Artigo | Sem proteger crianças no isolamento, governos brincam de faz-de-conta

    Ideia de que é possível reproduzir em casa os espaços e práticas da educação infantil é ilusão

    A Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB) preconiza que “a educação infantil, primeira etapa da educação básica, tem como finalidade o desenvolvimento integral da criança de até cinco anos, em seus aspectos físico, psicológico, intelectual e social, complementando a ação da família e da comunidade”, diz o artigo 29. Já o artigo 5º das Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Infantil (DCNEI) define que “a Educação Infantil, primeira etapa da Educação Básica, é oferecida em creches e pré-escolas, as quais se caracterizam como espaços institucionais não domésticos que constituem estabelecimentos educacionais públicos ou privados que educam e cuidam de crianças de 0 a 5 anos de idade”.

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    Diante da pandemia da Covid-19 e da urgente necessidade de proteger as crianças e aqueles que convivem com elas de serem infectados, creches e pré-escolas foram fechadas. Com isso, redes de ensino públicas e privadas passaram a transferir as prerrogativas da educação formal de bebês e crianças – que deveria ser realizada em espaços não domésticos e cuja finalidade é o desenvolvimento integral dos educandos – para as próprias famílias e para o espaço doméstico.

    Para entender como fica a educação infantil em tempos de isolamento social, fomos ver como algumas redes municipais – responsáveis pela oferta da educação infantil pública no Brasil – estão lidando com os desafios colocados pela pandemia. Também conversamos com mais de 40 professoras que atuam nesta etapa educacional a respeito dessa nova experiência de trabalho remoto – um tipo improvisado de “ensino a distância” – com crianças tão pequenas.

    Muitas das professoras entrevistadas atuam em creches e pré-escolas de municípios pequenos, e fizeram os relatos com a condição de não serem identificadas por medo de retaliações. As histórias revelam que as “soluções” encaminhadas pelas redes públicas de ensino para a “continuidade” das atividades pedagógicas na educação infantil passam longe de priorizar a proteção integral de bebês e crianças preconizada pela LDB, pelo Estatuto da Criança e do Adolescente e pela Constituição Federal.

    “O coração aperta”

    No município de Arujá, na região metropolitana de São Paulo, a Circular nº 25 da Secretaria Municipal de Educação, do dia 09/4, frisa que as famílias devem se manter informadas através do site da Secretaria. O município disponibilizou um material online com orientações para as famílias “desenvolverem a rotina de estudos de nossos estudantes”.

    Para a educação infantil, o documento apresenta “um rol de sugestões de brincadeiras muito legais” que podem ser conduzidas em casa com as crianças e os bebês. Contudo, não é preciso se esforçar muito para perceber que, sem a formação e o conhecimento adequados, os adultos não conseguirão conduzir as brincadeiras com as crianças, que logo perderão o interesse. Em geral, elas preferem brincar com outras crianças, e não apenas com adultos. Além disso, ainda que as redes de ensino orientem as famílias a respeito das atividades com as crianças, muitas das professoras com quem conversamos explicam que a responsividade das famílias às demandas das redes municipais está muito aquém do desejado.

    “Pra eu seguir a ‘orientação’ da Secretaria Municipal de Educação (SME) e não ficar com falta no trabalho, tenho postado no grupo [de WhatsApp] várias brincadeiras. Amarelinha, forca, jogo da velha, brincadeira de mão, mímicas. Mas de 25 crianças, tivemos a devolutiva de duas famílias. Como sempre, a gente se vê diante das imposições burocráticas absurdas versus a realidade”, conta a professora Ana*.

