Nove propostas podem ajudar a repensar na construção das práticas de aprendizagem para não deixar ninguém para trás durante o isolamento e depois dele
Não há possibilidade de pensarmos o amanhã, mais próximo ou mais remoto, sem que nos achemos em processo permanente de “emersão” do hoje, “molhados” do tempo que vivemos, tocados por seus desafios, instigados por seus problemas, inseguros ante a insensatez que anuncia desastres, tomados de justa raiva em face das injustiças profundas que expressam, em níveis que causam assombro, a capacidade humana de transgressão da ética. Ou também, alentados por testemunhos de gratuita amorosidade à vida, que fortalecem, em nós, a necessária, mas às vezes combalida esperança.
Paulo Freire*
Neste momento em que todas e todos somos chamados a ficar em casa, nós, educadoras e educadores, temos sido desafiadas a dar continuidade aos processos de escolarização de estudantes em todo o território nacional. Para quem é docente ou gestor(a) vinculado à modalidade da educação especial, este momento parece pôr novamente na agenda o processo de inclusão escolar. Como fazer para não aprofundar as desigualdades e não deixar ninguém para trás?
Talvez a primeira dica seja não tentar fazer de conta que está tudo dentro do roteiro. Fato é que nossas rotinas foram abruptamente alteradas. Não considerar essa ruptura não nos ajudará a vivenciar novas experiências e experimentar ferramentas diferentes das habitualmente utilizadas.
Manter o desejo de ensinar tem requerido que nós, educadoras e educadores, organizemos ações que acrescentem possibilidades a execução do direito à educação e não simplesmente busquemos substituir ou reproduzir o dia-a-dia da sala de aula. Se não fizermos essa virada de chave, corremos o risco de nos relacionar apenas com as perdas, com o que não é mais factível. É preciso, então, construir um processo que assuma como pressuposto essa ruptura e que, ao mesmo tempo considere inaceitável a ampliação das desigualdades educacionais.
E esse não seria justamente o princípio básico da inclusão? Lidar com as diferenças humanas físicas, sensoriais, intelectuais e mentais como características e não como defeitos ou faltas. Trabalhar a docência e a gestão ao longo desse período de fechamento das escolas a partir da noção de diferença e não num estado imaginário como se fosse possível manter a tal da normalidade das coisas da vida é fundamental para que mantenhamos nossa capacidade de “inteligir o mundo, de comunicar o inteligido, de observar, de comparar, de decidir, de romper, de escolher, de valorar”, como diria Paulo Freire, para cumprir nossa função social alicerçados pela ética.
O tempo é outro. É tempo de parar, de (re)pensar, de (re)aprender e, também, de objetivar a manutenção dos vínculos e das relações humanas, matéria principal da prática educativa.
“Um ser humano histórico é um ser da busca. Esta busca se dá num tempo-espaço ou num tempo que implica espaço e num espaço temporalizado. A educação, embora fenômeno humano universal, varia de tempo e espaço a tempo-espaço. A educação tem historicidade”.
Paulo Freire*
Na atual condição a que estamos expostos, por exemplo, o interlocutor do processo educacional será sempre um representante da família (pai, mãe, tio, irmão ou irmã). Por não fazer parte do cotidiano da escolarização, não tem, e nem é esperado que tenha, conhecimentos técnicos e habilidades de um educador ou de uma educadora. Além disso, por seu vínculo pessoal ser de outra ordem, a relação vivenciada é, e deve ser, diferente da relação entre docente e estudante. Assim, faz sentido manter as expectativas de aprendizado, considerando a atual conjuntura?
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Estamos sendo convocados a colocar nosso desejo e nosso saber em prol dessa experiência atual. Nesse caminho, ganha destaque o compartilhar saberes. As nove propostas organizadas nesse texto partem do reconhecimento que tudo o que for proposto em termos educacionais devem alcançar todas e todos para as quais se destinam, ou seja, tem como prioridade absoluta que ninguém fique de fora, alijado de seu direito subjetivo à educação. Elas buscam contemplar a gestão da rede de ensino, a gestão escolar e a prática pedagógica sempre numa perspectiva dialógica e colaborativa.
As nove propostas são:
- Tomar decisões que tenham como centralidade as pessoas – estudantes, docentes e gestoras(es) escolares – e suas relações. Sabemos que a casa não substitui a escola e que apenas o envio de conteúdos reduz os objetivos educacionais. Sua garantia está tão mais assegurada quanto for mantido o diálogo entre princípios, que são inegociáveis, diretrizes de políticas públicas e saberes e práticas locais.
- Viabilizar e potencializar a participação ativa do conjunto de profissionais da educação que atua no território. Ignorar que as decisões são postas em ação em contextos diferentes e que educadores e educadoras são aquelas que têm competência para estar juntas nesse processo, pode aumentar significativamente sua possibilidade de fracasso e contribuir para aprofundar as desigualdades.
