Artigo | Por que a política de drogas e saúde mental de Bolsonaro é um desastre

    Foco na abstinência com comunidades terapêuticas e guerra às drogas que lota prisões: ‘O encarceramento em massa é o filho da lógica do manicômio’

    Há alguns dias, uma colega foi repreendida por compartilhar um abaixo assinado em um grupo de psiquiatras destinado unicamente à discussão de casos clínicos. Lá não era propício discutir política, disseram: ali, só psiquiatria. Ainda que compreenda a necessidade de espaços para se debater assuntos científicos sem o desgaste de supostas polarizações, perguntei-me se em qualquer época, mas principalmente nos dias de hoje, é possível separar psiquiatria e política, vivendo em um país que, em pleno começo de século XXI, ainda abrigava um lugar como o hospital Colônia, em Barbacena, que por anos e anos viu morrer em média 16 pessoas por dia, ofereceu feno como leito para seres humanos dormirem e prendeu dentro de seus muros centenas de pessoas das quais 70% não tinham sequer um diagnóstico psiquiátrico. Essa frase é muito importante e seu impacto diz muito sobre nós. Ao nos surpreendermos com o fato de que 70% das pessoas trancadas em um manicômio não tinham diagnóstico psiquiátrico, é como se, de alguma maneira, achássemos que as 30% que tinham mereciam estar ali.  E não.

    Deveria ser óbvio que não. Por isso o grande argumento contra o discurso antimanicomial é o de que ninguém quer manicômios. Todos sabem que são instituições retrógradas, ultrapassadas, desumanas e ninguém mais quer tratamentos coercitivos para pessoas em sofrimento psíquico. Porém, recentemente, a pessoa que ocupa o mais alto cargo do poder executivo de nosso país assinou um decreto que privilegia as chamadas comunidades terapêuticas como suposta estratégia ao combate à dependência química. Nesta única frase, há tantos equívocos que é difícil saber por onde começar a desfazê-los. Primeiro, o presidente, que mostra reiteradamente não ter competência para ocupar o cargo em que está.

    E devemos resistir à vontade de chamá-lo de louco, pois os loucos não têm nada a ver com isso. Assim como não podemos chamar de loucos os 30% de brasileiros que ainda apoiam este desgoverno, apesar de ser em parte compreensível o motivo que nos leva a querer chamá-los assim. Os loucos, ou pessoas portadoras de transtornos psicóticos, costumam ter pensamentos delirantes, e uma das características do delírio é ser incoercível, ou seja, por mais que apresentemos comprovações, refutemos, ofereçamos dados de realidade, a pessoa que delira tem absoluta certeza, absoluta convicção, mesmo diante de provas do contrário, de que a sua versão impossível da realidade é verdadeira.

    Embora essa estrutura de pensamento seja reconhecível  atualmente, seríamos levianos e até antiéticos se chamássemos de loucos o presidente e seus asseclas, porque o fato de não ser socialmente compartilhado é outra das características do pensamento delirante. Como lemos em O paciente psiquiátrico, de Van der Berg: a psicopatologia é a ciência da solidão, e a impossibilidade de ser compreendido é um dos maiores motivos de sofrimento para quem tem um transtorno psicótico. Como não há sofrimento em uma mera escolha de posicionamento político, não podemos chamar pessoas que pensem de maneira diferente de nós ou que se recusem a perceber certas coisas de loucos. Podemos chamar Jair Bolsonaro, por exemplo, de incompetente, idiota, mau caráter, entre outras coisas. Idiota é uma boa palavra: vem do grego ídios e corresponde a uma concentração no que é próprio em detrimento do que é alheio, estrangeiro, outro, ou seja, caracteriza uma pessoa que atua em nome de interesses privados e portanto não teria capacidade para ocupar cargos públicos.

