A tortura cotidiana da PRF em Umbaúba, onde Genivaldo foi morto

Morte em “câmara de gás” foi a culminação de várias violências cometidas pela mais bolsonarista das polícias na cidade de 22 mil habitantes; até hoje, corporação “nem sequer pediu desculpas” para a família

A entrada do município do Umbaúba, onde Genivaldo dos Santos foi morto em maio de 2022 | Foto: Priscila Viana

Numa manhã de quarta-feira, a agricultora Marise dos Santos, 47 anos, descansava no sofá de casa, no município de Umbaúba, em Sergipe, quando escutou os passos de seu irmão entrando em casa. “Tá dormindo, minha irmã?”, perguntou Genivaldo de Jesus Santos ao se aproximar de Marise. Ao responder que sentia “o coração apertado” naquele 25 de maio de 2022, Genivaldo a confortou: “Levante a cabeça, vai dar tudo certo”. Pegou uma maçã e sentou ao lado da irmã para conversar, antes de sair.

Genivaldo tinha 38 anos e, mesmo convivendo com a esquizofrenia desde os 18, representava um suporte emocional e financeiro para a família. “Às vezes eu me desesperava com tanta conta pra pagar e ele sempre calmo. Dava um sorriso, alisava a cabeça da gente e falava: ‘Se preocupe não, nega. Vai dar tudo certo, a gente já resolveu coisas piores lá atrás, a gente resolve isso aqui também, não se preocupe. Levante a cabeça, que tudo se resolve’”, relembra Maria Fabiana dos Santos, com quem Genivaldo era casado há 17 anos e tinha um filho de 7.  

Nascido em uma família humilde de agricultores do povoado Mangabeira, em Santa Luzia do Itanhy, Genivaldo morava desde os 20 anos na cidade vizinha de Umbaúba, onde era conhecido por ser “um cara trabalhador” e “muito educado”. Genivaldo era tão querido pela população local que, mesmo sendo de outra cidade, era considerado filho de Umbaúba. “Ele era gente boa, tinha os problemas dele de saúde mental, mas tratava todo mundo bem, sempre com aquela educação, gentileza. Era um cara guerreiro, mesmo tendo o benefício dele, vendia bilhetes de moto, pegava um mototáxi, levava um e outro, e a família dependia muito dele”, destaca o prefeito de Umbaúba, Humberto Maravilha (MDB).

Diagnosticado com esquizofrenia, Genivaldo foi morto aos 38 anos em uma câmara de gás imporvisada por agentes da PRF | Foto: Arquivo pessoal

Genivaldo era o décimo de 11 irmãos. Por ser um dos mais novos, era chamado pela família e pessoas mais próximas por “Moço”. O trabalho na roça não permitiu que Genivaldo finalizasse os estudos, interrompidos ainda no primário. 

Não à toa, Genivaldo fazia de tudo para garantir os estudos do filho, Enzo, 7 anos, que ele estimulava a ser médico. “Ele dizia ao filho para estudar muito, para que fosse médico. Falava: ‘ele vai ser doutor pra cuidar de papai’. Mas o menino dizia ao pai que queria ser policial federal”, relembra Maria Fabiana dos Santos. 

“Era como se a gente estivesse ali invisível”

Mas foi nas mãos de policiais rodoviários federais que Genivaldo morreu. Logo após sair da resideência de sua irmã, naquele 25 de maio, Genivaldo ia para casa com a moto dela emprestada, quando foi abordado violentamente no km 180 da BR-101 pelos agentes Kleber Nascimento Freitas, Paulo Rodolpho Lima Nascimento e William de Barros Noia, da Polícia Rodoviária Federal (PRF). 

No momento da abordagem, os policiais foram avisados pelo sobrinho de Genivaldo, Walisson dos Santos, além de dezenas de pessoas que ali se encontravam, de que ele fazia uso de medicamento controlado para tratamento da esquizofrenia. Nem mesmo o fato de terem visto os remédios no bolso de Genivaldo, nem o clamor da multidão foram capazes de impedir que os agentes da PRF protagonizassem ali mesmo uma sessão de tortura e assassinato a céu aberto. 

Genivaldo foi derrubado ao chão, pisoteado, teve as mãos algemadas, os pés amarrados com fitas e foi jogado para dentro do porta-malas da viatura. Imobilizado, Genivaldo foi sufocado com uma bomba gás lacrimogêneo jogada por um dos agentes, enquanto o outro apertava a porta da viatura contra seu corpo, numa prática similar à “câmara de gás” utilizada na Alemanha nazista. Antes do gás Zyklon-B utilizado na execução de prisioneiros de campos de concentração, as câmaras de gás nazistas originais consistiam em caminhões com o escapamento voltado para dentro de suas traseiras. Entre as primeiras vítimas do regime eugenista de Adolf Hitler estavam pessoas com deficiências físicas e mentais.

