A criminalização discutida no STF é a solução ideal para a LGBTIfobia?

    A Ponte conversou com o autor das ações votadas no STF, Paulo Iotti, e cinco especialistas e ativistas para entender a criminalização da LGBTIfobia; entenda os argumentos favoráveis e contrários

    Parada do Orgulho LGBT de 2017 | Foto: Daniel Arroyo/Ponte Jornalismo

    O mês de fevereiro de 2019 foi agitado para integrantes dos movimentos LGBTs no STF (Supremo Tribunal Federal). O motivo era a votação de duas ações que pediam a criminalização da LGBTfobia (preconceito, violência e discurso de ódio propagado contra lésbicas, gays, bissexuais, travestis, transexuais e intersexos), discussão que segue aberta no Supremo e traz à tona o fato de não haver consenso dos movimentos diretamente envolvidos sobre o assunto: alguns são contra, outros a favor. O questionamento é até que ponto criminalizar esta questão trará ganhos sociais para a população LGBT.

    O julgamento começou no dia 13/2 e teve mais quatro sessões até ser interrompido em 21/2, ainda sem prazo exato para voltar, com estimativa para maio ou junho deste ano. Quatro dos 11 ministros que formam o tribunal votaram até o momento – todos favoráveis à criminalização até aqui. A discussão dos quatro dias de votação girou em torno de duas ações: a ADO 26 (Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão), apresentada pelo PPS (Partido Popular Socialista), e o MI 4733 (Mandado de Injunção), apresentado pela ABGLT (Associação Brasileira de Gays, Lésbicas e Transgêneros), que pedem a criminalização da LGBTIfobia e a equiparação da homofobia e da transfobia ao crime de racismo.

    Um dos ministros que já deu seu voto favorável à equiparação da LGBTIfobia ao racismo é Celso de Mello. Em sua fala durante a sessão do dia 14/2, o ministro do Supremo relembrou algumas polêmicas envolvendo discursos de Damares Alves, ministra de Mulheres, Família e Direitos Humanos, do governo de Jair Bolsonaro (PSL), que constantemente ataca pessoas LGBTs em seus pronunciamentos – como quando definiu que meninos vestem azul e meninas vestem rosa.

    “Essa visão de mundo, fundada na ideia artificialmente construída de que as diferenças biológicas entre o homem e a mulher devem determinar os seus papeis sociais, meninos vestem azul e meninas vestem rosa, impõe notadamente em face dos integrantes da comunidade LGBT uma inaceitável restrição a suas liberdades fundamentais, submetendo tais pessoas a um padrão existencial heteronormativo incompatível com a diversidade e o pluralismo”, defendeu o ministro. “Versões tóxicas da masculinidade e da feminilidade acabam gerando agressões a quem ousa delas se distanciar no seu exercício de direito fundamental e humano ao livre desenvolvimento da personalidade, sob o espantalho moral criado por fundamentalistas religiosos e reacionários morais com referência à chamada ideologia de gênero”, completou Mello.

    Em entrevista à Ponte, Paulo Iotti, advogado constitucionalista autor das duas ações no STF e diretor-presidente do GADvS (Grupo de Advogados pela Diversidade Sexual e de Gênero), relembra que começou a elaborar a petição inicial logo após a vitória do casamento homoafetivo, em 2013. Segundo eles, o trabalho durou 3 meses para as duas sustentações ficarem prontas. Ele também defendeu a inclusão da LGBTIfobia no crime de racismo, como sustenta no Tribunal.

    “Há duas ordens constitucionais que usamos nas ações: a primeira é o artigo 5º, inciso 41, que fala que a lei punirá toda discriminação atentatória de direitos a liberdades fundamentais. O direito penal permite abarcar direitos humanos para proteger a vítima. Por que a lei pune racismo e feminicídio? Para proteger o grupo racial minoritário e a mulher. Essa é a fundamentação filosófica do direito penal, embora tenha a seletividade, ele é muito mais duro com grupos vulneráveis. Nenhuma lei resolve, mas dá mecanismos para isso.  A lei antirracismo fala em raça e cor, que abrange cor, etnia, raça e religião, isso inclui vários grupos que não só a população negra”, explica Paulo, antes de apontar o segundo elemento da carta magna.

