Justiça militar acata pedido de entidade que tenta livrar PMs de investigações ao ver “inconstitucionalidade” em regra sobre competência dada a agentes
Desde 2015, uma recomendação da Secretaria da Segurança Pública de São Paulo coloca a Polícia Civil como responsável por coletar provas de mortes cometidos por policiais militares. Na quinta-feira (9/7), o juiz militar Ronaldo João Roth, do Tribunal de Justiça Militar de São Paulo, considerou que a decisão contraria leis militares e abriu possibilidade para oficiais da PM também recolherem estas mesmas provas. A decisão abre espaço para conflitos entre as corporações.
Roth analisou no tribunal um pedido feito pela Defenda PM, entidade que promete livrar de investigações policiais que matarem em serviço, como já contado pela Ponte. O coletivo pedia que a resolução da Secretaria da Segurança Pública de SP nº 40, de 2015, fosse considerada ilegal. Inclui entre as ações irregulares a coleta de provas envolvendo mortes de civis, as chamadas “morte em decorrência de intervenção policial”.
O texto da recomendação, feita pelo então secretário estadual da segurança e hoje ministro do Supremo Tribunal Federal, Alexandre de Moraes, definia que a apreensão de provas em mortes cometidas por PMs deveria ser feita exclusivamente pelo DHPP (Departamento de Homicídios e Proteção à Pessoa), da Polícia Civil, e não mais por oficiais da PM, como ocorria anteriormente.
A Defenda PM considera a determinação uma afronta ao Código de Processo Militar quando ignora o artigo 9º. A lei descreve os crimes militares em tempos de paz, com o inciso 2 contextualizando a prática ao cometimento “por militar em serviço ou atuando em razão da função”. Sendo assim, a preservação do local e coleta das provas ficaria a cargo de policiais militares superiores e não da Polícia Civil.
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No TJM, a entidade policial argumentou que a resolução da SSP, ao repassar tal atribuição a um delegado de polícia (integrante da Polícia Civil), vai contra as leis militares do país, legislação acima de determinações regionais, como resoluções de secretarias, sustenta. Usa como tese que os oficiais da Polícia Militar, detentores do poder de polícia judiciária militar, devem ser os responsáveis pela coleta de provas.
O juiz militar Ronaldo João Roth acolheu o entendimento e concedeu o habeas corpus, liberando todos os PMs de São Paulo a descumprirem a recomendação da SSP. Considera o texto inconstitucional por dar diretrizes diferentes do Código Penal Militar. O juiz cita o artigo 12 do Código de Processo Penal Militar, cuja alínea B determina como função do oficial da PM “apreender os instrumentos e todos os objetos que tenham relação com o fato” ao se constatar um crime militar.
Roth converge com a Defenda. “Em outras palavras, a Resolução SSP 40/15 não se aplica aos procedimentos legais disciplinados no CPPM (Código de Processo Penal Militar), em especial não esvazia, não altera e muito menos revoga o artigo 12”, afirma. Ainda define como “ilegal” e “abusivo” a possibilidade de punir policiais que descumpram a resolução. Conforme a resolução, os PMs que não a seguirem estão sujeitos a responder por desobediência.
Dúvidas sobre a aplicação
A decisão de Roth tem compreensões diferentes. Integrantes da Justiça e da Polícia Civil consideram totalmente descabida, enquanto policiais militares da reserva classificam como estritamente dentro da lei. O ponto em comum é de que pode haver impacto na prática, tanto na integridade das investigações – por serem feitas no mesmo órgão investigado pelo crime – quanto no conflito de competências.
Presidenta do Sindpesp (Sindicato dos Delegados de Polícia do Estado de São Paulo), Raquel Kobashi define a decisão como “improcedente e infundada” e fora da jurisdição do Tribunal. Para ela, a avaliação deveria ser feita pela Justiça comum e não pela militar. “O cidadão que sofre a violência praticada por policial militar merece ser acolhido por uma instituição de Estado e uma autoridade imparcial, quais sejam, as Polícias Civis e Delegado de Polícia”, argumenta.
Segundo a delegada, os policiais militares que seguirem a autorização do juiz podem responder por fraude processual (pena de entre 3 meses e 2 ano de prisão), coação no curso do processo (reclusão, de um a quatro anos) e usurpação de função pública (dois a cinco anos de reclusão). “Se fizerem estarão praticando crimes e assim deverão ser responsabilizados”, define.