Marise dos Santos, irmã de Genivaldo: “Eu dizia ‘solte meu irmão, pelo amor de Deus, o que foi que meu irmão fez?'” | Foto: Priscila Viana

“Ele está melhor do que nós, lá dentro é ventilado”, respondia um dos agentes enquanto Marise, Fabiana e a multidão ali presente pediam que eles soltassem Genivaldo. “Eu dizia ‘solte meu irmão, pelo amor de Deus, o que foi que meu irmão fez? Ele não merece estar passando por isso. Por que vocês estão fazendo isso com ele? Solte ele, ele não vai aguentar aí dentro’, eu dizia. Ele botava uma mão na arma e a outra esticada pra mim e respondia: ‘Se afaste! Se afaste, que você tá constando [indo contra] contra a sua vida’. E meu irmão lá dentro, com a cabeça baixa, todo pálido, já sem vida”, relembra Marise, emocionada. 

“A gente falava com eles, todo mundo tentou impedir, mas era como se a gente estivesse ali invisível. A única coisa que eles sabiam falar era para todo mundo se afastar e ir para a delegacia, e não permitiam que ninguém mais se aproximasse”, conta Fabiana. 

Uma encruzilhada de conflitos

A tortura que resultou na morte de Genivaldo foi filmada pelas pessoas que ali se encontravam como forma de documentar a barbaridade a que assistiam, impotentes. No mesmo dia, o assassinato de Genivaldo seria reproduzido por milhares de televisores e dispositivos móveis em todo o país e em algumas partes do mundo. O que não estava no vídeo, porque não foi filmado, é o histórico de abordagens violentas realizadas pela mesma PRF no mesmo local. 

Moradoras e moradores de Umbaúba, que não terão suas identidades reveladas por questão de segurança, relatam recorrência de abusos e violências por parte da PRF, algumas delas cometidas pelos mesmos agentes que mataram Genivaldo. “Faz poucas semanas, abordaram um rapaz aqui na pista e ele quase morria. Bateram a moto deles na moto do rapaz, o rapaz tombou e a carreta passou pertinho. Tem uns meninos aqui que têm mancha no rosto, pelo corpo, porque eles pisaram de pé, na mesma semana que mataram Genivaldo”, informou um morador. 

Outro caso, bastante citado por diversas testemunhas, destaca uma mulher como vítima e teria ocorrido na parte central do município. “Eles perseguiram uma moça dentro da cidade, ela estava com a moto da irmã. Meteram o pé e quando chegou perto, bateram a moto deles na moto da menina, ela caiu na calçada, a moto caiu por cima dela e ela quebrou o fêmur”, relembra outra testemunha que não quer ser identificada.

Um vigilante que mora no município, além de ter acompanhado esses e outros casos de abuso protagonizados por agentes da PRF, também já foi vítima. “A PRF persegue a população por aqui há muito tempo. Em 2004, eu sofri um acidente numa estrada de terra dentro da cidade, por conta de uma perseguição de policiais da PRF. Eles iam atrás de um rapaz de moto que ia pelo acostamento da rua de piçarra (via sem asfalto, pavimentada com fragmentos de pedras), quando o rapaz perdeu a direção e se chocou comigo. Eu estava de bicicleta, tive um desvio na coluna e passei três meses em casa, impossibilitado de trabalhar”, afirma o vigilante de 52 anos.

Desde que Bolsonaro chegou ao poder em 2019,a PRF passou por um processo de “bolsonarização”, que, segundo o gerente do Instituto Sou da Paz Bruno Langeani, ampliou os casos de violência com envolvimento da corporação, incluindo participações em chacinas travestidas de “operações policiais” e mortes de jovens. Além disso, a força policial se esforçou para proteger Bolsonaro, seja decretando sigilo em relação à falta de capacete do ex-presidente durante motociatas ou com o esforço do ex-diretor da PRF, Silvanei Vasques, em se meter nas eleições presidenciais, criando blitzes no segundo turno para impedir que eleitores de Lula votassem e sendo leniente no combate aos bloqueios rodoviários golpistas ocorridos logo após a eleição de Lula. Silvanei foi exonerado no fim do mandato de Bolsonaro e foi agraciado com aposentadoria aos 47 anos.

Maria Fabiana dos Santos, viúva de Genivaldo: “todo mundo tentou impedir, mas era como se a gente estivesse ali invisível” | Foto: Priscila Viana

Ouvindo os moradores de Umbaúba, a reportagem recolhe diversos relatos de violências, até que um comentário chama a atenção. “Eu acho que é racismo, porque todas essas pessoas que eles fizeram isso são pretinhas, bem morenas mesmo”, afirma uma das testemunhas. Segundo dados de 2010 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), o município de Umbaúba tem uma população em torno de 22 mil habitantes, dos quais 2.249 se declararam pretas e 12.311, pardas. Com um PIB per capita de R$ 13.940,65, a renda média mensal da população trabalhadora umbaubense é de 1,7 salário mínimo. 

Devido à sua localização estratégica de rota comercial, de fronteira entre dois estados e resquícios de sua ocupação histórica, o pequeno município de 121.101 km² abriga descendentes dos povos indígenas tupinambás, de portugueses que chegaram à região por volta de 1600 e faziam a rota entre os estados da Bahia e Pernambuco, além de cearenses, paraibanos, pernambucanos, alagoanos, baianos, cariocas, paulistas, sergipanos de outros municípios e comunidades ciganas.

