas para o Melhor Longa-metragem de Documentário (1%). Nas premiações de Melhor Atriz, 9,2% delas foram indicadas e 13,3% receberam a premiação.
“Elas, enquanto mulheres e negras, são vítimas do machismo e também racismo estrutural”, disse o ator e cineasta negro Anderson Jesus, diretor da série Desaparecidos, no ar no canal a cabo A&E.
Esforços de promoção de igualdade
O diretor Anderson Jesus também considera o setor elitista e defende ações afirmativas em editais do audiovisual como ferramenta de reparação histórica. Apesar disso, ele defende que resolver a questão demanda ir à raiz do problema, que está na educação fundamental, e promover a representatividade.
Para Jesus, um grande desafio de ser um diretor negro nesse cenário é que o racismo estrutural impacta diretamente na entrada, permanência e ascensão de negros. “Mesmo depois de estar no mercado, há a dificuldade de acesso a equipamentos, que também são caros, apesar das funcionalidades e boa qualidade das novas câmeras digitais e até celulares”, destacou.
Sobre a exclusão das mulheres negras do setor, a diretora Carol Rodrigues acrescenta que a ideia de “trabalhar por amor” privilegia uma determinada classe social, que não depende do próprio dinheiro para viver. “É essencial que as produtoras se abram aos profissionais negros e flexibilizem alguns critérios que barram o acesso” afirmou. “É uma posição muito confortável e conveniente que as produtoras queiram que as profissionais negras cheguem prontas e formadas para atender às suas demandas, ignorando os obstáculos do machismo e do racismo em nossa sociedade.”
A diretora ressalta que há profissionais negras no mercado que, muitas vezes, são contratadas em produtoras para exercer funções administrativas e sem potencial criativo. Para ela, é preciso colocar efetivamente em prática o discurso progressista e de diversidade.
“Olhar o quadro de funcionários profundamente e perceber que só há pessoas brancas como cabeças de equipe. A partir desse diagnóstico sincero e profundo é possível pensar um projeto de inclusão real que tenha plano de carreira e pague um salário digno a essas profissionais”, afirmou.
‘Vazante’ e o lugar de fala do negro
O filme Vazante, dirigido por Daniela Thomas e lançado em novembro de 2017, foi alvo de críticas e polêmicas. O enredo, situado no ano de 1821, conta a história sob o ponto de vista de uma menina branca de 12 anos que vivia com seu tio, um comerciante de escravos, em Minas Gerais.
O longa foi questionado por retratar os escravos sem nome, fala ou subjetividade. Em texto publicado no site da revista Piauí, a diretora se defendeu afirmando que “todo o cinema é político, mas os filmes não têm de ser máquinas de transformação do presente para terem o direito de existir e de ser desfrutados”.
Para o cineasta Joel Zito, não é possível falar sobre negritude e sobre escravidão no Brasil a partir de um olhar neutro, sem a intenção de reconhecer identidades sistematicamente apagadas na sociedade brasileira. “Eu acho que o discurso dela [Daniela Thomas] é defensivo contra a polêmica que se estabeleceu e ao mesmo tempo é contraditório ao explicar as motivações que a levaram a fazer o filme”, disse.
Anderson Jesus concorda com a afirmação e complementa que há um modo de falar sobre racismo ou sobre escravidão de maneira honesta: “Levantem a grana junto às leis de fomento e entreguem a produção, roteiro e direção nas mãos das pessoas que realmente podem falar sobre isso. O resultado será mais honesto, justo e confiável”.
Para Carol Rodrigues, o mito da neutralidade é uma construção política e ideológica que serve para apagar a raça, o gênero e a classe de determinados fatos e opiniões. “Estamos em um momento, justamente, de racializar os olhares e perceber como, muitas vezes, o autoproclamado olhar neutro é um olhar branco sobre o mundo. Falar sobre negritude e sobre escravidão sem a intenção de reconhecer identidades sistematicamente apagadas na sociedade brasileira não é um olhar neutro, é um olhar racista”, defende.
Ancine sob nova direção
No início deste ano, o Ministério da Cultura trocou a direção da Agência Nacional de Cinema (Ancine). A diretora Débora Ivanov foi substituída por Christian de Castro após controvérsias quanto à formulação de políticas para reduzir desigualdades de raça e gênero no setor.
Joel Zito acredita que é por meio de políticas públicas que o Estado terá a chance de fazer com que a maioria da população brasileira seja representada de forma justa e correta nas produções audiovisuais. “É através do Estado que a gente pode dar os primeiros passos para estabelecer um novo paradigma, porque a iniciativa privada não vai ser a vanguarda dessa história.”
Para Anderson Jesus, “perdemos todos com a saída da Débora, pois essa era a oportunidade de termos algum avanço, por menor que fosse”. Sobre a tentativa da Ancine de incluir mais negros e negras no cinema, Jesus diz que não acredita que haja uma preocupação real do governo atual acerca de questões raciais ou de gênero. “Por outro lado, acredito que teremos muita resistência dentro do próprio setor, pois isso mexeria com os privilégios. Apesar disso, toda forma de reparação histórica, por menor que seja, é muito bem-vinda.”
Carol Rodrigues afirma que “esse tipo de política, se efetivamente implementada e gerida por uma comissão paritária e transparente, pode ser interessante enquanto ação afirmativa para reverter a desigualdade de gênero e raça de nosso cinema, principalmente no acesso às verbas federais, que, geralmente, são conseguidas somente em editais específicos”.