Abolicionismo penal é tema de nova coluna da Ponte

    Contra o encarceramento, vozes do movimento antirracista e abolicionista assinam artigos semanais no nosso site; a coluna Abolição conta com sete pesquisadores de todo o país e começa nesta segunda (10)

    Sete pesquisadores vão compor o time de colunistas da Ponte Jornalismo | Foto: Arquivo Pessoal

    O número de pessoas negras no sistema prisional é duas vezes maior do que o de brancas. Atualmente, 66,7% são negros e negras e 32,3% das pessoas são brancas, num universo de mais de 750 mil pessoas, de acordo com dados de 2019 do 14º Anuário Brasileiro de Segurança Pública do Fórum Brasileiro de Segurança Pública publicado em 2020. 

    Enquanto o Brasil segue fazendo parte do ranking dos países com maior população carcerária do mundo, um grupo de pesquisadores, os abolicionistas penais, defende o fim do encarceramento como meio de punição. Na contramão da tendência punitivista e com um olhar crítico ao racismo presente no sistema de justiça criminal, sete pesquisadores vão passar a publicar na Ponte uma coluna semanal a partir desta segunda-feira (10/5).

    A coluna Abolição parte da continuidade de uma série de projetos encabeçados por Aline Passos, 39 anos, professora de direito processual e penal e doutoranda em Sociologia pela UFS (Universidade Federal de Sergipe) responsável por reunir o grupo e posteriormente formar o coletivo. 

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    A partir do curso “Abolicionismos Penais”, ministrado por Aline, o grupo de estudantes desenvolveu outro curso,“Abolicionismo penal: olhares negros”, cuja a base é análisar o caráter estruturante que o racismo possui sob o sistema de justiça criminal, além da discussão da luta abolicionista tradicional.

    A coluna vai discutir as formas de racialização na criminalização de pessoas, o viés de gênero na punição, os processos de vitimização e o regime histórico de construção da lógica punitivista no Brasil. “Assim, formulamos um posicionamento frente à crítica criminológica, ao reconhecermos a centralidade da questão racial na análise das políticas de aprisionamento, genocídio e morte adotadas pelo Estado”, diz Gabrielle Vitena, 23 anos, pesquisadora de prisão e racismo punitivo da Universidade Federal da Bahia (UFBA) e integrante da coluna Abolição.

    Gabrielle Vitena é mulher, negra, baiana, afrodiaspórica, cientista social, professora e escritora nas horas vagas. Atualmente ela faz um mestrado e é licenciada em Ciências Sociais pela UFBA. E se apresenta como abolicionista “pois grilhões, algemas e grades já nos prenderam demais”, diz. 

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    Para ela, pensar o abolicionismo penal no Brasil, país que possui a terceira maior população carcerária do mundo, é, antes de tudo, pensar nas raízes que regem a punição nesse contexto. “Qual a racionalidade por trás dessa sanha punitivista que insiste em ser a tônica dominante do nosso modus operandi? Quais foram os caminhos que nos conduziram a esse lugar onde a prisão é a resposta pra tudo, ao mesmo tempo em que não responde nada? Como analisar o sistema de justiça criminal em um país onde as instituições estão baseadas na opressão racial, de gênero e de classe?, questiona.

    Para pensar o abolicionismo penal é preciso entender de onde ele surge e quais são suas formas. A linha de pensamento organizada surge entre os anos 1960 e 1970. O conceito começa como uma crítica à prisão e se expressa fortemente nos países europeus, como Holanda e Noruega, enquanto paralelamente o movimento antirracista dos Estados Unidos inicia uma luta anticárcere, conectada ao movimento dos Panteras Negras, que também contestava à guerra às drogas e ao apartheid. 

    Uma das expoentes do abolicionismo atualmente é a filosofia e professora emérita na Universidade da Califórnia Angela Davis, autora de livros como Mulheres, Raça e Classe e A Liberdade é uma Luta Constante.

