Lógica de eliminar oponente deve acabar, diz delegado

    Para Orlando Zaccone, da Polícia Civil fluminense, sem a mudança da lógica do “oponente a ser eliminado”, a desmilitarização da polícia não será suficiente

    O que define a legitimidade de uma morte praticada por um policial não é a condição em que se comete o ato, mas sim a condição do morto. Se for identificado como um traficante, “tudo passa a ser legitimado”. Essa é a avaliação de Orlando Zaccone D´Ellia Filho, delegado de polícia carioca, estudioso de segurança pública e da letalidade policial, depois de se debruçar sobre autos de resistência (mortes cometidas por policiais, alegadas como mortes em confronto) para defender sua tese de doutorado em Ciência Política, na Universidade Federal Fluminense (UFF). “Vi um auto de resistência de uma pessoa com oito tiros nas costas ser arquivado porque o familiar confirmou que ele era traficante”, conta. “Está tudo na construção do inimigo. Esse é o grande marco da militarização da questão da segurança, não é a PM. A militarização da segurança passa pela construção do inimigo matável.”

    Zaccone, responsável pelo esclarecimento do caso do pedreiro Amarildo, desaparecido depois de ser levado por PMs para uma base da Unidade de Polícia Pacificadora na Rocinha, avalia o modelo de pacificação das favelas cariocas, discute o uso do Exército na segurança pública e alerta para o perigo do uso de armas não letais pelas forças de segurança.

    Qual o balanço que você faz do modelo de pacificação das favelas do Rio de Janeiro, por meio das Unidades de Polícia Pacificadoras?

    Esse desejo de ocupação militar das favelas era algo que estava sendo gestado no ambiente social, no meio de alguns jornalistas, empresários. A UPP não surgiu somente como um projeto do [Sérgio] Cabral. Claro que ele vai querer ganhar os louros do momento em que a UPP aparece como uma referência internacional, ganhando prêmios na ONU. No momento em que a instalação de UPP em áreas pobres passa a  ser difundida em todo planeta, o Exército brasileiro já estava treinando no Haiti, em Porto Príncipe, a ocupar áreas pobres. O urbanista [norte-americano] Mike Davis, autor de Planeta Favela, esteve no Brasil em 2008 e deu uma entrevista para o jornal O Estado de S. Paulo, na qual ele diz: “O Exército brasileiro não está no Haiti em missão humanitária, está em missão tática, treinando militares brasileiros para ocupar áreas pobres no Brasil”. E quando houve a ocupação do Complexo do Alemão, a primeira, antes da instalação da UPP, quem foi convidado para comandar foi justamente o general que era responsável pela ocupação no Haiti.

    Com a UPP, acho que há uma potencialização do enfrentamento da polícia com a favela. Fica mais difícil de mascarar ações violentas policiais, porque antes eles entravam e saíam. Na UPP, não. Eles estão dentro da comunidade, cometendo abusos que são documentados pelos própios moradores, e os policiais são conhecidos pela comunidade. Antes, quem era identificado como violador dos direitos dos favelados era o traficante. Hoje, não sei se os traficantes foram embora. Acho que não, porque volta e meia temos notícias de ações deles dentro das favelas. Mas, além disso, há as violações cometidas pelos próprios policiais. Para os moradores da favela, está terrível, porque se agregou mais uma violação de direitos. Se antes havia a violação cometida pelo traficante, hoje tem o problema do tráfico e a ação militar dentro da favela.

    E como é o apoio a esse projeto?

    Vem daqueles que estão fora da área ocupada militarmente, da área que está sob esse “estado de exceção permanente”, e de alguns moradores da favela, principalmente os mais idosos, que também acabam apoiando, porque de certa forma a ordem que é imposta naquele território traz certo conforto para essas pessoas de mais idade, porque são pessoas que não se movimentam muito, ficam dentro de casa, e já não tem o barulho do baile funk… Mas o problema é em relação aos jovens, que em sua fase mais criativa estão tendo seus direitos à livre associação e ao lazer cerceados, suprimidos. A crueldade do projeto é exatamente essa. Limitar a participação ativa de jovens na sua própria cidade, porque eles não têm condições financeiras de sair das suas comunidades para ter lazer nos bares, por uma questão econômica. E o lazer que havia antes na comunidade também está sendo restrito. Isso vai gerando uma revolta. Acho que temos de repensar esse modelo, senão esse acirramento do confronto vai acontecer daqui para frente e cada vez em proporções maiores.

