Defensores de direitos humanos se recusam a participar de evento ao lado da Defenda PM, que persegue jornalistas; ex-ouvidor fala em ‘indício de prevaricação’
A Ouvidoria da Polícia de São Paulo convidou para uma reunião sobre a violência policial no estado a Defenda PM, entidade que tenta livrar policiais que matam civis de processos. No governo João Doria (PSDB), as polícias batem recorde de mortes, com 255 mortes em abril deste ano, a maioria (64%) de pessoas negras.
Além disso, anunciou como confirmados para o encontro entidades e defensores de direitos humanos que não haviam feito a confirmação ou sequer tinham sido convidados.
O encontro estava marcado para as 15h desta sexta-feira (19/6), inicialmente na sede da Ouvidoria, no centro da cidade de São Paulo. O secretário da Segurança Pública, general João Camilo Pires de Campos, e comandante da PM, Fernando Alencar, estavam confirmados na reunião. Na manhã desta sexta-feira (19/6), o órgão repassou o debate para uma sessão online.
Às 14h06, menos de uma hora antes da realização do encontro, a assessoria de imprensa da Ouvidoria informou sobre o adiamento do debate “por solicitação da Comissão de Direitos Humanos da OAB-SP e do Sindicato dos Advogados do Estado de São Paulo”, diz texto assinado pelo ouvidor Elizeu Soares Lopes.
“O novo encontro, em data a ser oportunamente informada, será realizada virtualmente e terá como pauta ‘A violência policial em tempos de pandemia em São Paulo'”, diz o texto, elencando o ouvidor a Comissão de Direitos Humanos da OAB-SP e o Sindicato dos Advogados do Estado de São Paulo como mediadores das conversas.
“Ele [Elizeu] me chamou e disse que seria uma reunião simples, com poucas pessoas”, explica. “Qual o papel dele montando reunião com secretário, comandante da Polícia Militar e sociedade civil?”, questiona Dimitri Sales, presidente do Condepe (Conselho Estadual de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana).
A organização SOS Racismo recebeu ligação direta do ouvidor Elizeu Soares Lopes, que teria demonstrado preocupação com a “escalada de violência policial”. De acordo com Cláudio Silva, coordenador do grupo, Elizeu falou sobre as presenças confirmadas na reunião e que gostaria de contar com a sociedade civil representada por movimentos sociais de direitos humanos.
Cláudio se surpreendeu quando soube da inclusão da Defenda PM no debate. “Achei que faríamos uma reunião pra refletir com o secretário os problemas da PM, especialmente em relação ao racismo, violência contra negros e periféricos, etc. Não acho que cabe nessa reunião nenhuma entidade de defesa do aparato estatal”, afirma.
“Não quero ir numa reunião de defesa da PM. Eu sou defensor de direitos humanos, não posso fechar com essa perspectiva. Porque o bandido bom e morto, na perspectiva deles, pode ser eu. Nós, negros, estamos sendo mortos mesmo sem praticar crimes, nosso crime, para essas pessoas, é ser preto, pobre e periférico ou favelado”, critica.
A Rede de Proteção e Resistência ao Genocídio era uma que estava na lista de entidades confirmadas, mas não estava sabendo do debate.
Em nota, a Rede manifestou sua “indignação” com a forma de organização do encontro. “A Rede não foi informada da reunião, embora conste, na divulgação do evento, como um das entidades confirmadas para participação”, afirma.
O grupo negou sua presença no debate, ainda que “julguemos ser de suma importância a ampliação do diálogo nesse momento em que os índices de violência policial vêm aumentando”.
“Ressaltamos que continuaremos trabalhando em parceria com a Ouvidoria e apoiaremos as iniciativas que tenham como objetivo a construção de uma sociedade mais justa e um Estado que respeite os direitos dos cidadãos, desde que os devidos protocolos sejam seguidos”, diz a nota.
A conversa é organizada por iniciativa do ouvidor Elizeu Soares Lopes, que assumiu o cargo em fevereiro deste ano. Na sua primeira entrevista à Ponte, Lopes destacou que muitos ativistas “talvez não saibam que a polícia se preocupa com os direitos humanos”.
A Ponte revelou que, em abril, a Defenda PM moveu uma ação para arquivar inquérito da Polícia Civil sobre a morte de 10 pessoas em São José do Rio Preto. As mortes ocorreram em apenas duas ações. Policiais militares do Baep (Batalhão de Operações Especiais), batalhão considerado “padrão Rota”, uma referência à tropa mais letal da PM paulista, são investigados pelas mortes. O Ministério Público rechaçou a iniciativa e a Justiça negou o arquivamento.
Além de tentar livrar policiais suspeitos de mortes, a entidade persegue jornalistas críticos à atuação policial. A Defenda acionou na Justiça quatro cartunistas do jornal Folha de São Paulo por publicarem charges críticas à corporação.
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Segundo o grupo, as ilustrações seriam “constrangedoras” a ela e seus aproximadamente 2 mil associados. “A intenção de quem faz isso é intimidar a imprensa”, avalia o advogado do Grupo Folha, Luís Francisco de Carvalho Filho.