    “A segunda ordem constitucional é o inciso 42, que manda punir criminalmente o racismo. Por que isso? Em 2003, em um julgamento muito importante, o Supremo determinou que o antissemitismo [aversão aos judeus] estava abarcado na lei antirracismo. O Supremo adotou um racismo político e social e não biológico para não se tornar um crime impossível, como chamamos no direito. Todas as vezes que racismo aparece, se fala em raça e cor em palavras diferentes. Se a lei fala em palavras diferentes, a gente tem a máxima de que a lei não usa palavras inúteis, se a raça está em palavra diferente, a gente entende que racismo não está só na pele, no fenótipo. Então o Supremo, baseado nisso, falou que racismo é a inferiorização de um grupo social relativamente a outro. Se este é o conceito constitucional de racismo, e eu acredito que seja, então LGBTfobia configuram crime de racismo”, defende o advogado autor das ações.

    Assim como Iotti, a professora e psicóloga Jaqueline Gomes de Jesus também considera que, agora, a melhor alternativa é a criminalização. Para ela, seria fundamental estimular mudanças de hábitos e culturais, mas só isso não basta. “Não adiantam só ações educativas sem ações punitivas para aqueles que agem de forma discriminatória em agredir, excluir e ferir outras pessoas. Na sociedade em que a gente vive existe muita impunidade com relação aos crimes voltados às populações discriminadas. Nesse sentido, é fundamental criminalizar a LGBTIfobia, porque assim se teria condições para punir especificamente as pessoas que cometerem violências ligadas às questões. Deixar de forma genérica acaba marcando de forma genérica e não determina a violência cometida para que ela possa ser enfrentada na sua especificidade”, argumenta Jaqueline.

    Para Jaqueline, que é autora do livro Homofobia: Identificar e Prevenir, a criminalização pode ser vista como uma medida educacional. “Prevenir é fundamental, e isso se dá na educação anterior. No meu livro eu trabalho essas questões. Mostro como identificar, sendo que é algo que já está posto na sociedade, e enfrentar essa ideologia por meio de ações didáticas. Quando essa discriminação é criminalizada, e ela pode ser penalizada, a pedagogia que se dá, a educação que se dá é posterior, não é mais uma prevenção. A partir daí é uma reação e é preciso enfrentar para que haja tanto uma educação do indivíduo quanto da sociedade de que aquela ação não é uma ação desejável, não é uma ação adequada, não é natural que as pessoas hajam discriminando as pessoas por conta da sua orientação sexual ou identidade de gênero”, sustenta.

    Gisele Alessandra Schimidt, advogada criminalista e militante dos direitos humanos da população LGBT, também concorda. “[Criminalizar] É importante porque pressupõe-se que os níveis de violência homofóbica irão diminuir e também porque, talvez, a pessoa reflita um pouco mais antes de cometer um crime em detrimento de homofobia. Não acredito que criar tipos penais seja a solução para coibir violência que somente é controlada quando a sociedade avança intelectualmente, assim as pessoas deixam de ser ignorantes e não se influenciam por religiões oportunistas fundamentalistas, que infelizmente estão crescendo e se tornando um problema preocupante no Brasil”, fundamenta a advogada.

    A advogada criminalista lembra que é importante ter em mente que não cabe ao poder judiciário legislar. “Como o parlamento é omisso em um assunto tão sério, justamente porque ainda está preso a um livro fictício [bíblia] e por conta de um falso moralismo e conservadorismo dignos da idade média, pessoas estão morrendo de maneira brutal simplesmente por serem quem são. Assim entra o judiciário para sanar essa omissão. Em minha opinião, trata-se de uma estratégia jurídica interessante [incluir LGBTIfobia na lei antirracismo] e inteligente para, pelo menos, os LGBTI terem um pouco de proteção”, elucida Gisele.

    O punitivismo é melhor alternativa?

    Para a publicitária Neon Cunha, ativista trans independente, não dá para discutir a criminalização sem discutir o sistema penal. Para ela, qualquer tipo de emancipação para as ditas minorias em direitos (mulheres, negros e LGBTs) precisa discutir outros caminhos. “Eu fico pensando muito no que a Angela [Davis, escritora e filósofa que debate sobre o encarceramento em massa da população negra] escreve: a liberdade é uma luta constante. Para a gente não ser novamente punitivista, não cair nesse jogo do encarceramento. E, ao mesmo tempo, as pessoas tão falando que a punição é algo educativo, que pode mostrar que práticas passam a ser vistas como condenáveis, causando uma mudança estrutural e cultural? Eu sei exatamente de onde vem essa fé e tenho muita desconfiança disso”, explica Neon.