    As pessoas me perguntavam: “O Amarildo é traficante?”, como se essa resposta pudesse solucionar todo um enigma no seu desaparecimento.

    Qual é a sua opinião sobre o uso de Exército para segurança pública?

    Os países de tradição democrática evitam e não permitem a utilização das Forças Armadas na segurança pública, como os Estados Unidos, por exemplo. As constituições democráticas não confundem o papel das polícias com o das Forças Armadas. A elas cabe fazer a proteção do território em conflito com outros Estados nação. Já às polícias cabe fazer a segurança pública. No Brasil, na Constituição Cidadã de 1988, houve a inclusão de um dispositivo que permite que as Forças Armadas se responsabilizem pela ordem interna. Esse dispositivo é sempre usado quando forças militares são chamadas a intervir nos estados. Os militares conseguiram se manter no poder mesmo após o processo de redemocratização pela porta da segurança pública. Eles lutaram na Constituinte para que esse dispositivo fosse aprovado e lutaram para que a PM se mantivesse como força de segurança, sendo a Polícia Militar uma força auxiliar do Exército. É algo que deveria ser inaceitável num país de tradição democrática. E a partir daí há um ambiente social, vozes que acreditam nisso. O dispositivo da ordem no Brasil é complicado porque é ele que viabiliza essas intervenções militares e não só desse período. Estamos falando da ditadura militar para cá. Se formos fazer a genealogia da pacificação, vamos ver que forças militares tem essa função desde Duque de Caxias, considerado um “grande pacificador”. Como foi feita a chamada pacificação no Brasil, historicamente? Em territórios que se colocavam contra o poder central de alguma forma. Ainda no Império, tivemos Balaiada, Cabanagem, movimentos nos quais parcela da população se colocava contra o poder central e as Forças Armadas se dirigiam para “pacificar”. As repressões a Canudos e à Guerrilha do Araguaia também foram chamadas de “pacificação”. E hoje chegamos à pacificação das UPPs. São processos que exigem a submissão daqueles que, de alguma forma, questionam esse poder central. No Brasil, os processos são sempre de consensos feitos pelas elites, por cima, e pacificação para os de baixo.

    A militarização da segurança pública traz uma consequência que tem relação com a letalidade, que é o que estudei no doutorado: a construção do inimigo.

    A militarização da segurança é um fenômeno nacional ou está ocorrendo em outros países também?

    Está acontecendo no mundo inteiro. As polícias estão cada vez mais se militarizando, no seu modo de atuar, com vestimentas, procedimentos táticos militares. Porém, lá fora não confundem polícia com Exército. O que ocorre no Brasil, nesse marco de militarização da segurança pública, é que as Forças Armadas passam a atuar como polícias e as polícias como Forças Armadas. A militarização da segurança pública traz uma consequência que tem relação com a letalidade, que é o que estudei no doutorado [em Ciência Política]: a construção do inimigo. Toda ação militar envolve a construção da ideia de que se está num campo, e no outro tem um inimigo que tem de ser eliminado, contido. No Brasil, a guerra às drogas é um fator que impulsiona o marco da militarização da segurança pública. O traficante de drogas é visto como inimigo. Essa letalidade das polícias de hoje está calcada na identificação daquele que é o alvo da violência como sendo traficante, que foi o que aconteceu no caso do Amarildo. As pessoas me perguntavam: “O Amarildo é traficante?”, como se essa resposta pudesse solucionar todo um enigma no seu desaparecimento. “Ah, o Amarildo é um traficante, então ótimo, no combate entre as forças militares e o inimigo traficante, isso pode ser legitimado.” Porque isso foi desenvolvido na Doutrina de Segurança Nacional, na época da ditadura. Foi esse discurso que viabilizou, por parte do Estado, a tortura dos chamados subversivos. Aos poucos, o inimigo foi sendo construido também na figura desse criminoso comum. Hoje, o traficante de drogas é esse inimigo quase terrorista. E o tratamento dado aos traficantes de drogas no Brasil é o tratamento que se dá aos terroristas da Al Qaeda, nos Estados Unidos. A eles se impõe um estado de exceção, por meio do qual normas constitucionais e o direito à vida são suspensos. Estudei autos de resistência no doutorado e o que define a legitimidade da morte praticada por um policial é a condição do morto. Identificado no morto a figura do traficante inimigo, tudo passa a ser legitimado. Vi autos de resistência de uma pessoa com oito tiros nas costas ser arquivado porque o familiar confirmou que ele era traficante. São esses os elementos que definem a legitimidade de uma ação policial letal. Nos autos de resistência, a legitimidade da morte é vista não pelo lado do que foi praticado, mas sim pela condição do morto. A desqualificação de vítimas na identificação como traficante de drogas é o modelo que se usa o tempo todo. Esse discurso de que criminoso não tem direitos está tão impregnado no ambiente social que quando uma pessoa não é inocente, não só pode estar exposta a riscos mas como a riscos à margem do Direito. Então essa é a questão. Está tudo na construção do inimigo. Esse é o grande marco da militarização da questão da segurança, não é a PM. A militarização da segurança passa pela construção do inimigo matável. A construção do inimigo é o marco da militarização da segurança pública e nada disso será resolvido somente com o fim da Polícia Militar.

