Rafael foi um dos quatro detidos no último ato contra aumento da tarifa do transporte em SP; ele conta que ficou duas horas rodando pela cidade dentro da viatura antes de ser levado à delegacia
Os três tubos de tinta spray que o estudante Rafael dos Santos Monteiro, de 28 anos, carregava na mochila foram os objetos considerados de “interesse policial” para que ele fosse conduzido ao 3º DP (Campos Elíseos). Ele e mais três jovens, que portavam um estilete, uma garrafa de vinagre e uma marreta, foram algemados e detidos durante a concentração do terceiro ato contra o aumento da tarifa, organizado pelo MPL (Movimento Passe Livre), na última terça-feira (23/1).
Por volta das 17h30, policiais da CAEP (Companhia de Ações Especiais da Polícia) começaram a revistar aleatoriamente manifestantes e jornalistas no cruzamento das avenidas Ipiranga e São João. “A gente estava em frente à padaria quando eles [PMs] fecharam e pediram para todo mundo sentar e começaram a revistar as mochilas. Como eu estava no canto, eu fui um dos primeiros [a serem revistados]”, conta Rafael.
O jovem disse que costuma participar das manifestações do movimento, mas que não é membro do grupo e que nos atos anteriores ficava responsável pela confecção dos cartazes e para dar informações a quem participasse dos atos.
“Quando o policial viu o spray, queria recolher a tinta. Eu disse que ele não poderia fazer aquilo porque não é crime portar tinta spray. Ele disse que eu ia usar aquilo para pichar e eu disse que não, que ia usar para fazer faixa e cartaz. Ele disse que não ia ter cartaz, não ia ter faixa e pediu para recolher. Eu me recusei e ele disse ‘vou levar você pro DP junto com o spray'”, conta Rafael. “Eu perguntei por que eles estavam me levando e disseram que eu não precisava saber. Como eu insisti, disseram que iam me levar por causa do spray. Eu comecei a gritar que estava sendo levado por causa do spray e os policiais disseram para os jornalistas que era inflamável e com um isqueiro eu poderia provocar um incêndio, mas eu disse que eu não estava com isqueiro. Ele disse que não tinha importância, que eu ficasse tranquilo, que era só pra averiguação”, lembra.
A detenção para averiguação é uma prática ilegal, já que infringe o inciso LXI, do artigo 5º da Constituição Federal, que define que “ninguém será preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada de autoridade judiciária competente”. O texto também está presente no artigo 283 do Código de Processo Penal e na cartilha elaborada pelo Programa de Apoio Institucional às Ouvidorias de Polícia e Policiamento Comunitário, da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República, sobre abordagem policial.
De acordo com o estudante, ele foi revistado ao menos três vezes pelos policiais e, a cada revista, era conduzido para uma viatura diferente no local, onde foi algemado ao lado de outra manifestante que tinha sido detida por portar vinagre. Ele aponta que, nesse momento, os agentes passaram a ameaçá-los e xingá-los “para tentar colocar medo chamando de ‘seu cuzão, você vai ver o que a gente vai fazer com você'”, e que “colocaram nossas coisas na frente e volta e meia ficavam revistando. E quando eu tentava olhar, porque o meu medo era de que colocassem alguma coisa, eles ficavam dizendo que não era para olhar, que era para abaixar a cabeça”, relata Rafael.
No boletim de ocorrência registrado como “localização/apreensão de objeto”, a abordagem aconteceu às 17h40, a comunicação sobre a detenção às 19h36, horário aproximado em que os jovens foram levados ao 3º DP, que fica a cerca de 300 metros do cruzamento das avenidas Ipiranga e São João, e é a unidade que atende a área. A Ponte havia ido e telefonado ao distrito entre 18h30 e 19h no dia, mas os manifestantes não estavam no DP.
