‘A PM não deu uma segunda chance para o meu filho’, diz mãe de jovem negro morto pela Rota

Defendidos pelo secretário Guilherme Derrite antes de qualquer investigação, três policiais militares viraram réus sob a acusação de executar, plantar arma e impedir socorro médico a Luiz Fernando Alves de Jesus, de 20 anos

Sandra de Jesus Barbosa da Silva segura faixa do Movimento Mães de Maio durante cortejo do Bloco Afro Ilú Obá De Min, em fevereiro. Data marcou um ano da morte de Luiz Fernando. | Foto: Daniel Arroyo/Ponte Jornalismo

Sandra de Jesus Barbosa da Silva, de 41 anos, passou os últimos quatro dias sem luz e dependendo da ajuda de amigos para conseguir acesso à internet, se alimentar e tomar banho, já que o distrito do Campo Limpo, na zona sul da capital paulista, foi um dos mais afetados pelo apagão que começou na última sexta-feira (11/10).

Foi pela reportagem da Ponte, portanto, que ela soube o Ministério Público de São Paulo (MP-SP) acusou três policiais militares das Rondas Ostensivas Tobias de Aguiar (Rota), a força especial da PM paulista, pela morte do seu filho Luiz Fernando Alves de Jesus, 20, ocorrida em fevereiro de 2023.

Nesta terça-feira (15/10), o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo (TJ-SP) aceitou a denúncia e tornou réus os policiais.

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“Essa é uma pequena vitória, mas ainda tem todo um processo pela frente, porque se o caso vir a júri eu vou ter que provar que meu filho merecia uma chance diante de uma sociedade que diz que ‘bandido bom é bandido morto'”, disse a mãe, às lágrimas.

Luiz participava de um assalto junto com um adolescente no cruzamento de um semáforo na Avenida Cecília Lottenberg, zona sul da capital paulista. Segundo as próprias vítimas do roubo, os PMs chegaram atirando de fuzil, de dentro da viatura, em vez de anunciarem a abordagem, momento em que o jovem foi atingido pelas costas, mas ainda conseguiu correr. Já caído, ele foi baleado uma terceira vez. Os policiais alegaram que Luiz tentou disparar contra eles, o que a investigação da Polícia Civil desmente.

Luiz Fernando tinha 20 anos | Foto: arquivo pessoal

‘Executado em praça pública’

“Meu filho era um ser humano com uma vida toda pela frente, que tomou uma decisão errada mas que não podia ter sido executado em praça pública”, denuncia Sandra. “A vida do meu filho foi um futuro interrompido. Eles não deram uma segunda chance para ele”.

A promotora Luiza Favaro Batista entendeu que o sargento Richard Wellyngton Vetere e o soldado Filipi Rufino de Andrade “executaram covardemente” Luiz, sem que ele tivesse chance de defesa. Richard e o cabo Leonardo da Silva Carvalho também foram acusados de fraude processual porque, segundo a investigação, apresentaram depois na delegacia uma pistola calibre .40, sendo que a perícia encontrou apenas uma arma de brinquedo junto ao corpo do jovem.

O sargento ainda foi denunciado por omissão de socorro por ter impedido uma paramédica de atender o jovem, dizendo: “Isso aqui é um bandido. A vítima é uma pessoa lá que estava passando.” Na ocasião, uma mulher que passava próximo ao local também foi baleada de raspão na barriga.

Tudo foi registrado pelas câmeras nas fardas dos policiais, cujas imagens Sandra assistiu com dor e revolta: “Que eles passem pelo processo [judicial] que eles não permitiram que meu filho tivesse. Que eles sejam presos. Que sejam julgados e condenados, porque eu não desejo a morte deles por nada. Eu não quero que as mães deles sintam o que eu estou sentindo hoje. O que sinto todos os dias. O que eu sinto a todo momento porque é muita crueldade saber quais foram as últimas palavras do filho, implorando pela vida.”