    A rede municipal de Ribeirão Preto, no interior paulista, deixou a critério da escola decidir como os pais darão retorno das atividades desenvolvidas com seus filhos – registro de fotos, relatos, cartas, roda de conversa, etc. – mas “orienta” – na verdade, obriga – que os professores entreguem “o caderno de desenho para as crianças levarem para casa como instrumento de registro das atividades que poderão ser realizadas” e informem por escrito “a rotina da sala para os pais”. Em um anexo, a secretaria elenca uma série de atividades a serem desenvolvidas pelas famílias com as crianças, destacando-se:

    • Manter a rotina do bebê em casa o mais próximo possível da rotina que seguia na escola, principalmente quanto ao sono e alimentação.
    • Brincar com o bebê em ambientes acolhedores e desafiantes.
    • Passear com a criança pelos arredores da própria casa, realizando observação atenta. Por exemplo: procurar folhas de diferentes formas e tentar descobrir a qual planta pertencem, observar o som dos animais, identificar os demais elementos que compõem o ambiente percebendo pontos de referência e as pessoas de sua comunidade. Vale lembrar que esta atividade também é muito importante para crianças com deficiência, conforme as possibilidades de cada uma.

    Tais orientações expõem a profunda desconexão da rede municipal tanto com a realidade das famílias das crianças, que nem sempre podem oferecer “ambientes acolhedores e desafiantes” em suas próprias casas, quanto com os protocolos de isolamento social da Organização Mundial da Saúde e de sua própria Secretaria da Saúde, que não preveem saídas de “estudo do meio” nos arredores da casa. Até o dia 15 de abril, o município de Ribeirão Preto já havia registrado 53 casos de coronavírus e quatro mortes em decorrência da doença.

    Ainda que a orientação oficial da SME de Ribeirão Preto não pretendesse estimular as famílias a desobedecerem recomendações das autoridades de saúde pública, será que eles imaginam que todas as crianças de sua rede municipal vivem em casas com quintais ou com “arredores” verdejantes? E como seria possível manter a rotina do bebê “o mais próximo possível da rotina que seguia na escola” se a casa não é a escola e o ambiente domiciliar é frequentemente inadequado para isso? Não basta informar as famílias por escrito sobre como funciona a rotina da escola ou da sala de aula.

    Ao que tudo indica, um grande número de redes de ensino municipais vem recusando a hipótese de que as crianças possam brincar livremente ou, pelo menos, não tenham a necessidade de seguir horários tão rígidos enquanto estiverem em casa. Esperam que as famílias disponham de todas as condições – materiais, ambientais, pedagógicas e culturais – para tocarem adiante o complexo e extremamente mediado processo de educação formal de bebês e crianças. Enquanto isso, as professoras, que são quem de fato convivem com os pequenos, sabem que o que as crianças da escola pública precisam neste momento não são exercícios mecânicos para cumprir dias ou horas letivas.

    “Onde eu trabalho, a orientação foi de mandarmos atividades online para que os pais fizessem a impressão delas em casa. Ora, será que essas crianças têm internet em casa? Impressora? Achei falta de consciência social, pois muitas vezes as crianças vão à escola para comer. Em meio a toda confusão, eu não quis deixar para apenas o meio online e acabei imprimindo tudo na minha casa”, relata a professora Carla*.

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    Ana compartilha da mesma visão da colega docente. “A preocupação neste momento deveria ser se as crianças estão protegidas e se estão tendo o básico, como a alimentação. A secretaria cobra da gente esse faz-de-conta, mas não supre o básico. Quando penso nas minhas crianças, o coração aperta”, lamenta.

    Quando uma professora diz que “o coração aperta” e outra conta que imprimiu as atividades dos alunos em sua própria casa, utilizando seus próprios recursos por solidariedade às limitações materiais das famílias das crianças, chegamos à inevitável conclusão de que falta às redes de ensino aquilo que as professoras têm de sobra: sensibilidade e responsabilidade. Ao mesmo tempo em que reconhecem a importância de manter contato com as famílias por entenderem que a proteção integral de bebês e crianças deveria ser prioridade neste momento, elas também são cautelosas quanto à expectativa das redes de ensino de que seria possível reproduzir em casa os espaços e as práticas da educação infantil.

