‘A PM não faz distinção de cor’, diz policial que viralizou por dançar em vídeo

    Capitão Vander Luis Duarte conta à Ponte sobre o histórico de dança e de policiais em sua família e diz não acreditar que a instituição tenha qualquer caráter racista

    Passinhos dados por Duarte em live para arrecadar alimentos | Foto: Reprodução

    O PM Vander Luis Duarte ganhou as redes sociais nesta semana. Em uma live da Polícia Militar de Araçatuba, interior do estado de São Paulo, decidiu dançar para chamar a atenção para a campanha de doação de alimentos. Deu certo e ele conseguiu arrecadar 14 toneladas de comida.

    O PM dançarino conta que os passinhos estão no sangue desde a infância. Relembra a influência do tio, irmão de sua mãe, a dançar como o cantor americano James Brown. “O Michael Jackson fazia muito sucesso na época e nos bailinhos colocávamos o som”, puxa da memória.

    Dono à época de um black power, ele decidiu virar policial e garante não haver racismo por parte da instituição, seja com um PM ou um cidadão negro. Questionado sobre o levante antirracista desde a morte do americano George Floyd, asfixiado por um policial branco, explica que “estamos vendo tudo isso, mas como falei: não fazemos distinção nenhuma”.

    Ponte – O vídeo com sua dança viralizou nas redes sociais. Como tem sido a fama repentina?

    Capitão Duarte – Só por causa de uma dancinha boba… Repercutiu muito. Queríamos arrecadar alimentos, as pessoas precisam. A PM está fazendo algumas lives e queríamos fazer algo que fosse muito bom para quem estivesse assistindo. No final eu me arrisquei a dançar para chamar atenção, tocar o coração para que as pessoas doassem mais alimentos e dinheiro para a conta bancária. Não tínhamos controle do que teria sido doado. Depois da live, elas teriam que procurar drive-thru para doar.

    Ponte – De onde surgiu a ideia de dançar?

    Capitão Duarte – Muita gente podia não ter dado atenção e pensei em fazer essa dança improvisada, ninguém sabia. Nem eu, decidi na hora. O momento foi propício para isso. Trabalhamos com atendimento ao público, ali era uma live, um evento, não ia ferir valores, os bons costumes da PM, que tem quase 189 anos de serviço prestados à comunidade. Como a causa é beneficente, arrecadar alimentos, uma live com música e vários ritmos, decidir fazer aquela dança de poucos segundos e deu certo.

    Ponte – O que tem ouvido de retorno?

    Capitão Duarte – As pessoas se interessaram e gostaram de ver um PM dançando. Desmistificou a imagem de que o PM é carrancudo. É uma pessoa normal que tem família, tem sentimentos e gosta de fazer outras coisas em sua folga. Tem lazer, gosta de jogar bola, de correr, de brincar com os filhos, de ficar com a família e, inclusive, dançar. Marcou bastante o retorno de pessoas de idade, com mais de 70 anos. Ficaram muito felizes da nossa apresentação. Recebi muitas ligações dizendo “gostamos de dançar”, “nos fez relembrar os tempos legais”. Fiquei feliz com isso. Até crianças estão falando. Ultrapassamos as 14 toneladas de alimentos doados e ainda está chegando mais alimentos e vamos atender muitas famílias.

    Ponte – Previa um sucesso tão grande?

    Capitão Duarte – Fiz, mas não imaginava que ia dar toda essa proporção. Era a primeira vez da live, acreditava que quem estava assistindo era de Araçatuba, de quem era daqui. Na minha cabeça, não achava que uma dança, por estar fardado, pudesse despertar tanta atenção das pessoas. Fez com que concluíssemos que muitas pessoas tem impressão que policial é o tempo todo disciplinado. E não é. Em casa, fora do serviço, é uma pessoa extremamente normal.

    Ponte – Como é essa diferenciação?

    Capitão Duarte – Durante o serviço o policial tem que ser profissional para oferecer um serviço de qualidade e atender muito bem. E as pessoas acham que a gente, durante o serviço, não pode dar um sorriso. Tem que sorrir! Às vezes, as crianças te dão um tchau, tem que dar de volta. Falar com as pessoas com bastante tranquilidade, sutileza, gentileza porque as pessoas têm que se aproximar da policia. Uma vez que as pessoas de bem se aproximam, elas nos falam o que pensam, o que vêem na questão de segurança e nos ajudam muito. Eu sei o que acontece na rua da casa daquela pessoa, começo a ter aproximação de confiança e, uma vez que tem esse tratamento gentil com as pessoas, naturalmente aumenta a confiança. Por isso a PM há 189 anos está servindo as pessoas, temos compromisso com a vida, a dignidade da pessoa humana. A ideia é essa.