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    Segundo Aline Passos, que também fará parte do time de colunistas, o debate sobre o abolicionismo penal parte de produções em meios socialistas. “O debate do abolicionismo penal vem dessa tradição teórica e militante de socialistas e anarquistas e das várias vertentes do marxismo”. 

    Ela explica que as primeiras ideias começam por conta do enfrentamento à polícia, por meio da luta de movimentos sociais antes mesmo da década de 1960. “A crítica ao sistema de justiça criminal começa nos enfrentamentos com a polícia que atravessam a história de movimentos operários, socialistas, anarquistas, de mulheres, bem como em todos os movimentos de reivindicação de grupos minoritários explorados, ou tentativas de organização de trabalhadores”.

    Algumas das referências que a professora usa como primórdios do pensamento abolicionista penal são os textos de William Godwin (1756-1836), de Piotr Kropotkin (1842 – 1921), como As Prisões de 1897, no qual o pensador anarquista considera que as prisões são verdadeiras escolas do crime, e relatos de Émile Henry (1872 – 1894), um anarco-terrorista francês que expôs a um juiz o enfrentamento de grupos explorados, oprimidos e ditos minoritários ao sistema de justiça criminal.

    Agora, os pesquisadores da coluna se propõem a jogar para o mundo uma produção abolicionista que tem a ver com a ideia de que o abolicionismo é uma luta política. “Que deve ser travada com a mesma intensidade nas celas inóspitas das prisões, nos corredores assépticos dos tribunais, nas salas de aulas das universidades e escolas, nos lares e no parlamento”, diz Gabrielle. 

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    “Espalhar o pensamento abolicionista é um compromisso contra esse ideal arraigado socialmente da naturalização do castigo, essa lógica vingativa que fundamenta a atuação do sistema penal”, completa.

    Olhar para a construção abolicionista junto às vítimas do sistema de justiça criminal é fundamental, de acordo com Vítor Costa, 25 anos, doutorando em Relações Internacionais (RI) pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-RJ) e Mestre em RI pela Universidade Federal da Bahia, que também está no time de colunistas. “É entre elas que se constroem os significados genuínos deste projeto. Acredito que é por isso que a coluna surge. É um compromisso que resulta da união das nossas histórias com as histórias de outras tantas pessoas que sequer tivemos a oportunidade de conhecer”. 

    O pesquisador baiano estuda Desenvolvimento Extrativista, Política e Direito e Relações de Raça e Classe no Capitalismo e diz que é abolicionista “pois o mundo passou a fazer sentido para mim junto a quem luta por emancipação”. 

    Segundo ele, o abolicionismo penal “é um movimento de enfrentamento contra um Estado que nunca vai admitir o genocídio que promove, como bem nos conta a professora Ana Flauzina. Mas é também mostrar que nossa angústia sobre como vivemos nunca foi um grito no vazio: desde sempre houve um monte de gente pensando e dando o sangue para subverter essa realidade. E a coluna é parte de um projeto vivo: destruir tudo aquilo que nos prende”.

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    No contexto do genocídio brasileiro, as mudanças trazidas pelo abolicionismo ganham um sentido político evidente, como pensa Luciano Pinheiro, 25 anos, mestrando em Direito na Escola de Direito da Fundação Getúlio Vargas e membro do Grupo de Pesquisa em Criminologia da Universidade Estadual de Feira de Santana (GPCrim- UEFS). “Um corpo de um jovem, homem e negro, como o meu, portanto, um corpo alvo do genocídio, não é o objeto de narrativas sobre terrorismo estatal, mas sim um sujeito que pensa e fórmula questões e conhecimento para pensar o sistema penal”.

    Dessa forma, ele esclarece que há um esforço de pensar o abolicionismo em um sentido de afastar a imagem de um corpo negro violentado pelo Estado, “que os discursos  racistas replicam como a única possibilidade”. “Há, pelo contrário, a aposta em um pensamento abolicionista que produz saídas não sobre corpos negros, mas a partir de corpos negros.” 