    “Nesse momento atípico, incentivar o contato online para esclarecer dúvidas e orientar as famílias sobre os cuidados e prevenção me parece bem válido, tendo em vista não apenas o fato de ser servidora pública, mas também pelo lado humano, de cuidarmos uns dos outros”, avalia a professora Laura*.

    “A gente sempre fala da importância de as crianças terem um descanso e aproveitarem com sua família, e agora temos que ficar mandando tarefinhas. Até parece castigo”, critica outra professora.

    Não obstante as professoras suspeitem que as famílias de seus alunos já venham enfrentando privações por conta da pandemia, as secretarias municipais de educação seguem nutrindo expectativas irreais a respeito do prosseguimento do ano letivo em creches e pré-escolas. Ignoram o conhecimento das educadoras e as especificidades da educação infantil e multiplicam mecanismos para o controle do tempo e do trabalho docente. A razão para isso não é, evidentemente, pedagógica ou relacionada ao seu dever constitucional de proteger integralmente bebês e crianças.

    “Preocupação em nos controlar é maior do que com as crianças”

    “Fora tudo isso, [devemos] assegurar todos os registros disso (fotos, prints das conversas em grupo e tudo o mais que possa comprovar essas orientações que enviamos aos pais). Disseram que essa medida é pra assegurar que está sendo contado como ‘dia letivo’ e não teremos que ‘repor’ essas semanas posteriormente”, conta a professora Carina*.

    A professora Luiza* explica que bem mesmo a Secretaria da Educação não possuía as ferramentas mínimas quando lançou a ideia das atividades online. “Ao que parece, a única preocupação é de que os dias sejam dados como letivos. Se o aluno vai aprender ou não, não importa!”.

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    Marina* leciona para crianças de um ano e dois meses e fala sobre o esquema adotado na escola onde trabalha. “A coordenadora pediu para que a gente enviasse os telefones do pai, mãe ou responsável. Ela disse que iria criar um grupo no WhatsApp para eles e enviaria as atividades. Temos que enviar duas atividades por semana, sendo que uma delas tem que ser de registro. Ninguém nem parou pra pensar se essas famílias têm os materiais em casa”.

    Na cidade de Cravinhos, região metropolitana de Ribeirão Preto, a Resolução n. 002 da Secretaria Municipal da Educação, de 23/3, explicita que os diretores de escola deverão “encaminhar todas as sextas-feiras ao supervisor educacional atividades didático-pedagógicas sugeridas e elaboradas pela equipe docente de sua unidade escolar”, e que cada professor, por sua vez, deverá “elaborar e entregar semanalmente ao diretor de escola atividades didático-pedagógicas em consonância com o planejamento, respeitando o conteúdo programático previsto neste interstício”. Representativas de um grande conjunto de redes municipais pelo país, tais orientações evidenciam que a obsessão pelo registro minucioso das atividades remotas tem um único fundamento: que elas sejam oficialmente contabilizadas como atividades letivas. A rede municipal de Cravinhos é ainda mais específica a respeito da forma e da compulsoriedade dos registros: “Cada classe deverá ter suas atividades individualizadas e encaminhadas aos alunos, e registradas pelo docente através de pendrive, Google Drive, YouTube, rede social, portfólios, semanários, etc. O não cumprimento dessas determinações implicará em sanções legais cabíveis”.

    Com objetivos semelhantes, em 26/3, o Departamento Municipal de Educação da cidade vizinha, Serra Azul, informou às famílias das crianças matriculadas na rede municipal a seguinte mensagem: “Visando garantir o cumprimento do currículo e a aprendizagem dos alunos, encaminharemos em data a ser definida, o Plano de atividades domiciliares, cuja realização será obrigatória. As atividades indicadas no Plano deverão ser entregues na escola, em data que será anunciada”.