- Respeitar as condições emocionais, cognitivas e sociais de estudantes e das famílias. Elas podem ter sido bastante afetadas pelo isolamento social e suas consequências. É mais uma oportunidade de constituir ou estreitar laços entre família e educadoras e educadores no intuito de ampliar repertório significativo e com pertencimento;
- Utilizar recursos e metodologias de comunicação diversificadas. É importante ter no horizonte que a manutenção da relação e do vínculo entre docentes e entre docentes e estudantes é nosso foco prioritário;
- Organizar propostas para a manutenção de uma rotina de estudos, leituras e atividades para que a vontade e a curiosidade de aprender não sucumbam à distância imposta pelo isolamento social e fechamento temporário das escolas. O objetivo maior é manter viva a relação com o saber – a vontade de saber e de ensinar;
- Reorganizar sugestões não presenciais considerando bebês, crianças, adolescentes e jovens sem e com deficiências de maneira que ninguém fique para trás e possa usufruir plenamente do que, no momento, temos a oferecer.
- Elaborar propostas, gerais e de caráter individualizado, considerando ações de parceria entre toda equipe pedagógica. O momento convida à solidariedade e é, portanto, muito oportuno desenvolver mais estratégias de trabalho colaborativo entre gestão escolar, professor regente e professor do Atendimento Educacional Especializado (AEE).
- Acompanhar o desenvolvimento das atividades remotas, desde o acesso à proposta até sua feitura. Atividades remotas não devem ser confundidas com a ferramenta utilizada. Nossas respostas ao desafio devem ser tão diversificadas quanto a imperiosa necessidade de não deixar ninguém de fora.
- Dar retornos e devolutivas das atividades realizadas como forma de construir caminhos individuais dentro da proposta geral. Ao ter a oportunidade de olhar várias vezes para o mesmo trabalho, torna-se possível compreender cada vez melhor como interagirmos para mantermos os vínculos pessoais e com o conhecimento, entre nós, educadoras e educadores, e com estudantes.
Considerar o isolamento social a partir do conceito de barreira nos impulsiona a pensar em estratégias diferentes. Gera uma oportunidade de romper com a perspectiva do encaminhamento – aquela na qual as dificuldades educacionais são endereçadas para que outros profissionais, de preferência externos ao cotidiano escolar e investidos da insígnia de especialistas, apresentem soluções a serem aplicadas pelas gestoras(es) e educadoras(es).
Ao incentivar o movimento de reflexão colaborativa como instrumento potente e estratégia eficaz para uma atuação que inclui a todas e todos no processo, coloca a perspectiva da educação inclusiva como catalizadora de outras possibilidades de encontro. O que significa, por exemplo, dar centralidade ao que é produzido em cada escola pelo conjunto de educadoras e educadores. Esse movimento de participação plena e pertencimento aposta na consolidação das estratégias pedagógicas e de gestão a partir do que cada equipe conhece e realiza, das relações estabelecidas em cada unidade escolar possibilita escapar das armadilhas da “capacitação” ou “reciclagem” para atender às necessidades do modelo à distância proposto, repaginando a tão antiga ideia de transmissão do conhecimento.
Não deixar ninguém de fora é o princípio ético-político de uma educação de qualidade como aquela que garantindo o acesso, se efetiva como direito social. Nesse caminho, nossas dificuldades e nossos êxitos serão coletivos e singulares, posto que esboçam um quadro de preocupações comuns e possibilidades a serem partilhadas. Nele, estudantes não carecerão de avaliações sobre “desaprendizagens”, pois o fortalecimento dos laços sociais e a sensação de pertença não permitirá tal afirmação.
“Reconhecer que o sistema atual não inclui a todos, não basta. É necessário precisamente por causa deste reconhecimento lutar contra ele e não assumir a posição fatalista forjada pelo próprio sistema e de acordo com a qual “nada há que se fazer, a realidade é assim mesmo”. (…) O que não é possível é estar no mundo, com o mundo e com os outros, indiferentes a uma certa compreensão de por que fazemos o que fazemos, de a favor de que e de quem fazemos, de contra que e contra quem fazemos o que fazemos”.
Paulo Freire*
Liliane Garcez é psicóloga, administradora pública e mestra em educação; atua e milita nas áreas de educação e direitos humanos há mais de 20 anos. É idealizadora e articuladora do COLETIVXS.
Patrícia Aparecida David é professora e mestra em Distúrbios do Desenvolvimento. Leciona há mais de 23 anos no ensino público e atua no processo de inclusão educacional dos estudantes com deficiência. É uma das participantes do COLETIVXS.
*Citações de Paulo Freire extraídas do artigo “Denúncia, anúncio, profecia, utopia e sonho”, do livro “Pedagogia da Indignação: cartas pedagógicas e outros escritos” (Editora Unesp, 2000)