    Cunha defende que, para falar em criminalização, precisamos pensar quem são os corpos aprisionados no Brasil. “Como não cair nas armadilhas da opressão colonial vivendo num contexto como este? Como ser abolicionista penal e antipunitivista e ter que pensar numa criminalização da LGBTfobia? Está lá no STF, já é uma demanda antiga do movimento, e eu acho mesmo complicado equiparar a LGBTfobia ao racismo. No crime de racismo as pessoas não são presas, aliás, as pessoas negras não são presas. Agora nesse crime da LGBTfobia, sim. Mas, e aí, quem está preso, quem está no sistema prisional? Fico pensando na [lei] Maria da Penha, que também é responsável por encarcerar. Infelizmente ,por toda questão de opressão e de estrutura social, ainda são em grandes partes os homens negros, pobres, de periferia”, justifica a ativista.

    A ativista compara a criminalização da LGBTIfobia à lei do feminicídio, em vigor desde 2015. “Eu acho uma das leis mais importantes, mais bem elaboradas e não discuto essa questão, que também vem a proteger nós mulheres negras, tanto cis quanto trans. Mas o que a gente pensa quando a justiça brasileira é racista, classista, burguesa, higienista? Como lidar com isso? Você vê uma enxurrada de vídeos de homens brancos que espancam mulheres, que respondem em liberdade, estão soltos e por aí vai. Por que então eu posso acredita que na questão da criminalização da LGBTfobia vai ser diferente? Só a ação punitivista que vai mudar uma sociedade ou a gente vai dialogar com uma sociedade para ela se tornar mais justa e sair desse campo do ‘tá bom para mim’ para ficar no ‘tá bom para todo mundo’?”, questiona Neon.

    Seguindo o pensamento de Neon, a advogada Carolina Gerassi, que atua na proteção integral das mulheres e tem histórico com pautas voltadas à população trans e travesti, como o caso de Laura Vermont, também relembra a ineficácia da lei do feminicídio como mudança cultural. “[Criminalizar] Tem um motivo extremamente relevante, pois a omissão do Estado é flagrante, mas não é uma via eficaz. Por que não é eficaz? A experiência está dando para a gente essa informação. Os feminicídios estão aumentando, o racismo continua ocorrendo. A existência de tipos penais e qualificadoras nos trouxeram e trarão mais dados, mas a resposta que a gente esperava, de que isso geraria um impacto significativo na sociedade, não ocorreu”, explica Gerassi.

    Para a advogada, que também atua no setor criminal, existem duas pontas. “A gente sabe que em um extremo está a misoginia, o racismo e LGBTfobia expressos em crimes bárbaros, cometidos muitas vezes por agentes do Estado [feminicídio, violência policial e encarceramento seletivo contra a população pobre e majoritariamente negra, extermínio das travestis e pessoas trans cuja violência rende ao Brasil a liderança do ranking mundial em homicídios contra LGBTTs. Mas no outro extremo, a gente tem uma gama de formas discriminatórias mais brandas, tidas como cultural e socialmente aceitáveis, que são a porta de entrada para tudo isso”, aponta. “Há uma naturalização da violência contra esses grupos minoritários e isso é cultural. É isso que precisamos interromper. Essa naturalização da menos valia e da exclusão de grupos historicamente discriminados aparece em forma de piada, em forma de publicidade racista, machista e LGBTfóbica, em forma de entretenimento e em forma de dogmas religiosos, por exemplo. Como a gente faz para entrar nas menores células da sociedade e desempenhar um trabalho multiplicador e transformador de quebra, de mudança de paradigma, de crescimento social e cultural? A história já demonstra que não é por meio da criminalização”, argumenta Gerassi.

    No mais, Carolina avalia que criminalizar não é um caminho educativo e, por isso, pode não atingir o resultado desejado. “Eu entendo que tem a questão de ordem discursiva que é ‘agora está escrito, o Estado não pode mais fingir que não existimos’, mas isso não é educativo e não desempenha o papel preventivo tão urgente e necessário.