    Esses territórios onde há UPPs são locais onde há o que se chama de estado de exceção permanente?

    Sim, esse estado de exceção permanente tem sido trabalhando por alguns pensadores. O [Giorgio] Agamben [filósofo italiano] é o principal, que trata dos espaços territoriais dentro do Estado onde determinadas normas são suspensas. Isso não é novidade, porque os presídios no Brasil são locais de estado de exceção permanente. Hoje, numa comunidade com UPP, quem decide se haverá ou não o evento cultural é o comandante da UPP. Transfere-se a governabilidade daquela comunidade para a polícia. Mais estado policial do que isso, não existe, é a polícia governando. Mas o problema é que as pessoas não querem estado policial para elas. Se colocar polícia para governar a Barra da Tijuca, o povo vai gritar. Para revistar as pessoas antes de entrar dos condomínios da Barra, o nego vai chiar. Mas querem o Estado policial para o outro. A função da polícia pacificadora no marco da militarização da segurança pública é fazer o controle da vida do morador da favela, do pobre. E esse é um projeto que é aceito por setores que até se dizem progressistas na sociedade.

    A quem interessa esse controle?

    Aos de sempre, aqueles que estão no poder e nos negócios. Há um pensador chamado Edson Lopes que escreveu um livro [Política e segurança pública, uma vontade de sujeição]  em que ele fala de dois paradigmas importantes que estamos vivendo hoje: “os negócios da segurança e a segurança dos negócios”. Um alimenta o outro. A segurança dos negócios é isso que nós estamos vivendo hoje no Rio com a Copa do Mundo e as Olimpíadas. Como criar um ambiente que permita grandes eventos? Aí entra a segurança dos negócios. Mas paralelo à segurança dos negócios, nós temos os negócios da segurança. Um dos negócios da segurança que tem prosperado muito no Brasil são os armamentos não letais. Há uma empresa chamada Condor que tem o monopólio da produção de bala de borracha, gás, taser, todas essas parafernálias que chegaram ao mercado com o seguinte discurso humanista: “Vamos reduzir a letalidade policial”. É uma verdadeira mentira, porque se a polícia precisa ir a ambientes onde vai ter de confrontar pessoas que estejam com armas de fogo, não vai com bala de borracha, vai com o armamento convencional, armamento de fogo, como fuzil, pistola, ou o que seja. Esses armamentos não letais são empregados em ambientes onde historicamente não há confronto armado: passeatas, manifestações, torcidas organizadas. E o crescimento da força policial pela utilização desses equipamentos chamados não letais, que na verdade são menos letais, porque eles matam também, acabam ampliando o poder de punir do Estado. O poder de punir do Estado é ampliado e não reduzido pelo incremento desses armamentos não letais. Com a utilização desses armamentos ditos não letais, não existe resistência. Eles foram introduzidos no Brasil e no mundo para aumentar a força do poder policial e reduzir o direito de resistência. Então aquele discurso de que isso é reduzir a letalidade, no Brasil está comprovado que não, que a letalidade só aumentou. Quantas pessoas não foram feridas ou ficaram cegas por conta da utilização desses equipamentos? É um negócio que é muito próspero. Coloca-se na conta do policial a responsabilidade pela má utilização desses equipamentos. O discurso é o seguinte: os policiais não estão sendo bem treinados para usar balas de borracha e bombas de gás. Isso é mentira. Isso é um produto, é um negócio, que chega em caixas, os policiais vão para as manifestações levando caixas de bombas de gás, caixas de balas de borracha, caixas de taser. E o que acontece? É como um iogurte na prateleira: tem prazo de validade e tem de ser utilizado para que seja reposto o estoque.

    Colaborou Caio Castor

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