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Além disso, Kobashi volta a questionar o fato de policiais militares participarem de processos investigativos de mortes cometidas por outros policiais militares, nem que apenas parcialmente. Ressalta caber à Justiça Comum, por meio do Tribunal do Júri, julgar mortes de civis cometidas por PMs.
“Não é cabível, por exemplo, que o policial militar que pratica tortura contra um civil seja julgado pela ‘sua’ justiça militar”, diz, questionando a independência de uma eventual investigação. “A PM precisa se preocupar mais com a prevenção criminal, algo que em São Paulo deixa muito a desejar”, critica.
A desembargadora Ivana David, do Tribunal de Justiça de São Paulo, tem a mesma linha de raciocínio em relação ao órgão responsável pela avaliação do texto. Para ela, não é “da competência do referido Tribunal [militar] analisar atos normativos que não tenham sido emanados de órgãos militares”, também ao se referir à resolução da SSP paulista.
Ivana cita o inciso 4º do artigo 125 da Constituição, sobre a organização de poderes. O texto cita que é competência dos tribunais militares julgar crimes, “ressalvada a competência do júri quando a vítima for civil”. Em casos assim o julgamento é da Justiça Comum. Ao incluir na lista as mortes cometidas por PMs, David nega ser da responsabilidade da Justiça militar determinar quem participa do processo investigatório.
“A Constituição Federal e leis ordinárias ensinam que a competência para apurar e julgar crime de homicídio doloso praticado por policial militar em serviço contra civil é da Polícia Civil e da Justiça Estadual”, define. Sobre o risco de delegados e oficias da PM conflitarem competências em uma mesma apuração, um com base na resolução da secretaria e outro com a decisão do TJM, a desembargadora define que “a SSP deve adequar a situação nas ruas”.
Segundo o tenente-coronel aposentado da PM paulista Adilson Paes de Souza, o juiz Roth se baseou exclusivamente nas leis militares para liberar os PMs de coletarem provas e preservarem cenas de crimes cometidos por policiais. Segundo ele, a decisão tem sentido, sim.
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“O artigo 9º do Código Penal Militar fala que é crime militar aquele cometido pela pessoa em serviço ou atuando em razão da função. Se matar em serviço, seguindo a lei, é um crime militar”, pondera. Neste ponto de vista, caberia exatamente ao Tribunal de Justiça Militar ponderar sobre os atores responsáveis e seus papéis no processo de investigação.
A dúvida de Adilson em relação à determinação de Roth está na amplitude da decisão. Segundo ele, existe a possibilidade de o habeas corpus do juiz militar gerar reações de advogados que defendam PMs. Tanto agora quanto no passado. “Os defensores podem considerar que as investigações e coletas de provas feitas durante a validade da resolução como ações feitas por uma autoridade que não tinha competência para tal ato”, cogita. Dessa forma o processo poderia ser invalidado ou, então, reanalisado.
Para além disso, questiona se a decisão será colocada em prática pelos PMs em São Paulo. Conforme apurado pela Ponte, o secretário-executivo da PM paulista, coronel Álvaro Camilo, enviou mensagem ao secretário executivo da Polícia Civil, Alberto Yousseff, sobre o tema e mantendo o que está posto na prática.
A mensagem creditada a Camilo diz que a tropa seguirá a resolução nº40 de 2015 mesmo com a decisão do TJM proferida nesta sexta-feira (10/7). Ainda define que a decisão de Roth trata de uma “isolada iniciativa, sem o conhecimento do Comando da Polícia Militar”.
O tenente-coronel Adilson e a desembargadora Ivana consideram que a decisão abrirá brecha para que policiais sigam a determinação e somente oficiais da PM recolham provas de mortes cometidas por policiais militares em serviço.
“Sim [abre espaço para o uso na prática]. Aí, caso a caso, caberá à Justiça Comum avocar os inquéritos policiais”, afirma a magistrada. “A possibilidade é real, tão real quanto o impacto a ser analisado em ações anteriores feitas com base na resolução”, diz Adilson.
A Ponte questionou a SSP sobre a resolução e aguarda posicionamento. A PM afirmou que “avalia a adoção das medidas jurídicas cabíveis em relação a decisão”. Já o Ministério Público de São Paulo preferiu não se posicionar. “O MPSP informa que, neste momento, está avaliando os fundamentos da decisão do Tribunal de Justiça Militar e o seu alcance”, diz nota enviada pela assessoria de imprensa do órgão.