Ato público cobra responsabilidade do Estado brasileiro no exílio de Jean Wyllys

    Em ato organizado pelo PSOL em São Paulo, lideranças políticas e representantes dos movimentos sociais, LGBT e negro manifestaram solidariedade ao deputado federal que abriu mão do cargo por causa de ameaças

    Ato reuniu diversas lideranças políticas e representantes das militâncias social, negra e LGBT | Foto: Christian Braga

    Cinco dias depois de anunciar que está deixando o Brasil por causa de ameaças, Jean Wyllys (PSOL-RJ) recebeu apoio de lideranças políticas e representantes dos movimentos sociais, LGBT e negro em ato de solidariedade, realizado na Sala dos Estudantes da Faculdade de Direito da USP, no Largo São Francisco, centro de São Paulo. O evento foi organizado pelo PSOL em parceria com o Centro Acadêmico XI de Agosto.

    O ato começou por volta das 19h, mas um pouco antes, às 18h30, um pequeno grupo contrário aos movimentos presentes no local, identificados como membros do MBL (Movimento Brasil Livre), gerou um clima de tensão por cerca de meia hora. Um dos integrantes desse grupo é o deputado estadual Arthur do Val (PSL), youtuber do canal Mamãe Falei. A deputada estadual Isa Penna (PSOL-SP), que fazia a mediação do evento, pediu para a multidão que lotava o local ignorar as provocações para que o ato prosseguisse dentro da Sala dos Estudantes.

    Quando o clima esquentava do lado de fora, as pessoas reunidas na sala gritavam “a nossa luta é todo dia, pelo Jean, pela democracia” ou cantavam trechos da canção de Chico Buarque, bastante identifica na luta contra a ditadura militar: “apesar de você, amanhã há de ser outro dia”. Às 19h30, os integrantes da MBL foram embora e o ato seguiu pacífico até o encerramento, às 22h.

    Em uma das falas iniciais, o presidente nacional do partido, Juliano Medeiros deu o tom do que seria o encontro: a necessidade de unir forças para resistir. “É importante que a gente não se iluda de que são tempos normais. São tempos que levam um dos nossos, um lutador social, a não se sentir seguro para assumir um mandato conquistado nas urnas, esse é o tempo que a gente vive. É o tempo em que uma parlamentar negra pode ser assassinada no centro do Rio de Janeiro e o crime ficar impune por 10 meses. Esses são os tempos que nós vivemos. São tempos muito difíceis, não nos enganemos. Precisamos estar cada vez mais juntos. Esse ato é expressão disso”, defendeu.

    A data, 29 de janeiro, Dia Nacional da Visibilidade Trans, não foi escolhida à toa: Jean era um importante aliado do movimento trans dentro do Parlamento. Ele participou da inclusão da data no calendário nacional e é um dos autores da lei de identidade de gênero, conhecida como Lei João W. Nery, que nunca chegou a ser votada.

    Importantes nomes do movimento trans estiveram presentes no ato, como a cartunista Laerte Coutinho, a deputada estadual eleita Erica Malunguinho (PSOL-SP) e a co-deputada estadual da Bancada Ativista Erika Hilton (PSOL-SP).

    A fala da cartunista Laerte Coutinho, amiga pessoal de Jean Wyllys, foi carregada de emoção. Em um discurso escrito com antecedência, Laerte emocionou o público contando como conheceu e se tornou amiga do deputado. “Eu entrevistei o Jean há uns anos, porque eu amo o Jean, mas também porque eu queria conversar com ele sobre uma coisa que me interessava. O que há de especial em alguém que se candidata a um mandato? O que leva alguém a buscar o voto dos demais para representar o seu povo? Ou melhor, o que é necessário que essa pessoa tenha? Falamos da capacidade de articular pessoas, movimentos, de ser paciente, de ser persistente. As contrariedades podem ser assustadoras e é preciso manter o sangue bombeando e o coração funcionando. Mas também tem isso que estamos agora afirmando: é preciso manter a própria humanidade. Em algum momento é preciso reconhecer que o limite foi ultrapassado. O que o Jean faz não é uma retirada, é uma fala. A partir de um lugar que poucas pessoas conhecem, sob ataque alucinado e sob o olhar indiferente de quem deveria impor algum controle”, relembrou.

    A cartunista Laerte Coutinho durante leitura do discurso em solidariedade ao deputado Jean Wyllys | Foto: Christian Braga

    Para Laerte, Jean precisou manter essa humanidade própria, o limite da sua segurança e do seu conforto. “O Jean nos fala que esse ponto chegou. Nós, que continuamos com David Miranda, que manterá o mandato vivo. Logo depois do segundo turno, aparecia uma palavra de ordem que dizia: ninguém solta a mão de ninguém. É uma voz de emergência, mas não pode ser única. Precisamos ser como polvo, que tem oito braços, não soltar as mãos uma das outras, mas também alcançar e tocar o polvo que somos e que se sente no abandono. Povo que olha em volta e não vê laços de solidariedade, de segurança, de conforto. E que acaba se voltando e encontrando respostas para isso no autoritarismo, nas igrejas e no crime organizado. Ninguém solte a mão de ninguém, nem recolha a mão que vai continuar a construir a democracia”, finalizou a cartunista.

