Medida deve atingir cerca de 12 mil pessoas que não estão cadastradas em abrigos; capital paulista possui o dobro de pessoas em situação de rua e aptas ao benefício
Não são nem 10h quando centenas de pessoas começam a se juntar e formar uma fila na esquina das ruas Hércules Florence e 25 de Março, nas imediações do Terminal Parque Dom Pedro II, região central da capital paulista. Elas estão atrás de um prato de comida servido pelo Bom Prato instalado naquele endereço.
Todos ali tem um propósito: comer bem e pagar barato, já que o valor único do cardápio é de apenas R$ 1. Por causa disso, no local se reúnem não só moradores em situação de rua, mas motoristas e cobradores de ônibus, garis, e outros profissionais, muitos em situação de desemprego, que vivem equilibrando as contas diárias para não passar ainda mais aperto no final do mês.
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Apesar de já ser uma refeição que cabe na maioria dos bolsos, a deputada estadual Erica Malunguinho (Psol) apresentou uma proposta de gratuidade do Bom Prato, mais uma iniciativa para conter os efeitos da pandemia do coronavírus. O governador João Doria (PSDB) acatou a sugestão e aprovou desde o dia 1º/6 a distribuição gratuita de marmitas para moradores em situação de rua. Para tanto, é necessário um cadastro junto à prefeitura para a obtenção de um cartão que garante a gratuidade até o dia 31 de julho. Além do almoço, também estão incluídos café da manhã e jantar.
A normativa vale para todas as 58 unidades espalhadas pelo estado que, segundo a Secretaria de Desenvolvimento Social, fornecem mais de 93 mil refeições diariamente.
A reportagem da Ponte esteve no Bom Prato 25 de Março na manhã da última terça-feira (2/6) e durante mais de uma hora notou a presença de alguns poucos moradores em situação de rua com os cartões e tantos outros ainda desembolsando R$ 1 para se alimentar. Questionados pela reportagem sobre o pagamento, as respostas foram de que não tinham conhecimento sobre a gratuidade.
No local, uma dupla de assistentes sociais da prefeitura de São Paulo orientava os interessados a obterem a alimentação gratuita a se dirigir até o Pateo do Collegio, onde uma van os aguardava para a confecção dos cartões, que eram entregues após a apresentação de um documento com foto.
Um dos contemplados com a iniciativa do governo foi o vendedor Matheus de Morais Ribeiro, 20 anos. À reportagem, o jovem contou estar morando no entorno da Praça da Sé e Pateo do Collegio há cerca de três meses, após perder o emprego em virtude do coronavírus.
“Trabalhava como vendedor de móveis e colchões. Os donos da loja eram empresários peruanos que, diante da pandemia, decidiram voltar para seu país de origem”, explicou.
Ainda se adaptando a viver pelas ruas do centro da capital paulista, ele afirmou que chegou a ficar sem ter o que comer por muitas vezes, e encara a distribuição gratuita de comida como uma salvação. “Muita dificuldade de se alimentar sem dinheiro. Cheguei a passar fome. Só vem doação à noite. Ficava a manhã todinha passando fome. Foi um benefício muito bom”, avalia.
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Quem também estava com um sorriso no rosto era Sofia da Silva, 26 anos. A jovem trans foi personagem da Ponte em uma reportagem produzida há exatamente dois meses, que tratou sobre os problemas enfrentados pelas profissionais do sexo trans em meio à pandemia. Durante aquela entrevista, feita no local conhecido como fluxo, na região chamada de cracolândia, na Luz, região central, Sofia havia dito que estava sem dinheiro após os clientes desaparecem.
Sofia da Silva era uma das pessoas que ostentavam o cartão para se alimentar sem pagar R$ 1. Ao lado de Hugo Bela, 26, ela afirmou que conseguiu o benefício após apresentar seu RG para as assistentes sociais que estavam na rua Boa Vista. Bem mais tímida do que na primeira entrevista, após pegar o prato de comida e uma mexerica, ela apenas disse que a refeição “significa tudo”. Ao ir embora, disse estar trabalhando como auxiliar de limpeza e que não estava mais na Luz. “Estou no Glicério”, completou. Quando já deixavam o local, o atendente de fast food Hugo Bela, disse que a marmita do local “é um alimento saudável”.