    Uma pessoa incapaz de ver o outro, que privilegia os próprios interesses, condiz com o presidente que assina um decreto favorecendo comunidades terapêuticas religiosas. Nada contra os possíveis benefícios que a espiritualidade pode ter no percurso individual para lidar com o uso problemático de drogas, mas o financiamento público de instituições religiosas que pregam a abstinência é bastante controverso. Caberia ao Estado estabelecer regras rígidas e fiscalizar intensamente comunidades entre as quais, segundo relatório do Conselho Regional de Psicologia de 2011, ainda havia as que violavam direitos humanos através de cárcere privado, trabalho análogo à escravidão e desassistência sanitária.

    E o que temos é o oposto, o investimento nessas comunidades, que receberão quase a mesma quantidade de verba que os CAPS-AD, Centros de Atenção Psicossocial especializados no tratamento de pessoas com uso problemático de álcool e drogas. Além disso, foi sancionada uma lei que permite que pessoas com uso problemático de drogas sejam internadas contra sua vontade, seguindo as diretrizes da dita nova Política Nacional Sobre Drogas, mais um dos enormes retrocessos perpetrados por esse desgoverno. Se era pouco o que tínhamos avançado, desde 2003, em direção a uma política baseada na redução de danos, estamos indo a passos largos para trás.

    Internações voluntárias prolongadas têm eficácia duvidosa: é difícil manter a abstinência quando se volta para a vida de antes, quanto mais se a decisão de parar de usar não foi sua. E essa prática será custeada pelos cofres públicos, os mesmos que se dizem vazios para a educação.

    Uma Política Nacional Sobre Drogas que visa a abstinência combina com a guerra às drogas, uma guerra de antemão perdida, e cujas maiores vítimas são os pretos e pobres. O uso de drogas não é necessariamente problemático e não tem relação direta com a ilegalidade ou a criminalização. Vejamos por exemplo o caso do álcool, ou o do cigarro, ou de algumas medicações psiquiátricas tidas como seguras e que têm enorme poder de causar dependência. Há muitos interesses por detrás de tudo isso: não à toa, no hospital penitenciário onde trabalho há sete anos, vejo todos os dias pessoas presas por tráfico sendo que são usuárias de crack, por exemplo, enquanto donos de helicópteros cheios de cocaína continuam soltos.

    A guerra às drogas é responsável pelo aumento vertiginoso do encarceramento no Brasil, o terceiro país do mundo em tamanho de população carcerária, só perdendo para os Estados Unidos e a Rússia. O encarceramento em massa é filho da lógica do manicômio. Prisões e manicômios são ambos instituições totais, na definição do sociólogo Erwing Goffmann em Manicômios, prisões e conventos: lugares onde se perde a individualidade, lugares em que se vive a totalidade de uma vida, lugares que existem não pelo bem estar de quem está lá dentro, mas para que os escondamos das nossas vistas. No caso das prisões, além do custo do Estado para se manter os presos, as famílias das pessoas presas perdem uma fonte de renda (só 7% das famílias de pessoas que estão presas recebem auxílio reclusão). Prendemos parte da nossa população mais economicamente ativa: a faixa entre 18 e 29 anos representa 18% da população, e 55% da população carcerária.  Muitas famílias perdem o sustento. Quanto às mulheres, 62% das quais estão presas por tráfico, a situação fica ainda mais delicada: muitas famílias perdem ao mesmo tempo o ganha-pão e a mãe.

    A proposta recente de que os presos paguem ao Estado os custos de seu encarceramento, ainda a ser votada no Senado e na Câmara, não resolve a base do problema e aumenta a chance de os mesmos pobres se endividarem com o crime. Além disso, sair da prisão para o mercado de trabalho já é difícil por si: imaginem se a isso se somar uma dívida com o Estado.  Prender tanto não se justifica. Mesmo se fosse pela suposta segurança da população: um estudo publicado este ano pela revista Nature mostrou que a prisão não tem efeito preventivo na reincidência de crimes violentos a longo prazo. Quanto aos crimes não violentos, encarcerar pessoas em condições desumanas é fazer com que o estado seja mais violento do que os supostos criminosos que estão sob sua tutela. A taxa de ocupação média das prisões brasileiras é de 198%. No Amazonas, chega ao absurdo índice de 484% – se pensarmos que nas prisões amazonenses, onde caberia uma pessoa, há 5, não fica difícil imaginar brigas e massacres entre os presos, como aconteceu em 2017 e de novo este ano.