    Com muitas interrupções, por conta dos aplausos e gritos de “me representa” vindos da plateia, Erica Malunguinho, deputada estadual eleita com mais de 55 mil votos, discursou por 10 minutos. As pautas do seu mandato, fundamento racial e luta contra a transfobia, estiveram presentes em sua fala. “Venho aqui em nome do Dia da Visibilidade Trans celebrar conquistas da população trans, celebrar Neon Cunha, celebrar Liniker, Linn da Quebrada, Maria Clara Araújo, celebrar Renata Peron, celebrar Xica Manicongo, celebrar pessoas trans que estão na vida a despeito de toda opressão. Da mesma forma que celebro essas vidas, a gente entende que essa celebração diz respeito à luta, porque não há dissociação entre práticas políticas de resistência e a verdadeira vontade de existir e estar viva. Então celebro, sim, nossas vidas presentes porque elas dizem respeito à morte de Kelly dos Santos, que teve o coração arrancado, diz respeito a Matheusa, que foi queimada entre pneus, diz respeito a Dandara dos Santos, que foi morta a pauladas, diz respeito a todos os corpos trans que nós naturalizamos a ausência dentro dos lugares de socialidade orgânica, pois estamos acostumados a vermos eles nas ruas, se prostituindo e pedindo esmolas”, destacou Erica.

    Para Malunguinho, as raízes dos problemas sociais são mais profundas do que parecem. “O que aconteceu com Jean Wyllys, e estou muito aliviada por ele ter decidido partir, é a ponta de um iceberg. O que aconteceu com Marielle, o que fez um brilhante professor não ser eleito, o que fez uma presidenta ser deposta, o que fez alguém que não tem crime algum está preso até hoje é a ponta de um iceberg da naturalização da violência em relação a determinados corpos”, defendeu.

    Erica Malunguinho, deputada estadual eleita, durante fala | Foto: Christian Braga

    Em seguida, a deputada eleita fez uma autocrítica ao movimento progressista, reforçando que o avanço de pautas conservadoras era também uma culpa coletiva. “Isso não diz respeito só a essa direita que a gente vive falando, estou falando das nossas microrrelações. Estou falando dentro das nossas estruturas partidárias, estou falando dentro das nossas casas, estou falando dos nossos espaços de trabalho e de poder. O que faz, nós nos reunirmos novamente para pautar coisas que achávamos que estava no passado é exatamente a nossa mentalidade branca, eurocêntrica, normativa, que deixou e achou que alguns anos de governos progressistas seriam suficientes para acabar com o genocídio da população preta que não parou de crescer. E essa calma que se tem, essa calma que tivemos, é resultante disso que estamos vivendo hoje. A responsabilidade da luta antirracista, antimachista, antitransfóbica, antinormativa é de todos. Não adianta reclamar de Bolsonaro quando aqui temos poucas pessoas trans dentro dessa sala. Esse é o resultado dessas urnas, esse é o resultado da nossa mentalidade que ainda é conservadora, porque nós praticamos compulsoriamente formas de apagamentos estruturais”, disse.

    Na sequência, aproveitou o gancho para dar um “puxão de orelha” nos progressistas. “Ou a gente se volta para os nossos quintais, olhamos para os nossos espelhos e enxergamos a nossa imagem e semelhança desse crápula normativa que habita em cada um de nós, ou a gente não avança. É disso que estamos falando” enfatizou Malunguinho.

    Por fim, a deputada reforçou que está aliviada com a saída de Jean do país, pois “permanecer vivo é o nosso maior ato de resistência. Manter a nossa sanidade mental é o nosso maior ato de resistência. Quem tá na trincheira sabe muito bem. Como a mestra Sueli Carneiro bem nos ensinou, a nossa humanidade é inegociável”.

    Em uma fala firme, a co-deputada estadual Erika Hilton destacou a importância de manter pessoas LGBTs vivas e relembrou a histórica vitória de mulheres trans nas urnas, com 3 candidaturas confirmadas. “Eu não diria que Jean saiu, eu diria que ele se recolheu de uma forma estratégica em um país que mais odeia as nossas existências, em um país que persegue as nossas vidas e as nossas pautas cotidianamente. Foi um gesto estratégico de sobrevivência”.