Para se evitar situações desnecessárias, como mais aglomeração, os organizadores do Bom Prato formaram duas filas, sendo uma para pessoas com o cartão, que deveriam passar o código nele inserido em um aparelho manuseado por uma funcionária, e outra fila para quem pagaria pela refeição normalmente.
Comprovando que o local é visitado por todas os tipos de profissionais, o motorista de ônibus Enéas Soares, 46 anos, estava com dinheiro em uma das mãos. Uniformizado, ele contou que se alimenta no local há dois anos, desde que passou a trabalhar em uma linha que faz final nas proximidades.
Enquanto aguardava sua vez de pegar a refeição, ele disse que a “comida tem muita qualidade” e que recomenda para quem nunca comeu ir até o local. “A comida é ótima. Se aqui fosse R$ 10 e no bar R$ 1, eu preferia pagar R$ 10 aqui”.
Por volta do meio-dia, ou seja, duas horas depois do início da entrega das marmitas, 60 moradores de rua já haviam retirado sua refeição com o uso do cartão, segundo uma funcionária do local. A unidade da rua 25 de Março disponibiliza cerca de 1.800 marmitex por dia.
À Ponte, a deputada Erica Malunguinho disse que “a avaliação é positiva, uma vez que é uma política pública destinada à população que se encontra em situação de extrema vulnerabilidade socioeconômica, situação agravada nesse período de pandemia de coronavírus”.
Porém, a alimentação no Bom Prato, que é administrado pelo governo estadual, não é acumulativa, ou seja, “serão contempladas apenas aquelas pessoas que não estão acolhidas na rede socioassistencial, pois os equipamentos já fornecem alimentação para os usuários”, informou, em nota, a gestão Bruno Covas (PSDB).
Atualmente, de acordo com a Smads (Secretaria Municipal de Assistência e Desenvolvimento Social), são 12 mil pessoas que vivem nas ruas da cidade e não são atendidas por equipamentos públicos. Contudo, até a última terça-feira (3/6), o governo teria disponibilizado 8 mil cartões para a capital paulista, sendo 2.500 já entregues para moradores em situação de rua.
De acordo com o último censo da população de rua, cerca de 24 mil pessoas vivem nas ruas da cidade de São Paulo.
Questionada se o uso de um cartão constava em seu projeto, a parlamentar frisou que o documento que estabelece a forma como a gratuidade será implementada é uma resolução, que de acordo com a legislação, só pode ser apresentada pelo Executivo. “A nós compete, no entanto, acompanhar, fiscalizar a implementação e a operacionalidade da política”, pontuou.
Erica Malunguinho tem expectativa de que a inciativa seja aprimorada e atinja o maior número de pessoas em vulnerabilidade. “É importante ouvir as pessoas beneficiadas, para que, com celeridade, se atinja o fim último, que é prover alimentação de qualidade, de maneira gratuita, à população em situação de rua”.
“Entretanto, há que se levar em conta o equilíbrio, uma vez que é necessário estabelecer parâmetros para que a política pública chegue aos reais destinatários. É necessário que esse meio de verificação dos destinatários não inviabilize o efetivo recebimento do benefício”, concluiu a parlamentar.
Em nota, a Prefeitura de São Paulo informou que a medida tem duração inicial prevista até 31 de julho, mas poderá ser estendida enquanto durar o estado de calamidade pública decorrente da pandemia. A pasta confirma que, de fato, as pessoas que estão em algum aparelho socioassestencial do Estado não podem se beneficiar da gratuidade. “Poderão ser contempladas apenas aquelas pessoas que não estão acolhidas na rede socioassistencial, pois os equipamentos já fornecem alimentação para os usuários. As pessoas apresentarão o cartão em qualquer unidade do Bom Prato, com direito a três refeições diárias (café da manhã, almoço e jantar)”, diz a nota.