Documento mostra que IML analisou ossos encontrados em obra, mas governo de SP e Ministério Público não explicam falta de investigação em aterro de suposta desova
A Polícia Civil desconsiderou a informação de que 6 ossadas encontradas em um canteiro de obras na zona sul da cidade de São Paulo possam ter sido desovadas em um aterro em Carapicuíba (Grande SP). Uma denúncia anônima desencadeou uma investigação em outubro, conforme documentos revelados pela Ponte em 12 de dezembro.
Novos documentos obtidos pela Ponte mostram que o laudo feito pelo IML (Instituto Médico Legal) descartando que o material poderia ter origem humana diz respeito apenas ao material recolhido no canteiro de obras na Rua Abílio Soares, 1.149, no Paraíso, zona sul da capital paulista. Os pedaços teriam sido encontrado pelos funcionários da empresa responsável pela obra, a Construtora Uniq, e não no aterro em Carapicuíba.
O local onde, segundo a denúncia anônima que originou a investigação, teriam sido encontradas as ossadas fica a 150 metros da antiga sede do Doi-Codi (Destacamento de Operações de Informação – Centro de Operações de Defesa Interna), usado pela ditadura militar para prender, torturar e matar pessoas opositoras ao regime ditatorial instalado no Brasil entre 1964 e 1985. A mesma pessoa responsável pela denúncia afirmou à polícia que os ossos teriam sido desovados no aterro da Lagoa de Carapicuíba.
As investigações começaram no SIG (Setor de Investigações Gerais) de Diadema (ABC paulista), onde a denúncia anônima chegou à Polícia Civil. Os ossos teriam sido achados entre os dias 22 e 25 de outubro. No entanto, a Uniq entrou com pedido para que as investigações fossem transferidas para uma delegacia da capital paulista e a Justiça aceitou. O 36º DP (Paraíso), que assumiu a investigação, teve acesso aos dois pedaços de ossos analisados em 12 de dezembro. Nem investigadores do 36º DP nem do SIG de Diadema estiveram em Carapicuíba para investigar o suposto local onde, conforme a denúncia anônima, os ossos foram levados e descartados.
Ao telefone, a delegada do 36º DP Juliana Pereira Romangoli Elias, responsável pelas investigações sobre as ossadas, afirmou à Ponte que a equipe dela não foi ao aterro para tentar achar as seis ossadas que teriam sido jogadas lá, ainda segundo a denúncia anônima. A delegada não quis explicar o motivo nem detalhar o que foi feito até o momento.
A policial informou que esclarecimentos sobre o caso deveriam ser feitos pela assessoria de imprensa da Secretaria da Segurança Pública de São Paulo, comandada pelo general João Camilo Pires de Campos neste governo de João Doria (PSDB). A reportagem solicitou à SSP entrevista com a delegada, mas a SSP ignorou a solicitação.
Em um dos documentos do caso, a delegada Juliana informou ao delegado titular do 36º DP, seu superior imediato, que o material recolhido e analisado pelo IML diz respeito apenas ao canteiro de obras, não mencionando em nenhum momento o suposto local de desova das 6 ossadas.
Dois médicos legistas assinaram o laudo necroscópico-antropológico feito nos dois ossos, encontrados um mês e meio após a data em que as 6 ossadas teriam sido descobertas no canteiro de obras. Um desses ossos seria o “fragmento de osso longo com epífise proximal não soldada”. O outro, “um fragmento de diáfise de osso longo”, diz o laudo emitido em 13 de dezembro e que descartou que os dois ossos fossem humanos.
Os legistas concluíram que “foi examinada uma ossada com características anatômicas diversas das da espécie humana e compatíveis com animal mamífero de médio porte e jovem”, sem detalhar que animal poderia ser e sem especificar se os dois ossos pertenceriam ao mesmo animal.
Maurice Politi, ex-preso político e diretor do Núcleo de Preservação da Memória Política, manifestou preocupação com o andamento do caso e cobrou que as autoridades investiguem a fundo a denúncia anônima sobre as seis ossadas.
“A denúncia feita pela Ponte é grave e revelou ou pode ter revelado o fim de uma trama. No Uruguai, por exemplo, depois de mais de 20 anos encontraram corpos em quartéis, coisas que ninguém tinha desconfiança”, afirmou Maurice.
“Quando se revela que numa área onde foi um local de prisão, porque não se pode esquecer que ali nesse local era a prisão da PE [Polícia do Exército], todos os presos políticos da temporada pré-Oban, antes de agosto de 1969, foram presos e mantidos ali”, continuou Maurice, mencionando a Operação Bandeirante, o embrião que deu origem ao Doi-Codi.