    Erika lembrou o que o próprio Jean já havia dito em entrevista à Ponte, em que recordou uma frase do ex-presidente uruguaio Pepe Mujica sobre mártires: mortos não fazemos nada. “Avisamos aos senhores do poder que sai um homem gay para entrar 3 travestis negras. Hoje, dia nacional da visibilidade trans, nós comemoramos essa tríade: eu, Erica Malunguinho e Robeyoncé de Lima [deputada estadual eleita pela chapa coletiva Juntas, em Pernambuco] eleitas pela primeira vez na história dessa país. Vamos dar continuidade aos projetos de Jean Wyllys. Se eles estavam apavorados com Jean Wyllys, o nosso recado é: preparem-se, porque vem projetos ainda mais radicais. Nós estaremos lá e não daremos sossego. Nós queremos justiça, justiça por Marielle, por Dandara, por Laura Vermont e por todas as outras que morrem todos os dias nesse país. O povo preto e o povo LGBT resistem em pé”, brada Hilton.

    Erika Hilton, co-deputada estadual eleita, durante discurso | Foto: Christian Braga

    O nome de David Miranda (PSOL-RJ), deputado federal eleito, foi citado diversas vezes. O próprio David já assumiu em suas redes sociais que irá manter o legado deixado por Jean Wyllys, como parlamentar negro e assumidamente LGBT, e seguirá nas lutas pelos movimentos LGBT e negro.

    Em entrevista à Ponte, a arquiteta Monica Benicio, amiga pessoal de David, conta as expectativas para esse novo momento de representatividade dentro da Câmara dos Deputados em Brasília. “Ele vai dar trabalho ali dentro porque é um homem extremamente combativo, não é um cara que costuma fugir da luta e dos desafios. Acho bom estar saindo um LGBT e entrando outro para ocupar esse lugar, para gente dizer que vai continuar ocupando esses espaços com as nossas cores e nossa resistência. Vamos continuar dando muito trabalho para eles. David Miranda é uma continuidade de esperança da luta que o Jean representava”, defende Benicio.

    321 dias sem Marielle

    A vereadora Marielle Franco (PSOL-RJ), assassinada a tiros na noite do dia 14 de março de 2018, em um crime que ainda continua sem conclusão, foi lembrada em quase todas as falas da noite e pelo público presente. Gritos de ‘Marielle presente, hoje e sempre’ e ‘Marielle vive’ tomaram o auditório diversas vezes durante o evento.

    Em entrevista à Ponte, a arquiteta Monica Benicio, companheira de Marielle, defendeu que o assassinato da vereadora é um dos motivos para que o deputado Jean Wyllys tenha tomado a decisão de sair do país. Monica também já foi alvo de ameaças de morte, denunciadas em agosto do ano passado.

    “No caso da Marielle, nem o título de poder de parlamentar que ela tinha pode proteger, porque era uma mulher, negra, lésbica, favelada, que tinha ali na expressão dela e no corpo tudo o que esse país considera descartável. Se pode acontecer com a Marielle, que não tinha histórico de ameaça e da forma como foi, você imagina o que não se passa na cabeça do Jean em um momento como esse. Obviamente, ele poderia ser o próximo. O 14 de março, sem dúvida, como ele mesmo colocou, contribuiu, porque uma das coisas que eu consigo enxergar com muita clareza é que o Brasil respeita poucas coisas, mas uma dessas coisas são os títulos de poder e a política traz muito isso. Quando executaram a Marielle daquela forma, rasgaram esse protocolo que a gente tinha de respeitar título de parlamentar”, enfatizou Monica.

    Monica Benicio durante sua fala | Foto: Christian Braga

    Benicio acredita que a saída de Wyllys representa o momento de insegurança impulsionado pelo governo do presidente Jair Bolsonaro (PSL) e reforça que Jean não tinha outra alternativa a não ser essa. “Ninguém escolhe deixar o país, a família e os amigos se não for uma questão muito séria. Nesse caso estamos falando da preservação da integridade física e da vida dele. É muito lamentável que a gente tenha o nosso primeiro exilado político e não chegamos nem a um mês desse governo fascista. É um recado muito claro de que temos que estar atentos ao que está acontecendo por aqui, vamos ter muito trabalho para defender essa democracia frágil que nos resta”, destacou a arquiteta.

    Em outras ocasiões, Monica disse que Marielle nunca tinha recebido uma ameaça de morte, diferente do que acontece durante anos com o deputado Jean Wyllys. “Marielle nunca teve nenhum tipo de ameaça, tinha um índice de rejeição baixíssimo, que era completamente o oposto do Jean que há quase uma década vem sendo ameaçado, vem tendo a família posta sob ameaça. Jean sempre foi um parlamentar muito combativo, foi o primeiro que ali assumiu ser LGBT dentro daquela casa machista, racista e LGBTfóbica”, explicou.

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