Jordhan Lessa, o primeiro guarda reconhecido trans: ‘Existir é a melhor maneira de resistir’

    Guarda municipal do Rio de Janeiro é um dos participantes da 7ª edição do evento “Todos os gêneros”, do Itaú Cultural

    Jordhan Lessa foi primeiro homem trans publicamente reconhecido da Guarda Municipal da Cidade do Rio de Janeiro | Foto: Arquivo pessoal

    “Eu tenho 22 anos de Guarda. De transição 5”. É assim que o guarda municipal Jordhan Lessa, 53 anos, começou o papo com a Ponte. Cria de Maricá, região dos lagos no Rio, Jordhan, com DH de Direitos Humanos, como ele faz questão de dizer, foi o primeiro homem trans publicamente reconhecido na Guarda Municipal da cidade do Rio de Janeiro.

    Nesta terça-feira (25/8), Jordhan participa da mesa “A Construção das Masculinidades“, parte da sétima edição do “Todos os Gêneros“, do Itaú Cultural, que este ano explora o conceito de masculinidades. O evento contará com diversas rodas de conversas, espetáculos teatrais e ganhará dois shows de encerramento, com Ciel Santos e Rico Dalasam, no próximo domingo (30/8).

    Confira a programação completa do evento

    Apesar de ainda vivenciar o preconceito na Guarda Municipal, Jordhan conta que hoje as coisas estão mais tranquilas. “Não porque o preconceito institucional tenha deixado de existir, mas hoje eu conheço o meu lugar”, avalia.

    Com uma transição tardia, iniciada aos 48 anos, o guarda vivenciou por muitos anos a lesbofobia. “Em 22 anos de Guarda, eu só tomei banho no vestiário uma vez”, conta. “Cheguei do serviço muito suado e tomei banho no vestiário, na época o feminino, me troquei e saí. Eu sempre me senti desconfortável e eu percebi que as outras pessoas também, então evitava sempre estar no vestiário quando estava cheio”, lembra.

    No dia seguinte, foi chamado pelo superior para dizer que uma das guardas havia reclamar da presença dele no espaço. Hoje, lotado na Superintendência da Prefeitura, no centro do Rio, não usa mais uniforme nem atua nas ruas, mas o problema do banheiro persiste. “O problema não é em mim, são as instalações. porque o vestiário masculino é aberto”, aponta.

    Ser o primeiro em algo nem sempre é fácil. Ou simples. Antes de Jordhan, ninguém tinha o nome social em trabalhos dentro da Prefeitura. “Demorou 100 dias para o setor de Recursos Humanos da Guarda me dar um parecer, falando que não sabiam o que fazer”, relembra.

    As dificuldades na vida de Jordhan, porém, são anteriores à Guarda Municipal. Foi expulso de casa, viveu nas ruas, foi internado na antiga Febem (hoje Fundação Casa) e passou por dois manicômios. Aos 16 anos, ele foi vítima do que sabe hoje se tratar de estupro corretivo. Após a violência sexual, engravidou. “Quando eu descobri a gravidez, eu já estava com 21 semanas”.

    Jordhan deu à luz seu primeiro filho, hoje com 36 anos. “Além dele, tenho dois enteados e dois netos”, completa. Vítima de violência sexual, Jordhan conta como foi dolorido ver o caso da menina de 10 anos que engravidou depois de ser abusada por quatro anos por um tio.

    “As pessoas me perguntam por que eu continuo falando sobre a violência que eu sofri. Por isso, porque ela continua acontecendo. Se ela não acontecesse mais, eu não precisava falar mais nada. E os corpos trans são corpos vulneráveis também, por isso eu não posso me calar”, brada.

    Leia também: Maior desafio foi construir minha masculinidade sem referência, afirma quadrinista trans

    Para Jordhan, a transição tardia é associada a falta de exemplos. “Eu não tinha um modelo de mulher cis, eu não tinha um modelo de família estruturada ou que se preocupa com escola e trabalho. É como se eu tivesse construído uma história sem projeto, fui caminhando e fazendo”, confessa.