    À primeira vista, medidas de controle desse tipo parecem reeditar práticas já corriqueiras nos sistemas de ensino. Contudo, a visível degradação das condições de trabalho das professoras, que agora são obrigadas a cumprir jornadas de trabalho estendidas e se veem compelidas a empregar os próprios recursos para resguardar sua privacidade, sugere que a cultura tecnocrática preexistente atinge novos patamares no contexto do isolamento.

    “Fomos ‘obrigadas’ a manter um contato via WhatsApp, ou seja, passar nosso número particular aos pais. Muitos eu nem ao menos conheço, pois não foram nem na primeira reunião de pais (afinal, o ano letivo estava apenas começando). Me senti muito invadida com isso. Então, eu e outras professoras compramos um novo chip e ativamos um outro número [de celular] simplesmente para essa “comunicação forçada” com os pais. Depois vão dizer que foi apenas uma sugestão, mas não foi. Fomos coagidas a fazer esses grupos com os pais”, relata Carina.

    “Além do grupo, frisaram que nos mantivéssemos online [durante] todo o período de trabalho, à disposição da Secretaria, dos pais ou do gestor”, diz outra professora, colega de Carina.

    Uma das professoras lembra ainda que o uso do WhatsApp para a comunicação entre professoras e famílias nem sempre foi bem recebido na escola municipal em que trabalha. “No ano passado, algumas professoras mantinham grupos de WhatsApp com as famílias. Foram orientadas (obrigadas) a cancelarem os grupos. No entanto, neste momento de pandemia, nas orientações enviadas pela SME, sugeriram grupos de WhatsApp como um dos meios de comunicação a serem utilizados. Quando se trata de iniciativa das professoras para estabelecer maior vínculo entre família e escola, é proibido. Para servir aos interesses da SME, é permitido”, queixa-se Laura.

    O temor das redes de ensino com os longos e difíceis períodos de reposição de aulas que sobrevirão a esses meses de isolamento social é compreensível. É legítimo que os gestores das redes públicas se preocupem com o impacto do replanejamento das atividades escolares nos cofres públicos e nos orçamentos municipais do ano que vem. Sem dúvida interessa saber como esse replanejamento será viabilizado na prática, dado que muitos professores trabalham em diversas escolas ou em diversas redes de ensino ao mesmo tempo (municipal, estadual e privada, por exemplo).

    No entanto, tais preocupações não podem se limitar a aspectos meramente econômicos, suplantando o dever do Estado de proteger bebês e crianças e de garantir o seu desenvolvimento integral. Talvez as prefeituras devessem ouvir mais as professoras.

    “O poder do brincar”

    Na cidade de São Paulo, a Secretaria Municipal de Educação anunciou, em 3/4, que “disponibilizará acesso a conteúdos pedagógicos a cerca de 1 milhão de estudantes” durante o período de isolamento, “propondo atividades específicas até para o ensino infantil”. De acordo com a notícia, “a iniciativa irá promover o contato com o conhecimento para 1 milhão de bebês, crianças e jovens que frequentam a rede municipal de ensino”.

    Para os que ainda se espantam com a inclusão de bebês em políticas de “acesso ao conhecimento”, nunca é demais lembrar que esse limite já foi ultrapassado há algum tempo. Cursos voltados à aplicação da Base Nacional Comum Curricular desde o berçário foram naturalizados no meio educacional, e propostas de testagem em massa de crianças pequenas escandalizam cada vez menos.

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    Para bebês e crianças com menos de seis anos, informa a prefeitura de São Paulo, “o material apresenta possibilidades de interação e brincadeiras que complementam e auxiliam nos processos de aprendizagem dos bebês e das crianças pequenas, além de indicações de leitura, montagem de brinquedos e jogos”. A SME informa que os alunos da rede receberão materiais impressos pelo correio nos endereços cadastrados no sistema de matrículas, mas parece estar de costas para as necessidades das famílias, pois condiciona esse envio ao preenchimento de um formulário para a “atualização” de endereços que já constam do cadastro da Prefeitura.