O Núcleo da Memória faz parte do Grupo de Trabalho Interinstitucional Doi-Codi, formado por instituições acadêmicas e organizações da sociedade civil. Um dia após a denúncia da Ponte, o grupo de trabalho emitiu uma nota oficial destacando a gravidade do caso e pedindo celeridade nas investigações.
Maurice contou que o grupo de trabalho foi criado em 2018 justamente para cobrar a promessa de que o prédio onde hoje é o 36º DP, antiga sede do Doi-Codi, fosse passado para a Secretaria Estadual da Cultura e que lá fosse construído um museu sobre o a ditadura.
“É imprescindível que se esclareça isso, de quem são essas ossadas. O pessoal do CAAF [Centro de Antropologia e Arqueologia Forense, que fez trabalho com as ossadas do Cemitério de Perus] tem em seu poder hoje o DNA de todos os desaparecidos. Então não seria difícil ou impossível, por meio do DNA das ossadas, saber se elas são militantes desaparecidos ou não”, justificou Maurice.
“A questão do desaparecimento é um crime continuado. A família de um desaparecido tem o direito a verdade, a saber se foi o caso de morte, de receber ao menos o corpo. No passado, guerras eram interrompidas para que os corpos dos mortos fossem enterrados, porque é sagrado o direito de uma família enterrar os mortos”, concluiu.
Entenda o caso
Em 30 de outubro, um investigador e um agente policial do SIG (Setor de Investigações Gerais) da Delegacia Seccional de Diadema apresentaram um relatório com “informações contundentes” de uma denúncia anônima sobre subtração e ocultação de cadáver envolvendo a incorporadora Uniq Incorporações.
A denúncia afirma que “ossadas humanas, cerca de seis, no mínimo, teriam sido encontradas pelos funcionários da empresa Uniq” durante a construção de um prédio residencial, chamado Urbic Ibirapuera, na Rua Abílio Soares, 1.149, no Paraíso, zona sul da cidade de São Paulo.
As ossadas, que teriam sido encontradas próximas “a uma rampa de acesso ao interior do empreendimento” e “a um muro divisor com outro imóvel”, teriam marcas de tiro e estariam cobertas por cal. Os funcionários teriam tirado fotos das ossadas e avisado um “supervisor da obra, chamado João”, sobre o encontro.
Ainda segundo a denúncia anônima, “diretores e engenheiros” da Uniq teriam ordenado aos funcionários para prosseguir com a construção, pelo fato de as obras “estarem com os prazos encurtados e por se tratar de final de ano” e determinado que as ossadas fossem levadas para um aterro conhecido como “Lagoa de Carapicuíba”, em Carapicuíba.
A atitude, prossegue a denúncia, “causou estranheza aos funcionários, pelo fato de terem ciência de que trata-se de crime e acreditarem trabalhar em empresa idônea”. No dia seguinte, o delegado Ricardo Kondo Forti, supervisor do SIG de Diadema, autorizou que a equipe fizesse “diligências preliminares” para investigar a denúncia.
Em 1º de novembro, a equipe do SIG foi até as obras do Urbic Ibirapuera e ouviu pessoas que trabalhavam ali. Um operador de máquina de uma empresa terceirizada contou que havia encontrado “porções de ossadas” uma semana antes, em 22 de outubro, quando as escavações chegaram a um metro e meio abaixo do chão. Em seu depoimento, contou ter visto “um crânio fragmentado”, “ossos do peito” e “outros ossos mais compridos”, lembrando “um corpo desmontado”, e que identificou “furos em alguns dos ossos”.
Segundo o operador, o mestre de obras teria feito algumas ligações e, em seguido, dado a ordem de continuar as obras “como se nada tivesse acontecido”. Outras ossadas teriam sido descobertas nas escavações ao longo dos três dias seguintes, inclusive uma delas enterrada em pé. O mestre de obras continuou a mandar que removessem as terras com os ossos, dizendo que eram “só de bichos”. Além de ter visto as ossadas, o mesmo operador confirmou ter recebido a informação de que todo o material teria sido descartado no aterro Lagoa de Carapicuíba.
Ouvido pela polícia, o mestre de obras da Uniq, João Pedro Alves Santos, 59 anos, disse que as escavações haviam localizado apenas “um osso com aproximadamente 20 centímetros” e mandou que fosse removido junto com o restante da terra e levado a “um bota fora autorizado”. Um dos ossos analisados possui 10 centímetros. João, que falou à Polícia Civil acompanhado o tempo todo pela advogada da Uniq, assumiu toda a responsabilidade, dizendo que tomou a decisão de remover o osso sem consultar seus superiores, por acreditar que “se tratava de um osso pertencente a algum animal”.