    Ponte – Conseguindo lidar com a fama?

    Capitão Duarte – Até agora não caiu a ficha. Fiz muita chamada de Skype com outros estados, um depoimento para outras polícias que queriam saber como fazer em suas lives. O Mato Grosso do Sul, por exemplo, conversei com uma capitã que vai fazer live com um tenente-coronel em comemoração aos 185 anos da PM local. Gravei um vídeo curto, pedindo para pessoas participem e assistam a live. Fiz outra para o CPI-3 (Comando de Policiamento do Interior), de Ribeirão Preto, que farão live para comemorar a independência em 7 de setembro. Acabamos influenciando outras lives. Demonstra a força que a polícia tem no Brasil.

    Ponte – Uma sobrinha sua publicou vídeos em que o senhor e outros familiares aparecem dançando. São um grupo de dançarinos?

    Capitão Duarte – Aquele vídeo foi na formatura do meu irmão, que tem o mesmo nome que eu, é o segundo-tenente Duarte. Ele na capital, e aconteceu em janeiro de 2020. Minha filha é aluna oficial no Barro Branco (escola de oficiais da PM paulista), se forma em 2021. Estava participando da confraternização, eu de cinca e ele de branco.

    Ponte – A dança sempre te acompanhou?

    Capitão Duarte – Fui, e meus irmãos, criado em Santo André, no Jardim Irene. Lá, quando crianças, íamos para a rua brincar, soltar pipa, correr com carrinho de rolimã e também gostávamos de fazer bailinho na casa dos amigos. Sempre dançamos os passinhos. Eu usava um black power, cabelo grande, e seguia muito o meu tio, irmão da minha mãe. Ele fazia isso e eu ia tentando fazer também. Este estilo de dança quem começou foi o James Brown, já falecido. Ele fazia esse tipo e está no sangue. O Michael Jackson fazia muito sucesso na época e nos bailinhos colocávamos o som.

    Ponte – Em que momento decidiu virar policial militar?

    Capitão Duarte – Comecei a namorar com 16 anos e sempre gostei do militarismo, de usar farda, de marchar. Fiz muito bico antes de entrar na polícia: trabalhei como servente de pedreiro, entreguei papel na rua, com ajudante de marceneiro… E chegou um momento que queria um serviço fixo, certo. Como sempre tive a vontade, acabei ingressando na PM em 1995 como soldado. Fiz escola de soldados em Pirituba (zona norte de São Paulo), me formei em dezembro e, como conhecia a polícia, me despertou a vontade de ser oficial. Prestei vestibular em 1997 e em 1998 cursei o Barro Branco. Em 2001, me formei e fui declarado aspirante a oficial. Em 2002, ascendi ao posto de 2º tenente e em 2008 ao de 1º tenente. Em maio de 2014, promovido a capitão. No 2º semestre de 2018, fiz mestrado em ciências policiais e ordem pública para me habilitar a major e tenente-coronel. Fiz mestrado na PM e até maio de 2022 deva vir a ser major.

    Ponte – Como é ser um policial negro?

    Capitão Duarte – A PM não faz distinção de cor. Temos coronéis negros e negras, inclusive minha filha, afrodescendente e ser mulher, está na Academia do Barro Branco. A Polícia Militar não faz distinção de raça, cor, gênero, sexo. Vemos isso nitidamente. O que é a sociedade se reflete dentro da corporação.

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    Ponte – Há quem criticasse a dança como forma de tirar de foco temas como letalidade policial e abordagens violentas. Como recebe essas falas?

    Capitão Duarte – Não tem nada a ver. Nosso intuito da live, do Música que Alimenta, era atender instituições de famílias carentes, de jovens. Queríamos arrecadar fundos até para um asilo da cidade. O trabalho que fizemos viabilizou por causa da live, mas temos centenas de policiais que fazem trabalho, mas que não aparece por não ter live. Este tipo de trabalho já fazemos há muito tempo.

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    Ponte – Há um debate mundial desde a morte de George Floyd, homem negro asfixiado por um policial branco, sobre o racismo das polícias. De que forma encara esse debate?

