‘Auxílio-reclusão tem por objetivo auxiliar familiares de presos que são pobres’, aponta especialista; renda mensal de beneficiária caiu mais da metade quando o marido foi preso: ‘é uma luta’, diz
Vera* é o nome fictício de uma mulher real que recebe o auxílio-reclusão, benefício concedido a dependentes (filhos, enteados, cônjuges, pais e irmãos) de presos, desde 2017, quando o companheiro foi detido. Ela conta que, caso não conseguisse o benefício, não tem ideia de como iria se virar. Mãe de três filhos, da noite para o dia, a renda caiu mais da metade. “Eu faço serviços de manicure e cabeleireira, mas não estou fixa em nenhum lugar, sou autônoma. Em um mês bom, consigo perto de R$ 1 mil. Antes de ser preso, meu marido trabalhava mas não era carteira assinada. Trabalhava em um mercado de um conhecido e ganhava pouco mais de R$ 1 mil”, explica, em entrevista à Ponte.
Ao contrário do que muita gente pode pensar, já existem regras para concessão do auxílio. Para se ter uma ideia, o marido de Vera foi preso em fevereiro de 2017 e ela só conseguiu ter acesso ao benefício em dezembro daquele ano. “Dei entrada no INSS, ele já tinha dez anos de contribuição em carteira. Só que quando foi preso, estava sem registro. Eu retomei as contribuições e quando fui apresentar a papelada, negaram porque acharam que era fraude. Aí tive que pedir comprovação da empresa e eles me ajudaram, emitiram os documentos que eu precisava. Mas foi negado umas três ou quatro vezes. E cada vez pediam mais documentos, é muita comprovação. No fim deu certo, mas é uma luta”, explica. Até dezembro passado estava recebendo R$ 1.050 – valor deduzido a partir da comprovação da renda do preso -, mas agora não sabe o que vai ser. “Ele está prestes a ir para o semiaberto”, diz. Vera diz que o Bolsa Família no valor de pouco mais de R$ 200 “é um respiro, ainda bem” e se queixa de não ter recebido todas as parcelas a que tem direito.
Uma MP (Medida Provisória) assinada pelo presidente Jair Bolsonaro deve afetar diretamente vidas como a de Vera. O texto muda as regras dos benefícios da previdência e, entre essas alterações, o auxílio-reclusão. O texto foi publicado no Diário Oficial na sexta-feira passada (18/1). Uma das principais mudanças é o chamado período de carência, que exige a comprovação de 2 anos de contribuição com o INSS para que o benefício seja concedido. Para Cristiano Avila Maronna, ex-presidente do Ibccrim (Instituto Brasileiro de Ciências Criminais) e membro do Conselho Consultivo, a alteração não é razoável porque não leva em conta o perfil majoritário da população carcerária.
“A exigência de contribuição prévia por dois anos me parece indevida. O auxílio reclusão tem por objetivo auxiliar familiares de presos que são pobres. Exigir dois anos de contribuição representa na prática negar o direito, uma vez que a maioria dos presos vem da extrema exclusão e como regra não tem oportunidades na economia formal”, analisa Maronna, o que trata justamente sobre o caso de Vera, já que quando o companheiro foi preso em 2017, tinha renda, mas estava na informalidade. “Certamente não haverá o cumprimento da nova exigência em muitos casos, o que significa a negação do direito ou a sua restrição desproporcional, de uma medida que tem caráter humanitário”, aponta.
Outra alteração é que, a partir de agora, só quem cumpre regime fechado poderá ter direito de receber o auxílio. Até a mudança, familiares de detentos que cumprem suas penas em regime semiaberto também poderiam ter o benefício. “Bolsonaro e [Sérgio] Moro [ministro da Justiça e Segurança Pública] não reconhecem a necessidade de respeito à um mínimo ético na execução penal”, critica Cristiano Avila Maronna.
O auxílio-reclusão vira e mexe é alvo de críticas, grande parte delas calcada em desinformação. Em 2014, o assunto veio novamente à tona por causa da PEC 304/2013, de autoria da deputada Antônia Lúcia (PSC), que simplesmente acabava com o benefício e colocava no lugar um fundo para vítimas de crimes. Na época, era comum ver conteúdos que relacionavam, por exemplo, o valor do salário mínimo com o auxílio-reclusão, o que não faz sentido, uma vez que o valor do benefício varia em cada caso. O que acontece é que o valor limite, ou seja, o maior valor possível para obtenção do auxílio, é de R$ 1.319,18, segundo a lei. Em linhas gerais, o dependente de um preso só receberá o dinheiro caso esse valor seja até esse limite. E o cálculo é feito baseado na renda mensal do detento antes de ir para a cadeia. Na época, a Ponte publicou uma análise de especialistas sobre o tema que explicou alguns mitos e algumas verdades acerca do auxílio.
“O princípio condutor é o da proteção à família já que, estando o segurado recluso e impedido de trabalhar, a família não pode também ser punida deixando de receber o benefício para o qual contribuiu a pessoa que se encontra momentaneamente encarcerada”, escreveram Maíra Zapater e Maria Rosa Franca Roque, especialistas em direitos humanos e direito penal, e em criminologia e direito penal, respectivamente.
Ainda no texto publicado anteriormente pela Ponte sobre o vulgarmente chamado “Bolsa-Bandido”, as especialistas alertavam que “segundo dados da própria Previdência Social, os percentuais de presos que recebem o auxílio se mantiveram estáveis (em torno de 4%), diferentemente da quantidade de pessoas presas, que aumenta exponencialmente”, justificam.
No ano passado, durante a campanha presidencial em que Bolsonaro saiu vencedor, o tema retornou na discussão de redes sociais e grupos de Whatsapp. A agência de checagem Aos Fatos dirimiu alguns mitos, entre eles a informação incorreta de que o auxílio foi criado pelo PT e novamente o comparativo com o salário mínimo. O auxílio existe existe desde 1933, mas só ganhou o nome em 1960.
“Seu valor, além de variar caso a caso, leva em consideração a contribuição do presidiário ao INSS quando ainda era livre e trabalhava formalmente, com carteira assinada. O tempo do benefício também varia de acordo com a situação. Além disso, quem recebe o auxílio reclusão não é o preso, mas seus dependentes, mediante comprovação da necessidade do recebimento para o sustento da família”, informa o portal.
*a entrevista pediu para não ser identificada por questões de segurança.