Juiz anula prisão após abordagem sem motivo, mas desembargador manda prender

    Trio foi preso com 133 kg de maconha no interior de SP, mas juiz considerou que PMs não tinham “fundada suspeita” para abordá-los, como determina a lei; “há impunidade para que policiais atuem à margem da legalidade”, diz criminalista

    Foto da maconha feita pela polícia após a abordagem | Foto: Divulgação/Polícia Rodoviária

    Um juiz de São Paulo libertou três pessoas presas em flagrante por policiais rodoviários com 133 kg de maconha. Entendeu que não havia elementos para a abordagem. A questão é que, quatro dias depois da liberação, houve a reviravolta com a divulgação do caso: um desembargador de plantão decidiu prendê-los pelo crime, considerando correta a ação policial.

    Tudo começou na noite do dia 23 de outubro com duas mulheres e um homem em um veículo Fiat Uno na cidade de Guararapes, a 545 km da capital paulista. Havia duas crianças no carro, que trafegava na Rodovia Marechal Rondon e entrou em um posto de combustível.

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    Segundo os policiais, o motorista demonstrou “certo grau de nervosismo” e, por isso, decidiram revistar o carro. Nesse momento, abriram malas e arrombaram bancos do veículo e encontraram 113 tabletes de maconha.

    O juiz Marcílio Moreira de Castro, do Foro de Plantão e Araçatuba, analisou o caso e decidiu libertar as três pessoas. Considerou que os policiais não demonstraram motivos suficientes para ter feito a abordagem.

    O magistrado justificou no relaxamento da prisão que não havia mandado de busca e apreensão para a revista do carro. Outra forma seria em caso de “fundada suspeita”, com base no artigo 244 do Código de Processo Penal. Para ele, os policiais não explicaram corretamente o motivo da abordagem.

    “Em seus termos de depoimento, os policiais não esclareceram em que consistiria o suposto ‘grau de nervosismo’. Sequer informaram se haveria muito ou pouco nervosismo”, afirma Marcílio, criticando a argumentação dada pelos policiais.

    No depoimento, eles explicaram que é um “modus operandi” relativamente comum que pessoas simulem estar em família para transportar drogas para dificultar a fiscalização. O juiz destaca que a justificativa foi repetida “palavra por palavra” pelos dois policiais.

    “Tal afirmação preocupa sobremaneira este Juízo”, diz Marcílio sobre a possibilidade de várias buscas pessoais e revistas a carros com “famílias inteiras […] com fundamentos superficiais e tênues”.

    “Bastaria algum membro da família ostentar um genérico ‘grau de nervosismo’ e a polícia determinaria uma parada arbitrária para, em seguida, interrogar informalmente os ocupantes do veículo sobre de onde estariam vindo e para onde iriam”, afirma.

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    Antes de determinar a liberdade do trio, o magistrado questiona o fato de os policiais não terem apresentado nenhuma outra testemunha, a não ser eles mesmos, para comprovar o crime. Citou que, se fosse um crime de homicídio, todas as pessoas em volta seriam levadas como testemunhas.

    Com a liberdade das três pessoas, o Ministério Púbico recorreu em busca de suas prisões ainda no dia 24 de outubro. O promotor Cláudio Rogério Ferreira sustenta que há prova do crime, indícios suficientes de autoria e “perigo gerado” pela liberação das pessoas.

    Ele defende a ação dos policiais por exercerem seu “papel constitucional” e cita a quantidade de 133 kg de maconha apreendida. “Todos os os autuados sabiam da presença da droga e direcionaram seus propósitos para o transporte da droga, para fim de entrega ao consumo de terceiros”, justifica, com adicional de “garantia da ordem pública” para pedir a prisão.

    O pedido foi analisado nesta terça-feira (28/10) pelo desembargador Julio Caio Farto Salles, que considerou o “nervosismo observado pelos policiais” como elemento para a abordagem, bem como as versões diferentes supostamente contadas pelo trio para o destino da viagem.

    Segundo o desembargador, a liberdade daria “salvo-conduto a traficante” para transportar drogas “imune a abordagens ou revistas”, mesmo se a polícia identificar “insuportável cheiro de maconha”. Essa versão policial não foi apresentada na primeira análise do caso.

    Farto Salles decidiu prender o trio por tráfico de drogas para “garantia da ordem pública”. Indicou existir o risco real de fuga pelos três morarem em outros estados (Rondônia e Mato Grosso do Sul) “próximos à fronteira com outros países”.

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    Advogado criminalista e mestre em Direito Penal pela PUC-SP, André Lozano Andrade avaliou o caso como um absurdo. Para ele, a decisão inicial era “irretocável”.

    “Os juízes são extremamente coniventes com prisões ilegais, flagrantes ilegais. É um resquício da ditadura”, avalia, ao elogiar a decisão do juiz Marcílio. “Quando o poder judiciário ratifica abusos de policiais, isso abre espaço enorme para corrupção”.

    Lozano enquadra a reviravolta, com a prisão pedida pelo desembargador Farto Salles, em uma espécie de “direito penal do inimigo”. Segundo ele, há decisões contra a lei só pelo fato do crime ser tráfico de drogas

    “Quando falamos de tráfico de drogas não estamos falando de direito de verdade, estamos falando de um direito paralelo, de um direito penal do inimigo em que os direitos e garantias do acusado são simplesmente afastados com base na gravidade do delito”, afirma o advogado, acrescentando que policiais agem na “margem da legalidade” nestas ocorrências.

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    “Quando falamos do direito penal do inimigo, a palavra do policial tem valor muito maior do que qualquer outro elemento, inclusive que a lei”, afirma. Para André Lozano, “existe uma impunidade e tranquilidade para que policiais atuem à margem da legalidade” em ocorrências de tráfico.

    A Ponte questionou a SSP e a PM sobre a prisão do trio e se, após a decisão do desembargador, fizeram buscas para prendê-los. Segundo a corporação, em nota publicada no site da SSP, o trio foi preso novamente na tarde de terça-feira (27/10), no terminal rodoviário de Guararapes. A pasta afirma que eles viajariam para Porto Velho, capital de Rondônia.

    “O Conselho Tutelar do município foi acionado para acompanhar as crianças. Os adultos foram presos por meio de mandados de prisões preventivas, sendo o homem recolhido à Cadeia Pública de Penápolis e as mulheres conduzidas à Central de Polícia Judiciária (CPJ) de Araçatuba”, detalha a SSP do governo João Doria (PSDB).

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