    Já com relação à solução encontrada para a lacuna do legislativo em criminalizar a LGBTfobia mediante enquadramento dos atos na Lei anti-racismo, a advogada se posiciona pela inviabilidade. Segundo ela, “a interpretação de tipos penais não pode se dar se maneira extensiva, sob pena de abrir espaço para arbitrariedades do Estado no exercício do seu poder de punir. O nosso sistema jurídico, além de restringir a criação de tipos penais ao Congresso Nacional (princípio da reserva legal), impõe a perfeita subsunção do fato à norma incriminadora, assim não aceitando interpretações vagas e ampliativas”.

    Dina Alves, advogada e integrante do IBCCRIM (Instituto Brasileiro de Ciências Criminais), a ação de grupos discriminados historicamente procurarem por tutela no sistema penal para resolver problemas sociais e estruturais se revela problemático. “Primeiro que o direito penal, seletivo em sua gênese, é um dos mais poderosos instrumentos de produção e reprodução do racismo, do machismo, da LGBTfobia e tantas outras violências estruturais que lutamos para combater. Segundo que a linha de cor e de gênero presentes na explosão das estatísticas prisionais demonstra que crime e seus tratamentos não constituem categorias ontológicas e o sistema penal é um dispositivo de poder advindo da escola penal positivista, que conserva o princípio do controle corporal e reserva a determinados grupos sociais a culpabilidade e a punição. Ou seja, a base constitutiva da justiça criminal é de um direito penal anti-LGBT, anti-negro, anti-pobre, anti-mulher. Isso por si só demonstra o direito penal como a face mais terrorista do Estado. O Brasil é o país que mais mata a população LGBTs no mundo. Será que a lei penal vai abalar essa estrutura macabra e os mecanismos produtores dessa violência com a criminalização da LGBTfobia?”, analisa Alves.

    Sobre a inclusão da LGBTIfobia na lei antirracismo, Dina relembra a ineficácia da lei para proteger homens e mulheres negros. “A reivindicação pela inclusão da criminalização da LGBTfobia na lei antirracismo está colocada no sentido político-social do termo, por ser uma discriminação atentatória de liberdade fundamental. Precisamos considerar que a lei antirracista no Brasil não funciona. Comumente os tribunais invertem a lógica dos julgamentos em crimes de racismo e as vítimas passam a ser autoras. Dificilmente estes casos chegam a uma investigação bem sucedida porque o país ainda celebra o mito da democracia racial num país racista. Portanto, a mera inclusão na lei antirracista não vai fazer cessar as violências contra a população LGBTs no Brasil, da mesma forma que não cessa as mortes de jovens negros. Só em 2017 foram 63 mil jovens mortos, na maioria negros”, explica.

    Uma solução possível para a LGBTIfobia, defende Dina, está na proteção e na garantia dos direitos humanos da população LGBTs com a criação de possibilidades e condições materiais para a efetiva realização desses direitos. “O sistema penal não tem função educacional, pedagógica. O direito penal é uma farsa. Um direito patrimonialista que tem por essência a proteção à propriedade privada. Não é da vida que estamos falando. Umas das medidas cabíveis diante de um problema estrutural como a LGBTfobia é apostar nas diretrizes educacionais de enfrentamento à discriminação de gênero e de orientação sexual”, explica.

    Para ela, o debate passa necessariamente pela porta da educação, com políticas públicas eficazes e a promoção do debate de gênero nas escolas. “Romper com essa cultura homofóbica que a sociedade e as instituições disseminam, e que foi reacendida com o governo atual, é um importante passo de empoderamento das vítimas. É necessário aprofundar diálogos e alianças consistente com atores estratégicos numa aposta política da mínima intervenção do direito penal. Não vamos esquecer que matanças e aprisionamento de grupos historicamente discriminados foi a pauta eleitoreira principal do presidente eleito. Precisamos concentrar esforços para superar a política criminal autoritária imposta pelo terrorismo de Estado que afeta sobremaneira as pessoas mais vulneráveis nessa economia da punição”, defende Alves.

    Para Paulo Iotti, apesar de não resolver tudo sozinha, é um erro não acreditar na criminalização como uma alternativa. “Lei antirracismo diminuiu os discursos anti-negros. Muita gente não estupra e não mata porque é crime. Lei Maria da Penha, do Feminicídio etc., deram mecanismos para suas vítimas lutarem contra as opressões que sofrem que antes não tinham. É errado esperar que criminalização resolva tudo sozinha, mas é cegueira deliberada negar que ela ajuda. São leis anti-drogas e crimes contra patrimônio que prendem população negra e pobre, não leis anti-discriminatórias”, defende.

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