A Defenda PM é apoiadora do presidente Jair Bolsonaro (sem partido) e tem entre seus associados Major Olímpio (PSL), senador por São Paulo. Elias Miler da Silva, presidente da associação, é assessor parlamentar de Olímpio.
Para ex-ouvidor, Elizeu está prevaricando
Segundo o antecessor de Elizeu Soares no comando da Ouvidoria, Benedito Mariano, o evento mostra uma nova atuação do órgão. “O atual ouvidor está confundindo órgão de controle da atividade policial com a função de porta- voz da SSP”, define. Mariano prossegue destacando que “não foi aleatória” a escolha do governador Doria em colocar Lopes no comando da Ouvidoria.
“Há indícios de que o ouvidor atual está prevaricando. Ele precisa ler a lei complementar 826/97 que instituiu por lei a Ouvidoria da Polícia”, critica o sociólogo. Entre as atribuições está receber denúncias sobre atos arbitrários de policiais, sugestões sobre o funcionamento dos serviços policiais, entre outros.
Prevaricar é crime previsto no artigo 319 do Código Penal e é definido como “deixar de praticar ato de ofício, ou praticá-lo contra disposição expressa de lei, para satisfazer interesse ou sentimento pessoal”. Ou seja, é quando o funcionário público, indevidamente, deixa de realizar obrigações de seu cargo e atua deliberadamente diferente do que é esperado pela sua função. A pena prevista é detenção, de três meses a um ano, além de multa.
“Estamos de cara com atitudes do ouvidor há um tempo”, resume Rildo Marques de Oliveira, membro da coordenação estadual do MNDH (Movimento Nacional de Direitos Humanos), mais um órgão que não foi convidado.
Segundo ele, a ordem do processo está equivocada, pois o secretário da Segurança Pública deveria aparecer quando convocado pela sociedade, não o contrário, como aparenta estar acontecendo nesta reunião.
“Tem uma série de abusos desde Paraisópolis [quando 9 jovens morreram pisoteados em ação da PM] e só piorou de lá para cá. Ouvidor vai fazer a reunião para ficar bonito, dizer que controla a sociedade civil?”, questiona Oliveira.
Outras entidades, como o Sou da Paz, foram convidadas para o encontro e confirmaram a participação. Bruno Langeani, gerente do Instituto, explicou que eles ainda não conseguiram uma audiência com o ouvidor desde sua posse, há 5 meses. “Estou querendo ver o que vem e, se tivermos fala, podermos pontuar nossas críticas”, afirma.
A Ponte também confirmou o convite e presença de representantes do IBCCRIM (Instituto Brasileiro de Ciências Criminais) na reunião.
Assessor criticou especialista
O Fórum Brasileiro de Segurança Pública também está entre os confirmados. Contudo, uma pessoa tratava do assunto com o assessor da Ouvidoria e recebeu críticas antes mesmo de definirem quem representaria o Fórum no debate.
“Acreditamos que o papel da Ouvidoria é o de mediar essa relação institucional para permitir um canal de dialogo producente”, disse o assessor de Elizeu, Alberto Saraiva.
Em seguida, Saraiva atacou um posicionamento do professor da Fundação Getúlio Vargas Rafael Alcadipani, especialista em segurança pública e integrante do Fórum.
Em seu Twitter, Alcadipani tratou de coletiva em que Elizeu Soares Lopes dividiu mesa com o governador João Doria, o secretário da Segurança Pública, general João Camilo Pires de Campos, e o secretário-executivo da PM, Coronel Álvaro Camilo.
“Isso sugere que a Ouvidoria está enfraquecida e o ouvidor parece se comportar como um porta-voz da polícia e desmoraliza o órgão de controle social”, resumiu o professor.
Para o assessor do ouvidor, o comentário vai contra a ideia de ter um “canal de diálogo producente”. A assessoria de imprensa da Ouvidoria explicou que houve um erro no convite, que foi enviado apenas “para poucos repórteres se programarem. “Não é nada oficial, amanhã sai o aviso de pauta”, explica a assessoria.
A Ponte questionou o motivo de ela não ter sido convidada e qual critério de seleção dos jornalistas convidados. Segundo a assessoria, não houve seleção. “De qualquer maneira, o ouvidor falou ontem [quarta-feira] em coletiva transmitida ao vivo pela TV e redes sociais do governo do Estado que haveria essa reunião”, afirma.
A reportagem também questionou o fato de parte dos convidados afirmarem não terem dado sinal positivo de sua presença e outros de sequer terem sido chamados, ainda que seus nomes estivessem na lista. A assessoria explicou que foi um erro ao colocar “confirmados” onde deveria constar “convidados”. “Não era nada oficial, apenas um aviso para o pessoal se preparar”, explica a assessoria.
ERRATA: Ao contrário do que foi informado, Benedito Mariano não imputou crime ao atual ouvidor e, sim, levantou uma possibilidade de avaliar as ações de Elizeu como eventual prevaricação.
Atualização às 14h13 de sexta-feira (19/6) para informar sobre o adiamento do debate na Ouvidoria.