Na estreia do programa sobre gênero da Ponte, o “Pluralidades”, a cartunista criticou o governo Bolsonaro e refletiu sobre seu papel no movimento trans: “não me vejo como pioneira”.
Pluralidade, de acordo com o dicionário Michaelis, é a qualidade de ser numeroso, de existir em grande número ou quantidade; diversidade, multiplicidade. É assim que as questões de gênero deveriam ser encaradas, um caleidoscópio de verdades e particularidades.
É essa abertura para o mundo que marca o programa “Pluralidades”, que estreou no Youtube da Ponte na última quarta-feira (23/9). Apresentado por Caê Vasconcelos, homem trans e repórter da Ponte, o “Pluralidades” traz temas como identidade de gênero, masculinidades, feminismo e a vivência múltipla dos seres humanos através entrevistas transmitidas no Youtube da Ponte.
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Para Caê, “é urgente falarmos de gênero quando vivemos em um país que conceitos como a ideologia de gênero tem tanta força. Daí vem a importância de debater o tema de forma plural, ouvindo pessoas de diferentes recortes de classe, gênero e raça para mostrar que falar de gênero é falar de combater o racismo, o patriarcado e a LGBTfobia”.
A convidada de estreia do programa não poderia ser mais plural. Laerte Coutinho, 69 anos, é travesti, cartunista, artista, pai-mãe, avô-avó, ativista pelos direitos da população LGBTI+, ser consciente político, dentre muitas outras coisas. Direto de sua casa, ela falou sobre essas pluralidades da sua vida. O epesódio também pode ser ouvido no formato podcast no stream abaixo ou nos agregadores da Radio Sens.
“Não me vejo como pioneira, me vejo como uma das pessoas que fizeram parte de um processo de busca e abertura da discussão sobre gênero”, refletiu durante a entrevista. “Não sou, consegui e nem almejo ser porta-voz do movimento [trans] que, aliás, é um movimento que eu conheço pouco por conta da sua imensidão”. Ainda assim, sua transição de gênero pública e participação na criação de iniciativas como o projeto Transempregos demonstram a importância de sua figura dentro do movimento trans.
Na sua avaliação, o Brasil é um país que se coloca em duas frentes. “É uma característica do Brasil, funcionar nesse duplo registro: ser um país violento e opressivo e, ao mesmo tempo, uma terra onde é possível descortinar um horizonte”, avaliou Laerte. “Cada vez mais pessoas tem considerado a possibilidade de viver sua identidade de gênero livremente e com isso viver também as suas possibilidades, potencialidades, se desenvolver, estudar e abraçar profissões quaisquer”.
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Governo do “desastre”
Mesmo com esse fio de esperança, a cartunista lança seus temores com relação ao presente político, ambiental e social do Brasil. “Não me preocupo muito com o futuro. Evidente que haverá um futuro, mas não sei que classe de futuro vai ser”, afirma pontuando que há inegáveis avanços, mas vê muito a ser resolvido como rescaldo do atual governo federal que ela classifica como “desastre”.
“O governo Bolsonaro, que é uma tragédia, certamente vai deixar sequelas no nosso país e na nossa população por muitos anos. Não vai ser nada fácil para reconstruir, para consertar, para recompor alguma coisa do que esse pessoal tá destruindo como predadores”.
Para Laerte, há flerte profundo do bolsonarismo com um regime ditatorial como o que o Brasil viveu entre 1964 e 1985. “A ditadura de 64 não teve uma cara só. A gente acha que foi tudo governo com generais fazendo pose pra foto. Não foi só isso. Teve uma série de arranjos com a população, com o poder civil, governadores, parte do clero. As forças que fizeram parte disso são variadas e não são diferentes das de agora também”, faz questão de relembrar, surpresa com a renovada aceitação popular dessas ideias.
Um dos “sintomas” dessa onda conservadora de extrema direita são os ataques aos debates sobre gênero, sobretudo nas escolas. “Essa própria expressão ‘ideologia de gênero’ foi inventada por babacas. A única ideologia que existe é a de opressão de gênero”, critica a artista. Para ela, as “crianças não têm a menor dificuldade para entender que é possível lidar com o gênero de diferentes formas”.
Sobre o Pluralidades
A conversa, que durou quase uma hora, ainda passou por outros temas como censura, humor, processo de criação, ódio nas redes sociais e educação de crianças. Laerte também respondeu perguntas enviadas pelos membros do Tamo Junto, o programa de membresia da Ponte.
“Essa estreia reforça para mim também a importância de documentarmos pessoas como ela em vídeos, contando sobre a sua carreira e a sua vida, para os que vieram depois terem acesso a essas conversas”, afirma Caê Vasconcelos.
O “Pluralidades” pretende ser uma live mensal, sempre às quartas quartas-feiras do mês e entre os convidados estarão pessoas LGBTs, principalmente pessoas trans e travestis, mulheres e homens negros e indígenas de diferentes profissões e realidades. Esse programa só possível com o apoio dos membros do Tamo Junto que, além de colaborar financeiramente, participam do trabalho da Ponte.