A equipe policial pediu para ver as mensagens do Whatsapp do mestre de obras. Ali, em mensagens trocadas no dia 22, data do suposto encontro das ossadas, uma conversa entre João e a engenheira responsável da obra, Talita Nogueira Gomes Martins, mostra a preocupação com a demora na fase da remoção da terra.
Em 7 de novembro, o delegado Ricardo Kondo Forti, supervisor do SIG de Diadema, instaurou inquérito para investigar a incorporadora Uniq por destruição, subtração e ocultação de cadáver. No mesmo dia, intimou a engenheira responsável da obra, Talita Nogueira Gomes Martins, a prestar depoimento. Os advogados da empresa pediram o adiamento do depoimento.
Seis dias depois, o delegado pediu à Justiça a paralisação temporária das obras do Urbic Ibirapuera. Segundo ele, a continuação das obras “causará a impossibilidade da realização dos exames técnico científicos pelo Instituto de Criminalística (Setor Engenharia), já requisitado, todavia, sem efetiva previsão da data de cumprimento” o que iria possibilitar “a localização de mais material ósseo, e sua respectiva classificação como de origem animal ou humana”.
A defesa da Uniq se manifestou contra a solicitação de paralisação, dizendo que era “totalmente precipitada” e afirmando que “no terreno em questão se localizava uma casa que foi residência da mesma família desde o ano de 1908, sendo absolutamente improvável que uma pessoa tenha sido enterrada no local” e que “não existe nenhum indício concreto de que existiu ossada humana na obra, pois o único depoimento utilizado como fundamento foi contraposto pelo mestre de obras, que mencionou expressamente que, pelo tamanho dos ossos encontrados, evidentemente era oriundo de animais”, ignorando o depoimento do operador de máquina.
Os advogados da Uniq também afirmaram que haviam contratado um perito judicial para acompanhar o restante da remoção de terra do empreendimento, “sendo que a determinação expressa da empresa é de que caso haja a constatação de ossos no local, a obra será imediatamente paralisada”. A essa altura, segundo a empresa, 90% dos trabalhos de manejo da terra já estavam concluídos.
Os advogados da empresa também pediram o cancelamento de todas as investigações realizadas pelo SIG, a quem chamou de “delegacia incompetente”, alegando que a competência do inquérito caberia à Polícia Civil do município de São Paulo, e não a uma delegacia da região metropolitana.
Sobre o pedido de paralisação das obras na Vila Mariana, a promotora Karina Scutti Santos, da 1ª Promotoria de Justiça Criminal do Ministério Público Estadual, manifestou-se contra o pedido da Polícia Civil, dizendo que “não há qualquer evidência material de que se trata de cemitério clandestino ou local de desova de cadáveres humanos”. E pediu que os autos fossem enviados para outra delegacia, o DHPP (Departamento de Homicídios e Proteção à Pessoa), na capital paulista.
Em 21 de novembro, o juiz Fabio Panda de Matos atendeu ao pedido dos advogados da Uniq e ao Ministério Público e determinou a remoção dos autos da investigação para o DHPP. Mas o departamento se recusou a assumir a investigação, afirmando que “não tem atribuição em investigar este tipo de crime”.
No último dia 13, os advogados da Uniq informaram à Justiça que haviam encontrado um pedaço de osso de 10 centímetros na construção — segundo a empresa, o comunicado foi feito para “demonstrar total boa-fé” da incorporadora com as autoridades. A empresa informa que teria paralisado “com fitas” o trecho da obra onde o pedaço de osso foi encontrado.
No mesmo dia, um laudo do IML (Instituto Médico Legal) teria comprovado que o osso seria de origem animal. A afirmação aparece em uma nota que a assessoria de imprensa da Secretaria da Segurança Pública enviou à Ponte em 17 de dezembro. A secretaria da gestão João Doria (PSDB), feita pela empresa InPress, recusou-se a mostrar o laudo para a reportagem.
A reportagem pediu entrevista com a promotora Karina Scutti para saber se testemunhas já foram ouvidas e qual o andamento do caso no Ministério Público, mas ela informou, através da assessoria de imprensa, que vai aguardar a conclusão do trabalho policial.
Segundo o dono da empresa Top Solo Fundações e Locações de Máquinas, responsável pelo nivelamento do solo do empreendimento da Uniq, Edimilson Silva Araújo, ele e seus funcionários não presenciaram a descoberta de nenhuma ossada na obra. “O que me informaram é que encontraram dois fossos, mas nada sobre osso”, explica à Ponte. Outra empresa citada no inquérito é a Construtora Líder, mas a reportagem não conseguiu contato com seus representantes.
