Escola sem Partido já faz professor ter medo de dar aula

    ‘Não temos apoio e precisamos medir palavras’, dizem profissionais; pressão de pais já gerou demissão

    Profissionais tem sentido insegurança ao trabalhar | Foto: Arquivo pessoal

    “Você sente segurança no trabalho?”. A pergunta ao telefone fez a professora de história Juliana Lopes refletir. “É difícil. Na teoria, sim. Na prática, sabemos que o professor não tem apoio na sala de aula, precisa medir as palavras”, responde. O fato de ela pensar duas vezes antes de falar não é à toa, seja em sala ou na entrevista.

    No começo de novembro, Juliana foi demitida do colégio Liceu Jardim, em Santo André (SP). Os motivos alegados pela direção para o desligamento, segundo ela, se transformaram ao longo do tempo: de pressão dos pais passou a ser por uma ausência e virou a falta de “condições emocionais” para lecionar.

    A escola se posicionou oficialmente nas redes sociais. Em carta aberta, apontou o abandono de um dia de trabalho e “excesso de viés partidário” nas aulas como definitivos para a demissão. A professora rebate e aponta que a verdadeira razão seriam as críticas ao agora presidente eleito Jair Bolsonaro (PSL).

    A saída da professora do colégio reforça o temor de professores com o projeto Escola Sem Partido, tese de que existem professores com doutrinação de viés comunista nas escolas. Em pauta no Congresso, o texto fala em retirar noções como “gênero”, “orientação sexual”, “ideologia de gênero” e “preferências políticas e partidárias” do conteúdo das aulas sob a alegação de que há uma “ideologização de esquerda feita por professores em sala de aula”.

    Nesta quarta-feira (7/11), o projeto iria passar por uma votação em uma comissão especial da Câmara dos Deputados, situação que atraiu à Casa os deputados eleitos e defensores do movimento Alexandre Frota (PSL) e Kim Kataguiri (DEM). Contudo, a votação foi adiada mais uma vez por causa da agenda do plenário.

    Na prática, especialistas entendem que a proposta representa um cerceamento na liberdade de ensino e, também, de pluralidade de ideias, condições básicas para professores em salas de aula. A pressão aumentou com a eleição Bolsonaro, um defensor do projeto, bem como seus aliados.

    Eleita deputada por Santa Catarina, Ana Caroline Campagnolo, do mesmo partido de Bolsonaro, chegou a criar um canal para que alunos enviem gravações de professores em caso de “conteúdo suspeito” aplicado em sala. O Ministério Público reagiu e fez uma recomendação para que as universidade preservem os professores de “assédio moral em face desses profissionais, por parte de estudantes, familiares ou responsáveis”. Alguns dias depois, a Justiça aceitou uma ação civil pública movida pelo MP e mandou a futura parlamentar fechar o canal.

    A pressão de pais, alunos e parte da sociedade nas escolas públicas, contudo, é apontado como já existente nos colégios particulares.

    “Estou há 14 anos em sala de aula e o Escola Sem Partido é uma formalização de uma coisa já existente. A pressão que o professor passa nas escolas privadas sempre aconteceu, sempre pisamos em ovos. Sabemos com o que estamos lidando, com o publico e tudo mais”, aponta Juliana.

    Demissão gerou questionamentos

    A demissão da profissional fez com que outros pais, estes contrários ao Escola Sem Partido, questionassem a coordenação. Pontuaram que, se existiu de fato uma pressão de pais, por qual motivo os outros, que defendiam a professora, não foram ouvidos. A escola se esquivou, conforme relata uma mãe.

    “Perguntei se meu direito estava sendo respeitado com a demissão dela, que sou contra, e disseram que sim. O colégio é de alto padrão, conhecemos parte dos pais e temos relatos de que alguns deles são políticos e apoiadores do Escola Sem Partido. Até publicam foto nas redes sociais com Bolsonaro”, explica a mãe de um aluno do ensino médio, que pede anonimado por temer represálias a ela ou ao garoto.

    Segundo a mãe, o garoto e outros alunos se sentiram surpresos e decepcionados com a demissão de Juliana, que seria paraninfa na formatura de uma turma de 3º ano do ensino médio. “Eles gostavam muito dela, nenhum se sentia doutrinado ou algo semelhante”, aponta, reforçando a tese de que a escola cedeu à pressão de um grupo específico.

    “A escola não apresentou uma justificativa muito forte, só disseram que respeitam todos os pontos de vista. Lá existem professores declaradamente tucanos [apoiadores do PSDB], se posicionaram nas eleições de 2014 até em sala e nada aconteceu. Por qual motivo acontece agora?”, questiona.

    Ação ilegal

    A Ponte procurou especialistas para analisar o caso. Segundo a educadora Luiza Coppieters, a escola agiu de maneira ilegal ao demitir a professora em caso de problema de saúde, um dos motivos alegados para a demissão. Além disso, deveria ter defendido a profissional se a pressão dos pais, de fato, existiu.

    “Este é um problema que temos quando tratamos a educação como serviço e não direito. Os pais acham que estão comprando algo que deve ser como eles bem entendem, mas não é assim. A escola foi completamente hipócrita ao usar eventos de outros momentos para justificar a demissão”, aponta.

    Um dos eventos citados era uma feira com temáticas para debates. Neste ano, o trabalho comparou a realidade nos anos de 1968, em plena ditadura militar, com 2018 e as eleições presidenciais. Segundo relatos, um grupo de pais ficou insatisfeito com os temas e se juntou para articular o que culminaria na demissão de Juliana.

    “Toda essa violência que agora se institucionaliza é para violar os professores. Não dá para falar do colégio sem citar o discurso deste presidente eleito, que ataca diretamente os professores”, explica Luiza. “Ele está dizendo nas redes sociais que quem ensina é doutrinador, está legitimando e dando força para pais como esses. E essa escola tenta se eximir de responsabilidades, ação que se soma à violência dos pais, do presidente, do Escola Sem Partido…”, continua.

    ‘História é disputa de narrativas’

    O temor de como será o dia de amanhã dentro de sala de aula vai além de Juliana e Luiza, que também aponta não se sentir com plena liberdade de cátedra (princípio que assegura a liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar o pensamento, a arte e o saber), presente no art. 206 da Constituição. Outros professores de história se mostram com medo pela perseguição e espécie de Big Brother ideológico ao qual estarão vivendo.

    Para Juliana, a perseguição ser específica a professores de história, filosofia e sociologia “não é à toa”. “História é disputa de narrativas. Há quem diz que escravidão não tenha sido tão ruim, afinal de contas no período o Brasil teve economia exportadora importante. É uma narrativa, mas posso contra-argumentar e discutir com outra narrativa, a de que foi sistema cruel que torturou, escravizou pessoas, houve estupros…”, exemplifica a professora.

    Apesar da demissão, a profissional considera que a carreira não ficará marcada pelo caso, exceto na região do ABC Paulista, onde fica o colégio Liceu Jardim. Ela conta já ter recebido contato de trabalho para o ano que vem. Sobre ter pensado em mudar ou excluir parte de sua didática de ensino, Juliana Lopes é direta. “Tem que ter o contraditório dessa onda conservadora e acredito muito que essa voz seja um professor de história”, diz.

    Segundo a professora de história, dar aula da forma como bem entender é uma forma de resistir. “Não suportaria dar uma aula beirando a mediocridade para garantir o emprego. As coisas na vida têm que fazer algum sentido para mim e não tem outro jeito, o que é ser professor no governo Bolsonaro, o que é ser negro, mulher, LGBT… É resistir todos os momentos, não tem outra alternativa”, finaliza.

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