Cobertura jornalística enviesada, que retrata a vítima como algoz, só contribui para perpetuar o problema
Existe uma preocupação esporádica e seletiva no que tange ao indecente índice de homicídios do Brasil. Dados do relatório anual do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, que serão divulgados em novembro, antecipados hoje (28/10) pelos principais veículos de comunicação do País, mostram que, em números absolutos, o Brasil registrou mais homicídios em 2015, com 58,3 mil casos, que a Síria, com 55.219 ocorrências.
A gravidade do número infelizmente não é compatível com tratamento que a grande imprensa dá ao tema. Uma pesquisa simples no Google, ou mesmo nos arquivos dos nossos principais veículos jornalísticos, com as palavras “assassinado” ou “assassinato” mostra que elas são mais frequentes nas seções de notícias internacionais, salvo quando a vítima é ligada à política, é celebridade ou da classe média alta. A quem levantar a mão para dizer “eu fiz isso, meu jornal fez aquilo”, lembro que a parte não define o todo.
Google, o delator
A mesma pesquisa usando a palavra “homicídio” revela que, além de esporádico, o problema é tratado de forma fria e distante. O resultado traz, com poucas variações, uma lista notícias sobre números e índices, oriundos de relatórios elaborados por governos ou organizações não governamentais.
Os motivos para tal descaso dão seus sinais no perfil dos grupos mais suscetíveis às mortes por homicídio. O Atlas da Violência 2016, desenvolvido pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) e também pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FPSP), mostra que jovens negros e com baixa escolaridade já sabem: são eles as principais vítimas. É a violenta morte deles que eleva o Brasil ao vexatório primeiro lugar em assassinatos no mundo. Fato corriqueiro, e por isso mesmo escandaloso, ignorado cotidianamente no nosso noticiário.
Lucas não mora em Baltimore, logo não existe
A crueldade do desprezo pelo assassinato de indivíduos desse grupo social pode ser comprovada também numa outra busca via Google e sites de veículos de imprensa. Pesquisar a frase “jovem negro é assassinado” trará majoritariamente ocorrências nos Estados Unidos, onde parte da sociedade protesta contra esse tipo de crime, levando governadores ou até o presidente a se pronunciar. Aliás, é bem o oposto do que se passa no Brasil, sem a cobrança da imprensa, nossas autoridades simplesmente se calam. Se falam, criminalizam a vítima. E é essa narrativa que ganha espaço no noticiário convencional, especialmente nos sensacionalistas.
Nas eventuais ocasiões em que se fala sobre assassinatos de negros no Brasil, o fato é tratado a partir de estatísticas divulgadas por organizações comprometidas com a redução do número de homicídios. Dados do Mapa da Violência, elaborado desde 1998 pelo sociólogo Julio Waiselfisz, por exemplo, revelam que 23,1 mil jovens negros de 15 a 29 anos foram assassinados em 2012, 63 por dia, “um a cada 23 minutos”. O título viralizou. E só. Falou-se muito do quê, sem mostrar quem. Nesses números estão Matheus, Allan, Lucas, jovens, negros, mortos pelo Estado, invisíveis para a população brasileira. Eles não vivem em Baltimore, nem em Fergusson, suas histórias não chegam prontas das agência de notícias.
Matheus, que Matheus?
No dia 01 de outubro, a polícia de Los Angeles matou a tiros um jovem negro, de 18 anos, Carnell Snell. No dia 01 de outubro, a polícia de São Paulo atirou num jovem negro de 24 anos, Matheus Freitas, morador do Grajaú, que morreu dois dias depois. Carnell foi notícia em todo país. E Matheus? Com exceção de nós, da Ponte Jornalismo, e de alguns veículos que republicam nossos textos, ninguém se importou.
Ao tratar a questão dos homicídios no Brasil dessa maneira, nossa imprensa serve-se do árduo trabalho de pesquisadores, que se debruçam anualmente a elaborar relatórios e índices, para conferir a ela mesma um lustre de preocupação social. Uma falácia que se desnuda em editoriais de apoio à redução da maioridade penal, cujo alvo é o grupo dos que mais morrem e dos que menos matam, e na cobertura de violência que confere aos brancos e ricos o papel de vítimas e aos negros e pobres o de carrascos.
Pacto para uma cobertura honesta
As estatísticas gerais são importantes, chamam atenção das autoridades para a urgência de um pacto nacional de redução de homicídios – iniciativa tratada com desdém pelo atual ministro da Justiça, Alexandre de Moraes – e para elaboração de políticas públicas. Já a combinação da divulgação de dados assustadores com uma cobertura jornalística enviesada, que repetidamente mostra as vítimas como algozes, é um perigoso fermento para o racismo, para criminalização das periferias, para a letalidade policial, para exclusão social e para a manutenção dos índices de homicídios. Um pacto nacional para redução de homicídios precisa também de um pacto nacional para uma cobertura honesta das partes que compõem o todo.