A Ponte ainda questionou a Uniq sobre o local, data e por quem foram encontrados os ossos analisados pelo IML. A empresa respondeu que “um fragmento de osso foi encontrado no local no dia 4 de dezembro, durante o trabalho de escavação manual na obra”.
“O local foi isolado com tela de proteção e a Uniq imediatamente informou as autoridades. O IML retirou o material no dia 12 e o resultado já saiu: não se trata de osso humano e, sim, de osso de um animal”, diz a empresa. A Uniq reafirma que a denúncia “é totalmente infundada”.
À SSP, a reportagem questionou o motivo das equipes não terem feito diligências em Carapicuíba, no aterro citado como local de desova das ossadas, mas a pasta não respondeu.
Visita ao aterro
O endereço Avenida Consolação, 505, em Carapicuíba, na Grande São Paulo, é a entrada do Parque Gabriel Chucre, de administração estadual. É nos fundos dele que fica o aterro conhecido como Lagoa de Carapicuíba, apontada em uma denúncia anônima apurada pela Polícia Civil como local de desova de ao menos seis ossadas encontradas em um canteiro de obras na Rua Abílio Soares, Paraíso, zona sul da capital paulista.
A Ponte esteve no local nesta quinta-feira (20/12) e observou que, ao fundo da lagoa, em uma parte mais alta, retroescavadeiras e caminhões trabalhavam em uma extensa faixa de terra. “Fica caminhão entrando e saindo daí o dia todo”, disse à reportagem um vigilante do parque.
No entorno da lagoa, há muito lixo descartado irregularmente, mesmo com aviso de crime ambiental. Uma portaria improvisada impede o acesso da reportagem até o local onde as máquinas estavam operando. “É terreno particular”, afirmou o vigilante ao encerrar o papo.
Cronologia do caso
22/10/2019 – Na construção do empreendimento Urbic Ibirapuera, na Rua Abílio Soares, 1.149, na Vila Mariana, zona sul da cidade de São Paulo, trabalhadores encontram uma ossada humana, segundo uma testemunha e uma denúncia anônima recebida pela Polícia Civil. Após telefonar aos superiores para saber o que fazer, mestre de obras da incorporadora Uniq teria ordenado que as obras prosseguissem “por causa de prazos apertados”.
25/10/2019 – Nos dias seguintes, novas ossadas teriam sido encontradas, inclusive uma delas enterrada de pé. O mestre de obras teria dito que os ossos eram “só de bichos” e mandado removê-los para um aterro em Carapicuíba (Grande São Paulo). A Uniq nega.
31/10/2019 – Após receber denúncia anônima sobre o encontro das ossadas, o SIG (Setor de Investigações Gerais da Delegacia Seccional) de Diadema, também na Grande São Paulo, determina investigações a respeito.
1º/11/2019 – Equipe do SIG de Diadema vai até o empreendimento, no Paraíso, na capital paulista, e interroga pessoas que trabalham no local. Um operador de máquina confirma que viu as ossadas durante as escavações entre 22 e 25 de outubro, e que foi informado que teriam sido descartadas no aterro em Carapicuíba. Já o mestre de obras admite apenas o encontro de um pedaço de osso de 20 centímetros e diz que não avisou seus superiores por achar que eram de animais.
7/11/2019 – SIG de Diadema instaura inquérito para investigar a Uniq Incorporações e intima a engenheira Talita Nogueira Gomes Martins. Os advogados da empresa pedem o adiamento do depoimento dela.
13/11/19 – Delegado Ricardo Kondo Forti, supervisor do SIG de Diadema, pede à Justiça a paralisação temporária das obras do Urbic Ibirapuera.
14/11/19 – Advogados da Uniq pedem o cancelamento das investigações, alegando que a polícia de Diadema não poderia investigar um empreendimento na cidade de São Paulo.
21/11/19 – Justiça de São Paulo determina a remoção da investigação para o DHPP (Departamento de Homicídios e Proteção à Pessoa), na capital paulista.
26/11/19 – O DHPP se recusa a assumir a investigação.
13/12/19 – Para “demonstrar total boa-fé”, a Uniq informa à Justiça que encontrou um pedaço de osso de 10 centímetros na construção e que, por isso, teria paralisado “com fitas” um pequeno trecho da obra. No mesmo dia, um laudo do Instituto Médico Legal teria comprovado que o osso seria de origem animal, conforme nota da assessoria de imprensa da Secretaria da Segurança Pública.