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Uma das cobranças de Sandra é direcionada ao secretário da Segurança Pública de São Paulo, Guilherme Derrite. “Eu quero que eles sejam afastados da rua imediatamente”, exige ela. Isso porque três dias depois que o caso veio à tona após filmagens de redes sociais, Derrite criticou a Ouvidoria das Polícias que havia pedido o afastamento dos PMs enquanto a investigação estivesse em andamento.

O secretário, que já integrou a Rota e declarou, em 2015, que “é vergonhoso” um policial não ter participação em pelo menos três homicídios, fez a seguinte publicação no X (antigo Twitter), em 12 de fevereiro de 2023: “Nenhum policial que sai de casa para defender a sociedade será injustiçado. Confrontos sempre serão apurados, mas ninguém será afastado no caso da abordagem da ROTA que evitou um assalto no semáforo. Até que se prove o contrário, a ação ocorreu dentro da lei.”

Reprodução do tweet feito pelo secretário Guilherme Derrite, em 12/2/2023

Derrite bloqueia a Ponte

A reportagem pediu entrevista ao secretário por meio da assessoria da pasta, mas ele não quis se manifestar. A secretaria também não respondeu se os policiais seriam afastados do trabalho nas ruas. No Instagram, Derrite bloqueou o perfil da Ponte Jornalismo quando foi mencionado.

Enquanto isso, Sandra teve a vida destruída, como ela mesma define. “Eu perdi tudo. Casa. Tudo. Meu filho era tudo que eu tinha e tive que abandonar tudo para conseguir ir à luta, pedir justiça”, conta.

A família, que cresceu e se criou no bairro do Jardim São Luís, na zona sul, tentava driblar a desigualdade como podia. “Meu filho tentava fazer uns bicos, eu sempre trabalhei com faxina, como cuidadora. Ele [Luiz] tentava me ajudar, cuidava de mim, tentava ajudar a avó dele. E morreu no dia do aniversário da avó dele”, lamenta. 

Trauma sem fim

Desempregada, Sandra conta que não teve mais condições emocionais de trabalhar como cuidadora de idosos após a morte do filho e tem contado com a ajuda de uma amiga próxima e de doações.

Recentemente, ela conseguiu ingressar na vaga de pesquisadora social do Centro de Antropologia e Arqueologia Forense da Universidade Federal de São Paulo (CAAF/Unifesp), assim como outras mães que perderam os filhos para o Estado, para obter uma mínima estabilidade de renda. Ela também participa do Movimento Independente Mães de Maio.

Leia também: Famílias adoecidas pela violência do Estado precisam de acolhimento e reparação, diz estudo

“Mesmo saindo de uma internação de 15 dias, eu foquei em passar na bolsa, em me qualificar”, conta a agora pesquisadora, que há dois meses tentou tirar a própria vida. “O Estado mata nosso filho e joga a gente num mundo, numa realidade muito dolorosa. Eu nunca mais vou conseguir ser a Sandra que fui antes, então fazer parte dessa pesquisa sobre vítimas de violência vai me fortalecer. Eu não vou ter paz e não vou conseguir descansar até ver os assassinos do meu filho presos e condenados.”

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Sandra afirma que está fazendo acompanhamento psicológico e psiquiátrico em uma das unidades do Centro de Atenção Psicossocial (CAPS) e sendo acompanhada pela Defensoria Pública do Estado de São Paulo (DPESP), por meio do projeto Rede Apoia — que começou para vítimas de violência letal e, após críticas, acabou dando ênfase ao atendimento jurídico e psicossocial a vítimas e familiares de vítimas da violência estatal.

Uma pesquisa lançada em julho deste ano, conduzida pelas Mães de Maio, Unifesp e a Universidade de Harvard, mostrou que mães e familiares sofrem com problemas físicos e psicológicos diante da perda de jovens por forças policiais e que ainda faltam políticas voltadas a esse público.

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