LGBTIfobia virou crime: por que nem todo mundo está comemorando

    Seis dos 11 ministros do Supremo Tribunal Federal decidiram, nesta quinta-feira (23/5), pela criminalização da LGBTIfobia. Mas, se por um lado, a decisão pode soar uma resposta à impunidade em crimes desse tipo, de outro, há um fortalecimento do punitivismo penal. Será que é a melhor solução?

    Parada LGBT em São Paulo, em 2017 | Foto: Daniel Arroyo/Ponte Jornalismo

    (*) Por Arthur Stabile, Maria Teresa Cruz e Caê Vasconcelos

    A discussão sobre a criminalização da homofobia e transfobia no STF (Supremo Tribunal Federal) está acontecendo desde 13 de fevereiro deste ano e tem dividido opiniões entre os que militam pela causa LGBTI (Lésbica, Gay, Bissexual, trans e Intersexual). Nesta quinta-feira (23/5), muitos comemoraram, outros nem tanto, a votação de seis ministros pela criminalização. No próximo dia 5 de junho, a sessão continuará porque cinco ministros ainda precisam dar seu parecer para o debate ser dado por encerrado. No entanto, já há maioria e a decisão final.

    O que está em jogo é a inclusão de violências e discursos de ódio contra os LGBTs na Lei Antirracismo para que, com isso, as pessoas não fiquem impunes e, com o tempo, esse tipo de crime acabe. A Ponte explicou, ainda em fevereiro, que são duas as ações em curso no STF, ambas propostas pelo advogado constitucionalista Paulo Iotti, diretor-presidente do GADvS (Grupo de Advogados pela Diversidade Sexual e de Gênero).

    Na ocasião, Iotti explicou que a vitória do casamento homoafetivo em 2013 o impulsionou a entrar com as petições. Ele se ampara na Constituição Federal para a proposta: os artigos 5, inciso 41, que prevê punição para toda discriminação atentatória de direitos e liberdades fundamentais, e o inciso 42 que pune criminalmente o racismo.

    “Por que a lei pune racismo e feminicídio? Para proteger o grupo racial minoritário e a mulher. Essa é a fundamentação filosófica do direito penal, embora tenha a seletividade, ele é muito mais duro com grupos vulneráveis. Nenhuma lei resolve, mas dá mecanismos para isso. A lei antirracismo fala em raça e cor, que abrange cor, etnia, raça e religião, isso inclui vários grupos que não só a população negra”, explicou Paulo, em fevereiro.

    E continua: “Em 2003, em um julgamento muito importante, o Supremo determinou que o antissemitismo [aversão aos judeus] estava abarcado na lei antirracismo. O Supremo adotou um racismo político e social e não biológico para não se tornar um crime impossível, como chamamos no direito. Todas as vezes que racismo aparece, se fala em raça e cor em palavras diferentes. Se a lei fala em palavras diferentes, a gente tem a máxima de que a lei não usa palavras inúteis, se a raça está em palavra diferente, a gente entende que racismo não está só na pele, no fenótipo. Então o Supremo, baseado nisso, falou que racismo é a inferiorização de um grupo social relativamente a outro. Se este é o conceito constitucional de racismo, e eu acredito que seja, então LGBTfobia configura crime de racismo”.

    Assim, falado desse jeito, parece perfeito. Mas há um lado perverso na proposta: o punitivismo. Para a professora e psicóloga Jaqueline Gomes de Jesus, no entanto, ainda que se fale em punitivismo, a melhor alternativa, agora, é mesmo a criminalização. E como argumento, assim como Iotti, ela destaca a impunidade.

    “Não adiantam só ações educativas sem ações punitivas para aqueles que agem de forma discriminatória em agredir, excluir e ferir outras pessoas. É fundamental criminalizar a LGBTIfobia, porque assim se teria condições para punir especificamente as pessoas. Deixar de forma genérica acaba marcando de forma genérica e não determina a violência cometida para que ela possa ser enfrentada na sua especificidade”, argumenta.

    Gisele Alessandra Schimidt, advogada criminalista e militante dos direitos humanos da população LGBT, concorda com os apontamentos de quem é a favor à decisão do STF e faz uma crítica à omissão do Congresso, que deveria criar leis que regulamentassem a questão. “[Deputados e senadores] Ainda estão preso a um livro fictício [bíblia] e por conta de um falso moralismo e conservadorismo dignos da idade média, pessoas estão morrendo de maneira brutal simplesmente por serem quem são. Assim entra o judiciário para sanar essa omissão. Em minha opinião, trata-se de uma estratégia jurídica interessante [incluir LGBTIfobia na lei antirracismo] e inteligente para, pelo menos, os LGBTI terem um pouco de proteção”, afirmou, também em entrevista concedida em fevereiro à Ponte.