    Nas prisões lotadas de presos que nem deveriam estar lá – 40% da população carcerária está presa sem condenação –, as pessoas contraempegam sarna, tuberculose, emagrecem por conta da má alimentação, precisam rodiziar camas, veem seus familiares humilhados em dia de visita. Só no estado de São Paulo, um preso morre a cada 19 horas. Estar preso aumenta a criminalidade: o ambiente prisional exacerba problemas de saúde mental, torna pessoas mais propensas à agressividade e descrentes no sistema legal que as encarcerou. Só 2% da população prisional está presa por homicídio, respondendo aos que poderiam dizer que prender serviria para proteger a sociedade. E os outros 98%? Quem está sendo violento com quem? Nosso sistema de justiça é justo? O que é justiça no Brasil?

    Difícil também acreditar que haja alguma preocupação com saúde mental e com a vida quando analisamos as políticas de acesso às armas de fogo. Pessoas com armas de fogo em casa têm três vezes mais chance de morrer por suicídio. A indústria farmacêutica produz medicações cada vez mais avançadas, mais e mais pessoas têm acesso a tratamento psiquiátrico, mas os índices de suicídio só vêm aumentando.

    Não foi sempre assim: de 1987 a 2000, por exemplo, houve uma queda nos índices de suicídio estadunidenses, o que foi rapidamente atribuído ao advento e difusão dos antidepressivos. Mas uma análise mais aprofundada dos dados mostrou que a diminuição dos suicídios naquele período se deveu à melhora dos índices de desemprego e à redução do porte de armas de fogo. Mais uma prova da correlação entre saúde mental e política, e políticas públicas. 

    A psiquiatria vai além dos remédios; tratar a loucura não se resume a prescrever a melhor medicação. Muito antes das melhores medicações, precisamos oferecer condições dignas a muitos de nossos loucos, a muitas de nossas pessoas com uso problemático de drogas. 

    A luta antimanicomial não só faz sentido como é necessária ainda hoje. Principalmente hoje. E se dizer contra manicômios não é o mesmo que dizer que pessoas em crises psicóticas não precisem nunca ser cuidadas em hospitais. Algumas vezes precisam: mas por pouco tempo, em enfermarias dentro de hospitais gerais. Um panorama bem diferente do que temos hoje no Brasil e do que provavelmente veremos nos próximos anos. Sem falar dos 26 hospitais de custódia, o eufemismo para manicômios judiciários, convergência de dois problemas de que falamos um pouco aqui, o dos loucos e o das prisões. As quase 3 mil pessoas ali detidas são tão esquecidas que o primeiro censo para mapeá-las foi feito só em 2011. Um em cada quatro indivíduos não deveria estar internado; 47% estão encarcerados sem fundamentação legal e psiquiátrica; 21% cumprem pena além da estipulada em sentença; sem contar os que estão internados há mais de 30 anos, contrariando a pena máxima admitida pelo regime jurídico brasileiro. Se estamos vivendo em tempos sombrios, o tempo sombrio dessas pessoas começou muito antes. 

    Nada disso é novidade: mas estamos em tempos que nos obrigam a dizer o óbvio. Nos obrigam a reafirmar a importância da Ciência. Da educação. Do respeito à diferença. Respeitar nossos loucos é respeitar a humanidade. A maneira como lidamos com o outro de nós mesmos é proporcional à nossa capacidade narrativa e à nossa capacidade de sonhar.

    O texto foi apresentado na Flip (Festa Literária de Parati) deste ano e esta é uma versão reduzida. Leia aqui o artigo na íntegra.

    (*) Natalia Timerman é médica psiquiatra pela UNIFESP, mestre em psicologia pela USP e escritora. Trabalha no Centro Hospitalar do Sistema Penitenciário, em São Paulo, desde 2012. Autora de Desterros – histórias de um hospital-prisão (editora Elefante, 2017), e de Rachaduras, livro de contos a ser lançado em outubro de 2019 pela editora Quelônio.

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