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    Ele confere um sentido político ao pensar o abolicionismo usando lentes negras. “É essa lente  que permite enxergar novas questões, novas agendas que apontam outras saídas além do sistema penal, saídas que as lentes já embaçadas de certas vertentes abolicionistas ainda não foram capazes de capturar”, argumenta.

    Luciano estuda familiares vítimas da letalidade policial e se interessa por Criminologia e Relações Raciais, além de compor o quadro de pesquisadores na Plataforma Justa. A partir de sua experiência ele pensa o abolicionismo a partir do olhar de familiares-vítimas da letalidade policial. “Nos deter sobre experiências de pessoas violentadas pelo Estado é uma aposta para novos achados abolicionistas, os quais permitem alargar, por exemplo, as molduras de vítima já desenhada”, analisa o novo colunista da Ponte.

    São questões como essas que o abolicionismo penal, enquanto corrente teórica e prática de libertação, se propõe a responder. Algumas medidas práticas defendidas pelos pesquisadores são a descriminalização das drogas e de condutas de menor potencial ofensivo, a liberdade para presos provisórios e o fim da construção de novos presídios.

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    Por fim, a expectativa de Gabrielle é que a coluna suscite a noção de que somos capazes de refletir e produzir conhecimentos “para além do que está na ordem” e de que contribua como uma ferramenta possível para traçar um caminho contra o genocidio “implementado pelos operadores da pena e do cárcere”.

    Nesse sentido, Vitor afirma que como um projeto radical o abolicionismo penal é necessariamente antirracista, feminista, anticapitalista e internacionalista. “Porque a oposição disto é exatamente o lubrificante das correntes que nos prendem”, conclui.

    Quem são os colunistas

    Vítor de Souza Costa

    Nordestino da Bahia, baiano de Salvador. Comunista internacionalista. Doutorando em Relações Internacionais (RI) pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro e Mestre em RI pela Universidade Federal da Bahia. Pesquisa sobre Desenvolvimento Extrativista, sobre Política e Direito e sobre relações de Raça e Classe no capitalismo.

    Renata Santos da Cruz

    Renata Cruz, negra, sergipana, bacharel em Direito pela Estácio – SE, pós graduanda em Direito Penal e Criminologia pelo Introcrim/CEI. Abolicionista penal, pesquisa cárcere e relações raciais.

    Gabrielle Simões Lima Vitena

    Mulher, negra, baiana, afrodiaspórica, cientista social, professora e escritora nas horas vagas. Mestranda e licenciada em Ciências Sociais pela Universidade Federal da Bahia. Pesquisa prisão e racismo punitivo.

    Erin Fernandes Bueno

    Sul-mato-grossense que mora no Distrito Federal. Membro da Frente Distrital pelo Desencarceramento, estuda Antropologia na Universidade de Brasília (UnB). Pesquisa sobre práticas prefigurativas no cotidiano e a construção de outros mundos possíveis. Acredita que não há emancipação que não passe pela abolição daquilo que representa sua antítese: prisão, morte e tortura.

    Adriana Chaves

    Artista interdisciplinar e pesquisadora em relações étnico-raciais. Atualmente, é bacharelanda em Humanidades na Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro Brasileira – UNILAB.

    Luciano  Pinheiro

    Graduando em Direito. Membro do Grupo de Pesquisa em Criminologia da Universidade Estadual de Feira de Santana/BA (GPCrim-UEFS/BA). Pesquisador na área de Criminologia e Relações Raciais. Pesquisa com familiares de vítimas da letalidade policial.

    Aline Passos

    Mãe de Benjamin, sergipana, doutoranda em Sociologia pela Universidade Federal de Sergipe. Professora de Direito Penal e Processo Penal. Pesquisa gestão privada de unidades carcerárias.

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