    Ação punitivista não muda uma sociedade

    Para as pessoas ligadas à militância LGBTI, o ponto central da crítica é o foco no punitivismo, que vai, em última análise, procurar resolver um problema que exigiria uma mudança de mentalidade na sociedade com o cárcere. Quem se posiciona contrário à criminalização normalmente se define como abolicionista e defende, antes de mais nada, uma discussão aprofundada do sistema penal, que tem em sua clientela preferencial negros, pobres e periféricos.

    Dina Alves, advogada e integrante do IBCCRIM (Instituto Brasileiro de Ciências Criminais), disse à Ponte, ainda em fevereiro, quando as discussões estavam começando no STF, que se posicionava contra a proposta justamente por isso: a contradição de grupos discriminados historicamente procurarem por tutela no sistema penal para resolver problemas sociais e estruturais. “O direito penal, seletivo em sua gênese, é um dos mais poderosos instrumentos de produção e reprodução do racismo, do machismo, da LGBTfobia e tantas outras violências estruturais que lutamos para combater”, pontuou. 

    A ativista trans independente e publicitária Neon Cunha comparou a criminalização da homotransfobia com a Lei do Feminicídio e a própria Lei Maria da Penha. “Eu acho uma das leis [a do feminícidio] mais importantes, mais bem elaboradas e não discuto essa questão, que também vem a proteger nós mulheres negras, tanto cis quanto trans. Mas o que a gente pensa quando a justiça brasileira é racista, classista, burguesa, higienista? Como lidar com isso? Você vê uma enxurrada de vídeos de homens brancos que espancam mulheres, que respondem em liberdade, estão soltos e por aí vai. Por que então eu posso acredita que na questão da criminalização da LGBTfobia vai ser diferente?”, provoca. Para ela, só a ação punitivista não vai mudar a sociedade.

    Na mesma linha, a advogada Carolina Gerassi, que atua na proteção integral das mulheres e tem histórico com pautas voltadas à população trans e travesti, como o caso de Laura Vermont, também destacou a ineficácia da Lei do Feminicídio como mudança cultural. “[Criminalizar] Tem um motivo extremamente relevante, pois a omissão do Estado é flagrante, mas não é uma via eficaz. Por que não é eficaz? A experiência está dando para a gente essa informação. Os feminicídios estão aumentando, o racismo continua ocorrendo. A existência de tipos penais e qualificadoras nos trouxeram e trarão mais dados, mas a resposta que a gente esperava, de que isso geraria um impacto significativo na sociedade, não ocorreu”, explicou. Ou seja, as mulheres continuam morrendo e em grande quantidade.

    Carolina destaca que criminalizar não é um caminho educativo e, por isso, pode não atingir o resultado desejado. “Eu entendo que tem a questão de ordem discursiva que é ‘agora está escrito, o Estado não pode mais fingir que não existimos’, mas isso não é educativo e não desempenha o papel preventivo tão urgente e necessário”, concluiu.

    Não é o ideal, mas é necessário

    Para a deputada estadual Erica Malunguinho (Psol-SP) , primeira mulher trans negra a assumir um cargo legislativo, a criminalização da homotransfobia é positiva na medida em que pode representar o começo da criação de um novo paradigma, “um certo constrangimento e um apoio também, institucional, para uma violência, uma prática de ódio que acontece de forma compulsória e naturalizada”, explicou à Ponte. “A lei determina que não é possível precarizar, ofender, estigmatizar e, consequentemente, produzir crime de ódio e violências que incidem sobre esses corpos”.

    Malunguinho, contudo, reforça a necessidade de que a lei se transforme em um pacto social, em mudança na prática. “Sempre reiterando que essa não deveria ser a única forma pela qual nós sociedade nos regulássemos e entendêssemos que as violações aos corpos e à existência das pessoas não deveriam ter espaço em uma sociedade consciente, organizada, inteligente. Mas, por ora, é um mecanismo necessário e espero que seja um mecanismo transitôrio, que não precisemos determinar proibições para que as pessoas entendam que violações de qualquer natureza são inaceitáveis”, afirmou.

    Sobre o punitivismo penal, Malunguinho reconhece que o Judiciário é influenciado pelo recorte de raça e classe, mas ainda assim, acredita que o dispositivo legal é necessário. “Não é um problema dessa lei em si, mas sim do conjunto de poderes que rege o Estado brasileiro. Ele é inoperante e muitas vezes ausente para pessoas pretas e pobres, sem dúvida. Não é um problema dessa lei, mas dos poderes”, conclui.

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