    “Em 2016, descobri que a pessoa que eu achava que era minha mãe é minha irmã, o cara que eu achava que era o meu avô é meu pai biológico, o cara que eu achava que era o meu pai é o meu cunhado. De repente você fica sem chão. Que modelos eu tenho para seguir? Os modelos que me fizeram mal a vida toda? Esses não contam”, pondera.

    João W. Nery, uma referência

    Jordhan chegou a adoecer antes de se entender um homem trans, tomava nove tipos de remédios e ficou três meses sem conseguir andar. “Eu não me encaixava no perfil lésbico, não me encaixava no perfil mulher cisgênera [que se identifica com o gênero de nascimento], mas eu nunca tinha ouvido falar em transexualidade. Era sempre aquele não lugar, o não pertencimento. Isso para mim foi uma guerra muito grande”, lembra.

    Por isso, fala com firmeza, “existir é a melhor maneira de resistir”. “A gente tem que entender que a nossa existência é a maior resistência que a gente pode ter, porque eles não esperam que a gente sobreviva”.

    Somente em 2013, Jordhan se reconheceu trans. E agora tinha um modelo para se espelhar: João W. Nery, a quem conheceu — e se reconheceu — em uma palestra. “Foi aí que as coisas começaram a mudar, comecei a encontrar o meu lugar no planeta, comecei a bater de frente com o preconceito porque daí eu sabia de onde eu estava falando”.

    Em João, Jordhan encontrou uma figura paterna. Principalmente em relação a construção da sua própria masculinidade. Hoje, ele enxerga que era muito mais machista antes da transição de gênero, “acho que por uma questão de autoafirmação, de você criar uma barreira para não ser atacado”.

    “Quando a minha mulher fala que sou marido dela, as pessoas ficam chocadas. Eu não faço força para ter uma expressão de gênero parecida com a dos outros homens. O que importa é o que a gente vive e entender isso foi um grande exercício”, explica.

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    Ele se recorda de momentos de trocas com João Nery. “Ele falava muito que não podemos perder a feminilidade que existe em nós, o sagrado feminino que vive em cada um de nós. O sagrado feminino não era dele, porque ele era ateu”, brinca.

    “Ele dizia que eu era muito masculino, que eu era muito machista, que eu precisava me olhar. Aí eu comecei a entender muita coisa que aconteceu na minha vida”, continua.

    Apesar de ter lançado um livro sobre a sua transição em 2014, o “Eu trans: A alça da bolsa – Relatos de um transexual“, o Jordhan só conta que começou a sua transição em 2015, depois de passar dois anos “estudando e conhecendo gente”.

    “Tive que pesar muita coisa até tomar a decisão de realmente começar a transição. Aí é interessante porque eu começo pela cirurgia, porque era o que mais me incomodava. Eu primeiro retiro as mamas e depois começo a hormonização”, detalha. 

    Agora, Jordhan está escrevendo o seu segundo livro, que pretende lançar ainda em 2020. “Eu nasci em 1967 e tivemos a ditadura. Foi nesse momento que eu cresci. Por isso manicômio era algo naturalizado, por isso a violência era naturalizada”, explica.

    Ele conta que tem se dedicado, dessa vez, a contar a história a partir de 2013 e focado na subjetividade implicada em como é ser um homem de 50 anos sem ter tido essa vivência na infância. “Quero falar das experiências novas que eu estou passando hoje e acredito que outros caras também estão passando”, destaca.

    Construa a Ponte

    Esse processo, que ainda está em construção, conta Jordhan, já mostrou que ele pode ser tudo o que quiser. “Eu não fiz a transição para ser parecido com ninguém. Eu fiz uma transição para ser eu, para eu me ver, para eu colocar esse Jordhan para fora”.

    Apesar de ser algo libertador, conta, é um caminho difícil de entender. “Se eu quiser dançar, eu vou dançar, se eu quiser rebolar, eu vou rebolar e isso não vai me atingir em nada porque hoje eu tenho o meu lugar”, conta.

    Aos 53 anos, aprendeu que pode chorar, abraçar e ser emotivo. “Em agosto, conheci meu segundo neto e eu fiquei muito emocionado. Minha esposa disse que eu sou um pai e um avô lindo. Isso me mostra que eu estou conseguindo me tornar leve”, confessa.

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