O prefeito de Umbaúba, Humberto Maravilha, reconhece a recorrência de reclamações sobre a atuação da PRF na área, mas atribui parte da culpa à população. “A PRF aborda dentro do limite da proteção para um veículo roubado, uma moto, que acontece muito aqui na nossa região, porque isso protege o cidadão. Chegaram sim, reclamações sobre algumas atuações deles aqui de perseguição dentro da cidade, de outras pessoas que quebraram perna, mas eles pedem para parar e o povo não para, aí eles vão atrás. A gente sabe também a irresponsabilidade das pessoas sem capacete, correndo em alta velocidade. Então não é errado parar, abordar, aplicar multa, ver se tá certa a documentação do veículo, essas coisas”, destaca o prefeito da cidade. Na  última eleição, ele apoiou o derrotado candidato à reeleição presidencial Jair Bolsonaro (PL).

Humberto participou de uma manifestação organizada e conduzida pela própria população local no dia seguinte à morte de Genivaldo, em 26 de maio. Moradores e representantes de movimentos sociais colocaram fogo em pneus e fecharam duas vias, enquanto cobravam por justiça. “Toda a população participou do protesto e eu, como gestor da cidade, não poderia ficar de fora. Foi uma coisa que chocou a cidade, o estado, o país. E a gente participou, para dar uma força à família, para mostrar nossa indignação com aquele fato”, afirma Maravilha. 

“Nem sequer para pedir desculpas”

Contatada pela Ponte Jornalismo, a assessoria de comunicação da Polícia Rodoviária Federal (PRF) informa que “repudia veementemente quaisquer práticas atentatórias aos direitos humanos” e que “lamenta profundamente o desfecho desta ocorrência, se solidarizando com a dor dos familiares, parentes e amigos de Genivaldo”. No entanto, mesmo desamparada, a família dele nunca foi procurada pela corporação, “nem sequer para pedir desculpas, se explicar, nem um bilhete, nada”.

A única comunicação recebida pela família por parte da PRF foi uma multa de R$ 1.800, aplicada a Genivaldo por três infrações: condução sem capacete, uso de sandálias e ausência de habilitação. O valor também incluía uma multa a Marise, pelo empréstimo da moto. Questionada, a PRF informou por e-mail que “suspendeu as infrações aplicadas”. No entanto, ainda no mês de novembro, Marise descobriu que a multa segue ativa, ao tentar realizar o emplacamento da sua moto. 

Passado sete meses do assassinato brutal de Genivaldo, a família enfrenta dificuldades financeiras, além do luto. Fabiana agora cuida sozinha dos dois filhos e só tem a sua própria renda, que não é fixa, para sustentar a casa. “Assim que ele morreu, o benefício foi cortado de imediato. Eu fiquei totalmente desamparada, passei uns dias na casa de minha mãe e algumas pessoas me deram uma cesta básica. Agora estou trabalhando na Secretaria de Agricultura, mas o contrato acaba em dezembro. E às vezes eu fico desesperada, porque não estou conseguindo suprir tudo sozinha. Antes tinha o salário dele e agora só tem o que eu trabalho”, revela Fabiana.

Fabiana e Genivaldo | Foto: Arquivo pessoal

Tanto Fabiana quanto Marise, irmã de Genivaldo, fazem uso de medicamentos para dormir desde a morte dele. Fabiana recebe assistência psicológica no Centro de Atenção Psicossocial (Caps) do município, mas sente falta de acompanhamento para seu filho. “Ele foi no começo e a psicóloga falou que não precisava ele ir, que eu poderia cuidar disso. Mas, como mãe, eu sinto que precisa, porque às vezes eu não tenho estrutura nem para mim. Eu me levanto das cinzas porque tenho que cuidar de meus filhos, mas estou sozinha. Às vezes adoeço, sinto falta de ar e tenho que me manter de pé, me sinto uma mãe fracassada”, diz a viúva de Genivaldo.

Os agentes da PRF responsáveis pela morte de Genivaldo estão presos no Presídio Militar de Sergipe desde o dia 14 de outubro, indiciados pelo Ministério Público Federal (MPF) por tortura, homicídio qualificado e abuso de autoridade.

Entre os meses de novembro e dezembro, o MPF realizou audiências de instrução com os réus, advogadas e advogados de defesa e acusação, além de duas testemunhas de defesa e 19 de acusação. Segundo informações do MPF, após a fase das audiências de instrução, o juiz da 7ª Vara da Justiça Federal em Sergipe, Rafael Soares, que acompanha o caso, deve marcar um interrogatório dos acusados e em seguida decidir se os réus irão a júri popular. 

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Ainda no mês de maio, a Comissão de Direitos Humanos e Legislação Participativa (CDH) do Senado aprovou o Projeto de Lei nº 1.388/2022, do senador Humberto Costa (PT), que propõe o pagamento de pensão especial vitalícia a Maria Fabiana dos Santos, e de pensão temporária ao filho do casal. O PL prevê ainda indenização no valor de R$ 1 milhão à viúva, devido à violência cometida por agentes de estado. Desde junho de 2022 o PL encontra-se parado.

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