Pesquisa da Defensoria Pública mostra que 8 a cada 10 pessoas que relatam agressões no momento da prisão são negras; Justiça tem mais chance de dar liberdade a pessoas brancas
Estudo da Defensoria Pública do Rio de Janeiro constatou racismo nas prisões feitas no estado. A cada dez pessoas presas em flagrante, oito delas são negras. O mesmo percentual equivale para a raça das pessoas que relataram algum tipo de violência no momento da prisão: 80% das vítimas são negras (pretas ou pardas).
A pesquisa tem como base entrevistas feitas com pessoas presas antes de elas passarem pelas audiências de custódia, entre setembro de 2017 e setembro de 2019. Prevista pelo Conselho Nacional de Justiça, esse tipo de audiência exige que uma pessoa seja apresentada ao juiz em até 24 horas após sua prisão. A Defensoria ouviu 23.497 pessoas que foram presas no período estudado.
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Do total, 16.364 presos se identificaram como negros (79%), enquanto 4.698 se classificaram como brancos (22%). O perfil é predominantemente de homens cisgênero (93,6%), com 20.029 entrevistados, enquanto há 1.283 mulheres cis, 38 mulheres transexuais e 54 de homens trans.
Uma das funções exercidas pelas audiências de custódia é o juiz identificar se houve tortura no momento da prisão das pessoas. Das 23.497 entrevistadas, 8.490 relataram terem sido agredidas, com 80,7% delas sendo de pele negra ou parda.
Sobre as agressões, 60,5% dos que conseguiram identificar os autores apontaram a PMERJ (Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro) como seus algozes. Foram 3.380 casos de agressões dos PMs. Já 30% dos relatos, ou 1.679 das agressões ou tentativas de agressões, partiram de populares, pessoas comuns, e a Polícia Civil apareceu em 4,9% das agressões, 272 vezes.
Mais do que maioria entre os presos em flagrante e entre os agredidos, os negros também têm menos chance de receber liberdade nas audiências. Entre os brancos, 30,8% dos entrevistados responderam aos processos em liberdade, enquanto entre os negros, 27,5%.
Segundo Caroline Tassara, Defensora Pública do Estado do Rio de Janeiro e responsável por coordenar o Núcleo de Audiências de Custódia, o estudo evidencia um “racismo estrutural, institucionalizado”
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“Se oito em cada dez presos são pretos ou pardos, isso choca. A população que se declara preta ou parda no RJ é de 54%, isso mostra a desproporção muito grande na porta de entrada do sistema prisional”, afirma a especialista.
A defensora considera haver um histórico desde a “fundação do Estado brasileiro” em criminalizar corpos negros. Um dos modos de se visualizar essa situação envolve o trabalho das polícias.
“O racismo institucional cria um imaginário, estereótipo do criminoso, concretizado no momento das prisões em flagrante”, afirma, citando a maior quantidade de agressões contra negros. “O que é admitido sobre o corpo preto é diferente do que é admitido com o corpo branco e precisamos denunciar isso”, critica.
Nesta semana, o Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro retomou as audiências de custódia feitas presencialmente, atividade interrompida durante a pandemia do coronavírus.
O Conselho Nacional de Justiça votou à possibilidade de o serviço ocorrer de forma online, o que é rechaçado pela Defensoria Pública. Em votação, os conselheiros negaram as audiências por vídeo.
“É um exemplo para o Brasil de que é possível retornar com segurança, não sendo necessário usar da videoconferência, que seria o esvaziamento da estrutura da custódia”, avalia Tassara.
O posicionamento é corroborado por Paulo Abrão, secretário Executivo da CIDH (Comissão Interamericana de Direitos Humanos) da Organização dos Estados Americanos. Em sua fala, o representante da entidade internacional criticou o aprisionamento como base da política criminal.
“A audiência de custódia é uma medida efetiva e relevante para reduzir a prisão preventiva, feita sem critérios, ou para a superlotação. Temos que reforçar, apoiar”, afirma, ressaltando a defesa “enfática de que os estados têm obrigação de evitar detenções sem necessidade”.
Abrão descreveu que as prisões brasileiras e o problema da superlotação, agravado na pandemia, têm sido objeto de preocupação e monitoramento da CIDH. “A Comissão tem observado o aumento da população carcerária e entendemos que decorre de uma política criminal que tenta solucionar o problema de segurança pública priorizando a privação de liberdade”, afirma.