    Longo e de difícil preenchimento, o formulário Google inclui como campo obrigatório a data de nascimento da mãe, que sequer é solicitada para a realização da matrícula. Iniciadas as “aulas”, como era de se esperar, apenas 15% das famílias havia atualizado o endereço para receber os materiais. No dia 30/3, a Prefeitura de São Paulo também disponibilizou um caderno com “Orientações às famílias dos estudantes das redes estadual e municipal de São Paulo”, produzido em conjunto com a rede estadual paulista, e que traz um apanhado de conceitos sobre o desenvolvimento infantil, a importância das interações entre as crianças, das brincadeiras e da contação de histórias. Sugere um rol de 36 “brincadeiras muito legais”, sem no entanto explicar do que se trata cada uma delas. Curiosamente, as brincadeiras sugeridas pela prefeitura de São Paulo são as mesmas que aparecem no material da prefeitura de Arujá. Assim descobrimos que o “rol de brincadeiras” foi, na verdade, extraído dos cadernos para a educação infantil produzidos pelo Governo de São Paulo.

    Tela de celular com texto preto sobre fundo branco

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    “Um rol de brincadeiras muito legais”: tão legais que podem ser encontradas aqui (material da SME Arujá/SP) e aqui (material da SME São Paulo)

    Em vez de recorrerem às professoras da educação infantil, especialistas nesta etapa de ensino e que conhecem as famílias de seus alunos, muitas redes municipais do estado de São Paulo preferem replicar as “orientações” oferecidas pelo governo estadual, ou seja, aproveitar trechos de materiais já existentes e produzidos para utilização em contextos diferentes. Diante das especificidades e das necessidades do momento, não há justificativa pedagógica que sustente essa opção.

    Sobra a justificativa econômica, que de resto motiva todas as políticas de centralização curricular do país. A adoção de orientações pasteurizadas certamente custa menos às prefeituras do que envolver educadores na produção de materiais e orientações voltados às necessidades específicas da rede de ensino e das comunidades escolares.

    Apenas três páginas do caderno conjunto da Prefeitura de São Paulo e do governo paulista são dedicadas à educação infantil, e uma dessas páginas traz um conjunto de links onde as famílias poderão encontrar mais informações. Uma das fontes indicadas é o site “Tempojunto”, iniciativa nascida “da consciência que é possível melhorar a qualidade do tempo com os filhos e contribuir para o desenvolvimento das crianças em todo seu potencial”.

    A página traz uma série de atividades gratuitas, mas também uma “lojinha” onde podem ser adquiridos produtos para brincar com as crianças de um jeito mais especial. As proprietárias da marca também vendem palestras para diferentes públicos. Sobre a palestra intitulada “Poder do brincar como proposta para marcas” elas explicam que a gente troca o chapéu da maternidade pelo chapéu de executivas de grandes contas e empresas, na área de publicidade, marketing e comunicação. E mostramos como é possível que as marcas explorem o brincar para seus clientes e como a brincadeira pode contribuir para gerar valor agregado ao público interno de uma empresa.

    Mulher segurando uma placa com texto preto sobre fundo branco

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    Patrícia Marinho, publicitária e sócia da “Tempojunto”, apresenta a palestra “A importância do brincar” | Foto: Divulgação

    O caderno também indica o site da Fundação Maria Cecília Souto Vidigal (FMCSV) como fonte de informação para as famílias se aprimorarem no cuidado das crianças. Com destacada atuação no “nicho” da primeira infância, a FMCSV apoia iniciativas de educação doméstica e desenvolve estratégias para “negócios de impacto” e empreendedorismo social voltados a soluções de baixo custo para creches e pré-escolas. Se a pandemia ceifará muitas vidas e provocará uma crise econômica de difícil superação, ela também abre oportunidades de negócio para empresários e para os endinheirados da filantropia educacional com entrada nas redes públicas de ensino.