    Capitão Duarte – Estamos vendo tudo isso, mas como falei: não fazemos distinção nenhuma. Atendemos desde a pessoa mais humilde até a mais bem sucedida, não importa. Importa é o compromisso com a vida, com dignidade da pessoa humana. O que temos de comunidade, de pessoas no país, reflete em proporção dentro das polícias. Não tem essa diferença, isso nunca existiu. Inclusive sou um exemplo disso, afrodescendente. O tenente Duarte, meu irmão, tem o tom de cor de pele mais acentuado do que a minha, a melanina é mais incidente, uma cor linda, maravilhosa. E a gente não tem qualquer percepção de que há uma diferença, muito menos tratamento com as pessoas nas ruas.

    Ponte – O senhor foi processado por homicídio simples em 2003 por morte em uma ocorrência. O que aconteceu?

    Capitão Duarte – Foi em 2002, eu era aspirante a oficial. Uma ocorrência que faz 18 anos. Ao longo da minha carreira, só tive essa [com morte]. Um indivíduo tinha acabado de roubar um veículo e tentou sequestrar a família no estacionamento de um mercado, mas o pai não permitiu que as levassem. Naquele dia estava de serviço na força patrulha, parado em uma padaria, e por incrível que pareça esse carro passou por nós com outro carro perseguindo, um motorista que ele tinha batido na fuga. Como tínhamos a placa, identificamos o produto de roubo e fomos.

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    Eu era muito novo, tinha começado ali a carreira de oficial. Fomos e acompanhamos o veículo por bastante tempo. Pedimos apoio e tudo mais. Para nossa surpresa, ele, dirigindo, efetuou disparos. Sozinho, tirou o corpo para fora e atirou. Pegou no vidro da viatura. Foi periciado, tudo certinho. Continuamos acompanhando mais distante, quando ele perdeu controle do carro em uma curva e bateu em uma árvore. Paramos atrás, determinamos que descesse, mas ele efetuou mais disparos e a gente acabou se defendendo. Ele acabou sendo ferido. Naquela época nós socorremos [este procedimento é proibido desde 2013], mas ele não resistiu.

    Ponte – A legítima defesa ficou comprovada?

    Capitão Duarte – Foi feito inquérito da ocorrência, tudo foi apurado direitinho e comprovou-se a legítima defesa. Foi tudo tranquilo, bem esclarecido. Ocorreu na Justiça Comum. Foi uma surpresa para nós [o crime]. Aconteceu num sábado ou domingo à luz do dia. Não sei se ele estava sob efeito de drogas, mas aconteceu e a gente, como policial militar, tem família e nós temos que viver. Acompanhamos e tentamos de alguma forma detê-lo, mas ele insistiu em efetuar disparos. De cinco munições, ele deu quatro tiros na nossa direção. Só que ele quis sair atirando e nós, abrigados, obedecendo os procedimentos operacionais, nos defendemos e acabamos o atingindo. Infelizmente ele não resistiu.

    Ponte – É a única ocorrência que participou que terminou com morte?

    Capitão Duarte – Vou fazer 26 anos de polícia e essa é a única ocorrência que eu tenho. Algumas pessoas acham que o policial tem algum tipo de prazer nisso aí [matar] e não é. Simplesmente é consequência do próprio serviço. Eventualmente estaremos encontrando alguma situação que possa ter essa reação da parte. Faz 18 anos.

    Ponte – Como é para um policial conviver com uma morte? Seu psicológico foi afetado?

    Capitão Duarte – Não porque eu me defendi de uma ação injusta. É lógico que não vou ficar contente com o resultado morte porque o policial não quer morte, ele quer é deter o indivíduo, o que ele quer é deter e levar à delegacia. A polícia militar [tem a função de] preservar a vida, nosso trabalho é cumprir a lei. É o compromisso que temos com as pessoas, inclusive a [vida] do policial. Na ocasião, a nossa vida corria risco naquele momento. Dentro dos procedimentos operacionais a gente se defendeu da injusta agressão. Eu sou pai de família, tenho filha na polícia também, esposa desde os 16 anos, tenho uma vida super tranquila. Isso não me afetou em nada porque a polícia seleciona muito bem os policiais. Quando tem envolvimento com essa ocorrência, tem avaliação com psicólogo.

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    Eu passei e foi super tranquilo. Tenho comigo que fiz o meu trabalho e, realmente, não ficamos contentes com resultado morte. Mesmo que ele tenha tentado sequestrar uma família, atirado nos policiais, ele tem uma família também. E a família vai ficar triste, em que pese ele ter dado caos a isso. Sou católico praticante, meus filhos são batizados na igreja católica, temos a consciência bastante tranquila. Se todo policial que eventualmente participasse de ocorrência dessa tivesse um problema assim [psicológico], seria muito difícil. A morte não é algo que queremos. Ao mesmo tempo, fiquei aliviado de não ter sido eu. Tenho família também.

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