Segundo Rafael, nesse período de quase duas horas, as viaturas ficaram rodando com os jovens pelos centro. “Depois levaram todo mundo para o 78º DP (Jardins), onde a gente ficou por 40 minutos em frente à delegacia, dentro da viatura o tempo inteiro, e eles perguntando o que tinha na mochila, se tinha droga, o que ia fazer com o vinagre”.
A falta de informações sobre o quarteto fez com que a manifestação permanecesse no cruzamento e atrasasse a saída do ato e, sem acordo sobre o trajeto, a maior parte do grupo manteve a decisão mesmo repreendido pelo comandante e marchou rumo à Rua Aurora, onde os detidos estavam. A tropa lançou bombas de gás lacrimogêneo, como a Ponte mostrou.
Ao serem encaminhados ao 3º DP, o estudante conta que os quatro foram novamente revistados, tiveram os pertences espalhados pelo chão e que foram fotografados pelos policiais em frente à viatura e ao lado dos objetos.
De acordo com o boletim de ocorrência, os agentes que atuaram na ação estavam na viatura prefixo M-45017. Os policiais, que não são identificados no documento, afirmaram que “prestavam apoio e acompanhamento da manifestação” quando observaram que os quatro “encontravam-se muito exaltados, motivo pelo qual foram abordados”. A única pessoa posta como testemunha no B.O. é o PM Ronaldo Salomão de David.
A versão dos PMs descreve que as mochilas dos jovens foram revistadas e que, “dentre outras peças sem interesse policial, foram encontrados estilete, marreta, spray, vinagre e tintas”, sendo que esses objetos “poderiam ser utilizados para causar danos físicos e materiais” e que por isso eles foram conduzidos ao DP. No documento, a razão do uso das algemas é descrita como “fundado receio de perigo à integridade física própria ou alheia”.
Todos os itens foram apreendidos, além de dez pincéis, um rolo de tinta e um pote para misturar pintura, que pertencem a Rafael. Os quatro foram ouvidos e liberados por volta das 21h.
Chamada pelo MPL para representar os quatro manifestantes, a advogada voluntária Viviane Cantarelli aponta a conduta dos policiais como “perseguição política” e “extremamente abusiva”. “O que chama a atenção de tudo é que eles não estavam sendo presos em flagrante por alguma conduta criminosa. Eles estavam sendo levados por estarem portando vinagre, tinta spray, um martelo quebrado. São todos objetos que o porte não constitui crime e tem a desproporção do tratamento: todos presos e algemados no ‘chiqueirinho’ e depois os tiram e fotografam e não se sabe para onde vai essa foto”, destacou.
A advogada ainda disse que quer se reunir com os jovens e com o MPL para discutir as medidas judiciais que serão tomadas.
Para a advogada e coordenadora do Centro de Referência Legal da ONG Artigo 19, Camila Marques, muitas vezes a polícia se utiliza de indícios frágeis e subjetivos para deter alguém. “A pessoa só pode ser presa mediante provas ou situação de flagrante, que me parece que não foi o caso, e é importante ter em mente que esses objetos que foram apreendidos por si só não colocam a sociedade em risco”, esclarece.
Além disso, Camila Marques aponta que o uso de algemas tem sido “uma prática comum”, embora a legislação, por meio do decreto 8.858/2016, preveja o uso apenas para casos excepcionais e mediante justificativa, o que, para ela, nesse caso, não aconteceu. “Isso é um recado claro aos manifestantes de que a polícia tem o uso da força e que vai usá-la para atingir finalidades que não são as previstas na Constituição, que é a proteção e a garantia do direito de protesto”.
A Ponte tentou em mais de uma oportunidade uma entrevista com o delegado Arariboia Fusita Tavares, que atendeu a ocorrência no 3º DP, mas, até o momento, não obteve retorno. Depois disso, formalizou um pedido de entrevista por e-mail à Secretaria da Segurança Pública e perguntou por qual razão apenas um PM foi ouvido como testemunha, mas, até o momento, não houve resposta. A reportagem também não localizou os outros jovens que foram detidos na mesma data.