    No mais, a rede municipal de São Paulo trabalha com as mesmas premissas de outros municípios. A sua Instrução Normativa SME nº 15, de 8/4, também aposta que as famílias, uma vez apoiadas pelo material impresso recebido em casa e orientadas pelas escolas quanto aos “objetivos a serem alcançados a cada semana”, terão a capacidade de “assegurar a aprendizagem dos estudantes durante o período de suspensão do atendimento presencial”. A rede também oferecerá uma plataforma digital para que professores e estudantes possam interagir.

    Em 18/3, a Secretaria da Educação do Estado de São Paulo (Seduc-SP) homologou a Deliberação nº 177/2020 do Conselho Estadual de Educação de São Paulo (CEE-SP), que fixa normas para a reorganização dos calendários escolares devido à pandemia. Uma das prioridades definidas para essa reorganização é “respeitar as especificidades, possibilidades e necessidades dos bebês e das crianças em seus processos de desenvolvimento e aprendizagem”. Focalizada nas etapas do ensino fundamental e médio, a resolução menciona a educação infantil, mas não prevê explicitamente a adoção de atividades remotas para bebês e crianças. Passado quase um mês, o CEE-SP aprovou a Indicação nº 193, de 15/4, “explicando” como os efeitos da norma anterior seriam aplicáveis à educação infantil. A razão para a produção dessa norma complementar é um tanto óbvia: “redes públicas de ensino e escolas privadas de Educação infantil resolveram se antecipar e programar uma série de orientações para professores e famílias na tentativa de preencher parte do tempo ocioso destas crianças”.

    O CEE-SP “liberou” as redes de ensino para contabilizarem, também na educação infantil, as atividades realizadas em casa como horas letivas. E nem teria como fazer diferente, pois as escolas privadas e as redes municipais já vinham interpretando as normas ao seu modo e investindo na produção de “registros”. A pacificação do vácuo normativo se deu assim:

    Para que o tempo dedicado a estas atividades – sempre propostas por meios diversificados para as crianças, com orientações de acompanhamento das famílias – possa ser contabilizado dentro da carga horária mínima anual, elas deverão ser devidamente registradas e documentadas pela escola.

    Atrasado no debate, o Conselho Nacional de Educação (CNE) também aprovará parecer com recomendações às redes de ensino. Uma das contribuições do órgão será nomear o improviso, distinguindo “Educação a Distância”, modalidade de ensino bem regulamentada, das “atividades pedagógicas não presenciais” ora implantadas. Nada disso, porém, afasta as dificuldades e consequências relatadas pelas professoras com quem conversamos. O que farão as redes públicas de ensino quando, ao final dessa experiência de ensino remoto improvisado, for preciso lidar com os prejuízos de aprendizagem e de interação das crianças? Ignorarão os problemas por razões orçamentárias? Reprovarão as crianças? Culparão as famílias que não fizeram um bom trabalho?

    Na contramão do improviso, o município de Rio Claro, no interior de São Paulo, publicou comunicado no dia 14/4 esclarecendo que “não faz nenhum sentido pedagógico propor atividades a distância” na sua rede de ensino, em que a metade dos estudantes são bebês e crianças pequenas. A Secretaria da Educação afirma que “não é possível estabelecer uma política educacional segregacionista, sob nenhuma circunstância”. Compromete-se a produzir uma solução coletiva e negociada com os atores escolares para recuperar, com qualidade, o período de suspensão das aulas, e recomenda que as famílias aproveitem o período de isolamento para fortalecer os vínculos afetivos com as crianças. A Prefeitura de Rio Claro fundamenta a sua “estranha” decisão no inciso I do artigo 206 da Constituição, que prevê “igualdade de condições para o acesso e permanência na escola”.

    “Tempojunto” de verdade

    No dia 8/3, cinco dias antes do início do fechamento das creches e escolas públicas no estado de São Paulo, uma Ação Civil Pública proposta pela Defensoria Pública do Estado de São Paulo e por promotores ligados ao Grupo de Atuação Especial de Educação da Capital (Geduc), do Ministério Público do Estado de São Paulo, solicitou a extensão da alimentação escolar a todos os alunos das redes estadual e do município de São Paulo.

    Os proponentes da ação previam que a pandemia colocaria em situação de vulnerabilidade um número de famílias muito maior que o daquelas que já vivem em condições de extrema pobreza ou que já são beneficiárias de programas de transferência de renda. A liminar foi concedida no dia 08 de abril, mas cassada poucos dias depois. Um dos argumentos utilizados para a cassação é o de que “o fornecimento de alimentação aos alunos da rede pública não é parte do dever estatal pedagógico de assegurar educação escolar, nem é financiado pelos recursos orçamentários destinados a manutenção e desenvolvimento do ensino”.

    A decisão ainda afirma que a merenda escolar tem fornecimento previsto na rede pública de ensino nos dias letivos, tanto que o valor destinado a tal benefício suplementar é estabelecido segundo o número de dias letivos do ano. Nos períodos de férias ou de qualquer outra modalidade de suspensão da atividade escolar, os alunos nada recebem a esse título.

    Em outras palavras, os alunos que têm fome precisarão voltar para a escola. O desembargador sustenta que não cabe ao Poder Judiciário interferir nas medidas do Executivo em relação ao combate à pandemia, afirmando ainda que não foram poucas as providências adotadas pelo Governo do Estado de São Paulo e pelo Município de São Paulo para mitigação de danos provocados pela pandemia da Covid-19, tudo com vistas a evitar o contágio, a preservação da vida e da economia, ameaçadas de continuidade caso mantida a liminar deferida.

    Por outro lado, também seria possível dizer que, caso a liminar fosse mantida, estaríamos mais próximos de proteger da fome milhões de crianças, bebês e suas famílias.

    É evidente que as redes públicas de ensino deveriam oferecer materiais e orientações qualificadas e oportunizar a preservação dos vínculos entre as professoras e as famílias dos alunos. Para além dos conteúdos e do cumprimento de calendários letivos, isso ajuda a reforçar a função social da escola no momento em que ela é mais necessária.

    Entretanto, a possibilidade de que as famílias possam desempenhar temporariamente alguns dos papéis relacionados à educação formal das crianças depende da criação de condições efetivas para o aumento do tempo e da qualidade do convívio em casa. Esse “Tempojunto” de verdade – sem lojinha, sem coaching e sem as ilusões da classe média branca e assalariada – demanda políticas sociais de renda (por transferência direta ou pela manutenção dos empregos), de alimentação e de acesso a bens públicos (água, saneamento, coleta de lixo, eletricidade, internet) muito mais robustas do que as que já existem ou que foram implantadas no último mês.

    Ainda assim, nesses tempos terríveis, mesmo que um amplo sistema de proteção social de fato existisse, seria um bônus se algumas famílias conseguissem assumir parte das atribuições das escolas e das obrigações do Estado para com a educação pública, especialmente dos mais jovens.

    Leia o Manifesto Ensino a distância na Educação Infantil, não!

    Bianca Correa é doutora em Educação e professora da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto da USP, na área de Políticas e Práticas da Educação Infantil, onde também integra o Programa de Pós-Graduação em Educação. 

    Fernando Cássio é doutor em Ciências e professor da Universidade Federal do ABC. Participa da Rede Escola Pública e Universidade e da Campanha Nacional pelo Direito à Educação. Organizou o livro Educação contra a barbárie: por escolas democráticas e pela liberdade de ensinar (Boitempo, 2019).

    (*) Os nomes são fictícios atendendo ao pedido das entrevistadas que temem sofrer represálias.

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